segunda-feira, 7 de janeiro de 2008

Jean de Léry (1534-1613)





Nomes da história intercultural em contextos euro-brasileiros



Jean de Léry (1534-1613)




Jean de Léry nasceu em Lamargelle, na Burgúndia, em 1534, falecendo em Isle-près-Montrichet, na Suiça, em 1613. Provavelmente de família de modestas condições, parece ter aprendido a profissão de sapateiro. Em 1555 já se encontrava em Genebra, estudando teologia com calvinistas. A sua vinda ao Brasil se insere no projeto de criação da França Antárctica.

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Em 12 de julho de 1555, Nicolas Durand de Villegagnon, cavaleiro da Ordem de Malta e vide-admiral da Bretanha, partiu de Le Havre, com dois navios, para fundar uma colonia francesa no Novo Mundo. Os marinheiros da Normandia já possuiam conhecimentos do Brasil e mantinham contactos com indígenas. Em 1550, um grupo de indígenas havia tomado parte em festividades realizadas em Rouen. O empreendimento contou com o apoio do rei Henrique II°. Já há muito opunha-se a França aos privilégios concedidos à Espanha e a Portugal na divisão do mundo descoberto ou a ser descoberto pela bula do Papa Alexandre VI (1493). Duas concepções antagônicas relativas a direitos da Europa no Novo Mundo permitem melhor compreender o papel desempenhado por nações não-ibéricas na cristianização e colonização das Américas. O direito de propriedade de novas terras deveria ser, segundo o ponto de vista francês, apenas definido por fatos criados, fossem pacíficos, através do trato com indígenas, fossem armados.

Cerca de 600 pessoas, entre elas huguenotes, tais como Nicolas Barré, de La Chapelle e de Boissi, tomaram parte na expedição. À sua testa encontrava-se o admiral Gaspard de Coligny, Senhor de Châtillon, protestante, calvinista ou simpatizante dos calvinistas. Talvez pretendesse criar no continente americano uma possibilidade de refúgio para os perseguidos por motivos religiosos (Edito de Chateaubriand, 1551).

Chegaram no dia 10 de novembro de 1555 na Guanabara, dando início a um povoado na ilha posteriormente denominada de Ilha dos Franceses e à construção do Forte Coligny. Como mediador atuou um francês que já se encontrava em contacto com os Tupinambás.

Em 1556, a pedido de Villegagnon, dirigido a J. Calvino, vieram mais onze calvinistas de Genebra, sob a direção de Philippe du Pont de Corguilleray e dois pregadores, Pierre Richier e Guillaume Chartier. Três naves de guerra (La Grande Roberge, La Petite Roberge, La Rosée) trazem-nos para a colonia, juntamente com artesãos e mulheres jovens. Jean de Léry, um desses onze calvinistas dá início a seu diário de viagens no dia 19 de novembro desse ano, em Honfleur, cidade portuária no Norte da França.

Jean de Léry


No dia 10 de março de 1557, Léry se encontra com os seus irmãos de confissão no Forte Coligny. Logo se iniciam as discórdias entre os huguenotes com Villegagnon. Em outubro desse ano, Léry e os demais calvinistas se retiram para terra firme.

Em 4 de janeiro de 1558, embarca juntamente com 14 calvinistas sob a direção de Philippe du Pont de Corguilleray na nave comercial "Le Jacques" para retornar à Europa. Por motivo de uma avaria, a nave precisou retornar; cinco dos passageiros calvinistas voltam à terra; Villegagnon os deixa afogar. No dia 26 de maio de 1558, Léry chega à França. Termina o seu diário na Bretagnha. Em 1563, sob a pressão de amigos, Léry prepara o seu manuscrito para ser impresso; o texto foi apanhado por emissários em Lyon e ficou por longo tempo perdido. Em 1571, após ter recuperado quase todos os textos elaborados, deu início ao texto de um segundo livro de viagens. Durante a sua fuga à fortaleza de Sancerre em Charité-sur-Loire, perde-se o segundo manuscrito relativo ao Brasil. Em 1576, Léry recebe o seu primeiro manuscrito preparado para ser publicado e que havia sido confiscado em Lyon, revendo-o mais uma vez. Em 1577, após a leitura da obra La Cosmographie universelle, de André Thevet, convence-se da necessidade de publicar o seu texto corrigindo o relato da missão huguenote no Brasil. Em 1578, a Histoire d'un voyage fait en la terre du Brésil, autrement dite Amérique foi publicada, com ilustrações gravadas, por Antoine Chuppin. Em segunda edição, de 1586, a obra surgiu com o título de Historia Navigationis in Brasiliam, quae et America dicitur.






[Excertos de trabalhos]









Principais datas dos estudos concernentes a Jean de Léry


1970. Jean de Léry e o índio na história da música no Brasil.
Curso História da Música no Brasil. Sociedade Nova Difusão




1972. Reflexões para educadores musicais a partir de Jean de Léry.
M. Braunwieser. Instituto Musical de S. Paulo



1973. Jean de Léry na Etnomusicologia brasileira. Faculdade de
Música do Instituto Musical de São Paulo




1977. Fontes para a história indígena do Leste do Brasil. Instituto
de Etnologia da Universidade de Colonia


1978. À procura de vestígios de Jean de Léry. Viagem de estudos
à Burgúndia e a Genebra




1982. Jean de Léry como emblema. Primeiro Forum Brasil-Europa
e Ia. Semana de Música Brasil-Alemanha



1983/4. 450 anos de nascimento de Jean de Léry. Colóquio. Semana
França-Alemanha. Forum Brasil-Europa, Leichlingen



1998. Fontes históricas de observação etnomusicológica. Questões
relativas à transcrição. Música no Encontro de Culturas, Universidade
de Colonia



2002. Colóquio: Europa e o universo sonoro indígena. Diferntes
possibilidades de abordagens. Universidade de Colonia/A.B.E.


2007. Psalmodia sob perspectivas interculturais: J. de Léry. Seminário
Música na hermenêutica bíblica. Universidade de Colonia





Indicações bibliográficas:


De Bry Theodor. Narratio profectionis joanis Lerii, Americae Tertiae
pars, 1592



Crespin, Jean. Histoire des martyrs persécutés et mis à mort pour
la vérité de l'Evangile, depuis le temps de apôtres jusqu'à nos
jours, 1617




Thevet, André. Les Singularités de la France antarctique, autrement
nommée Amérique, Paris 1557. Nova edição comentada por Paul Gafarel,
Paris 1878. Trad. port. de E. Pinto, Singularidades da França
Antarctica a que outros chamam de América, São Paulo 1944 (Brasiliana
229)


Thevet, André. La Cosmographie universelle, Paris 1575; S. Lussagnet
(ed.), Le Brésil et les Brésiliens, intrd. par Ch.-A. Julien,
Paris 1953 (Pays d'outre-mer, deuxième série: Les Classiques de
la Colonisation 2)



Rodrigues Leite, F. "Iean de Lery, viajante de singularidades",
Revista do Arquivo Municipal CVIII (1946), 23-112



Mayeux, M.-R. Vorwort. Jean de Léry, Unter Menschenfressern am
Amazonas: Brasilianisches Tagebuch 1556-1558. Tübingen e Basel:
Erdmann, 1977 (Alte abentuerliche Reise- und Entdeckungsberichte),
11-47


Bispo, A.A. Indianer und ihre Musik im Zeitalter der Reformation:
Maraca versus Psalme. Die Musikkulturen der Indianer Brasiliens:
Stand und Aufgaben der Forschung IV: Zur Geschichte der Forschung.
Jahrbuch Musices Aptatio 2000/2001. Roma/Siegburg, 56-63.



Jean de Léry (1534-1613)


História da reformação, história das relações culturais França-Brasil
e história das fontes históricas dos estudos etnomusicológicos
referentes aos índios



(1973, simplificado em 1983/4 para fins de discussão com jovens
na Semana franco-alemã, Forum Brasil-Europa de Leichlingen, publicado
aqui em tradução do alemão realizada por estudantes)


Antonio Alexandre Bispo

O principal acontecimento para os estudos da reforma protestante em suas relações com os estudos culturais dos indígenas do Brasil pode ser visto na tentativa francesa de fixação no país. A História de uma viagem feita na terra do Brasil (1 ed. 1578; 2a. ed. rev. e aum. 1586), do teólogo huguenote Jean de Léry (1534-1611), repleta de pormenores e escrita em estilo relativamente objetivo de narração, já foi considerada como verdadeiro "breviário da Etnologia" (Claude Lévi-Strauss, Tristes tropiques, 1955). Essas qualidades da obra resultam do período relativamente longo da permanência do autor no país. O seu diário abrange o período de 19 de novembro de 1556 a 26 de maio de 1558; Léry passou cerca de dez meses em terra firme.

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Interesse etnomusicológico

O extraordinário interesse etnomusicológico dessa obra tem sido visto sobretudo no fato de conter as primeiras anotações grafadas de cantos indígenas da literatura. É, assim, obra pioneira da "transcrição musical". Esses exemplos musicais, ainda que breves, foram por várias vezes citados e interpretados por autores dos séculos que se seguiram e influenciaram de forma duradoura a visão da música indígena na Europa e no próprio Brasil.

Um ponto de partida para a leitura adequada das informações de interesse musicológico nessa obra pode ser encontrado nos esclarecimentos que o autor fornece no Posfácio do livro. Léry esperou nada menos do que dezoito anos para publicar a sua narração. Trouxera do Brasil anotações manuscritas com os fatos mais notáveis vividos e desenvolvera-as posteriormente, sem, porém, desejá-las publicar; já em 1563 tinha preparado uma narração mais longa e que perdera-se. Os fatos descritos baseiam-se, assim, não apenas na memória do autor, podendo ser considerados como fidedignos. O escopo da publicação e o espírito que perpassa a obra, porém, refletem esforços interpretativos da experiência vivida e circunstâncias posteriores.

Entra em pormenores a respeito da função do canto, descrevendo o canto ("He, ha, he, hé, he") e a prática responsorial das mulheres, dando atenção a gestos e à coreografia. Menciona danças e cantos acompanhadas pelo consumo de cauim.

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Descreve a confecção de idiofones de cascas de frutas que os indígenas prendiam nos tornozelos. Segundo ele, essas fieiras de cascos e cascas desempenhavam a função de excitar o espírito e poderiam ser comparados, segundo Léry, com os guisos comumente usados nos folguedos da Europa, uma comparação que podia ser corroborada pelo fato desses instrumentos europeus serem muito procurados pelos indígenas. Também oferece dados a respeito do contexto ritual no qual eram usados, citando, por exemplo, o uso de guisos de pernas pelos homens jovens por ocasião do casamento, comparando-os mais uma com os costumes do catolicismo popular na Europa.

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Outro pormenor de extraordinária importância etnomusicológica é a menção que Léry faz das referências a pássaros nos cantos indígenas. No Capítulo XII, dedicado aos pássaros e insetos voadores, fornece dados a respeito do pássaro chamado "Kanidé", citado frequentemente em canções que repetiriam "Kanidé-june, Kanidé-june, heurauech".

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No Capítulo XV, dedicado à guerra e às armas, descreve instrumentos de sopro, tais como a "inubia" e flautas de ossos humanos, tecendo comparações com instrumentos europeus.

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A obra e antagonismos religiosos na Europa do século XVI

A obra de J. de Léry deve ser vista em contraposição à do católico André Thevet OFM (1502-1592), por ter sido escrita para revidar as afirmações desse autor que resolvera publicar a sua História. Jean de Lery lera Des Singularités de l‘Amérique (1558) no ano de seu retorno do Brasil (1558), uma obra que fora elaborada por La Porte com base nos Contes et Mémoires de A. Thevet. Corroborando a crítica feita por Fumée no prefácio da Histoire génerále des Indes, J. de Léry afirma que também a Cosmographie(1575) de A. Thevet contém graves erros. Não se pode esquecer, porém, que Thevet, por ser franciscano, compreensivelmente descreve a ação protestante sob luz negativa, e a obra de J. de Léry surge, assim, como uma correção.

No capítulo XX, dedicado a práticas indígenas relativas à doença e à morte, fornece descrições de cantos, também comparando-os com usos do catolicismo popular.

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Universo dos salmos e leitura da obra

O próprio Jean de Léry indica expressamente no frontispício do seu livro que interpretou a sua experiência no Brasil dentro do espírito do salmo 108, ou seja, de um canto de louvor pela vitória alcançada. O cerne das concepções diz respeito à celebração do Senhor entre os povos e ao canto dos salmos entre as nações. Assim, o próprio autor apresenta-se como cantor de salmos.Uma vez, como salienta, foi-lhe presenteado um pequeno animal em retribuição por ter ele entoado o salmo 104. Ao ouví-lo, os indígenas ter-se-iam lembrado da música de uma tribo amiga.

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Similarmente à obra de Hans Staden, é sob este pano de fundo salmódico que o papel das referências musicais na obra de J. de Léry deve ser avaliado. Nelas, porém, ao contrário de Hans Staden, o autor revela-se particularmente sensível à música dos nativos e se expressa de forma positiva a respeito da musicalidade indígena. Assim, salienta o encanto que sentiu perante a beleza dos cantos que ouviu na casa cerimonial. Esses cantos diziam respeito a conceitos relativos ao dilúvio, o que, para um teólogo, naturalmente despertaram particular interesse.

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Jean de LéryOs conceitos religioso-musicais desse seguidor de Calvino são significativos para o estudo da missiologia reformada. Segundo o autor, a religião é um dos temas mais importantes que ele precisou tratar. Segundo a sua convicção, o Homem teria por natureza uma religião, fosse ela correta ou falsa. Para ele, devido à importância da vingança entre os índios, eles não possuiriam religião no sentido estrito da palavra, seriam sem Deus e viveriam sem Deus. No capítulo dedicado à Religião, diz, porém, que, apesar de tudo, os americanos estariam intimamente convencidos da existencia de uma divindade.

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Observações relativas à maraca à luz das concepções religiosas

A consideração histórico-cultural e musicológica da obra de J. de Léry deve ser feita, portanto, fundamentalmente à luz do antagonismo confessional na Europa do século XVI. A animosidade anti-católica do autor demonstra-se claramente nas suas observações relativas à maraca, comparando as práticas indígenas com expressões da religiosidade popular européia, tais como com relicários de Santo Antonio ou de outros santos.

Os dados de Léry relativos à esse instrumento de significado central para as culturas indígenas são, porém, de grande valor histórico-documental para os estudos etnomusicológicos, possibilitando diversos tipos de abordagens.

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