sábado, 28 de fevereiro de 2009

Balada do enterrado vivo - Vinicius de Morais

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Na mais medonha das trevas
Acabei de despertar
Soterrado sob um túmulo.
De nada chego a lembrar
Sinto meu corpo pesar
Como se fosse de chumbo.
Não posso me levantar
Debalde tentei clamar
Aos habitantes do mundo.
Tenho um minuto de vida
Em breve estará perdida
Quando eu quiser respirar.
Meu caixão me prende os braços.
Enorme, a tampa fechada
Roça-me quase a cabeça.
Se ao menos a escuridão
Não estivesse tão espessa!
Se eu conseguisse fincar
Os joelhos nessa tampa
E os sete palmos de terra
Do fundo à campa rasgar!
Se um som eu chegasse a ouvir
No oco deste caixão
Que não fosse esse soturno
Bater do meu coração!
Se eu conseguisse esticar
Os braços num repelão
Inda rasgassem-me a carne
Os ossos que restarão!
Se eu pudesse me virar
As omoplatas romper
Na fúria de uma evasão
Ou se eu pudesse sorrir
Ou de ódio me estrangular
E de outra morte morrer!




Mas só me resta esperar
Suster a respiração
Sentindo o sangue subir-me
Como a lava de um vulcão
Enquanto a terra me esmaga
O caixão me oprime os membros
A gravata me asfixia
E um lenço me cerra os dentes!
Não há como me mover
E este lenço desatar
Não há como desmanchar
O laço que os pés me prende!
Bate, bate, mão aflita
No fundo deste caixão
Marca a angústia dos segundos
Que sem ar se extinguirão!
Lutai, pés espavoridos
Presos num nó de cordão
Que acima, os homens passando
Não ouvem vossa aflição!
Raspa, cara enlouquecida
Contra a lenha da prisão
Pesando sobre teus olhos
Há sete palmos de chão!
Corre mente desvairada
Sem consolo e sem perdão
Que nem a prece te ocorre
À louca imaginação!
Busca o ar que se te finda
Na caverna do pulmão
O pouco que tens ainda
Te há de erguer na convulsão
Que romperá teu sepulcro
E os sete palmos de chão:
Não te restassem por cima
Setecentos de amplidão!

VINICIUS DE MORAES
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sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

O Relógio - João Cabral de Melo Neto

O RELÓGIO

1.

Ao redor da vida do homem
há certas caixas de vidro,
dentro das quais, como em jaula,
se ouve palpitar um bicho.

Se são jaulas não é certo;
mais perto estão das gaiolas
ao menos, pelo tamanho
e quadradiço de forma.

Uma vezes, tais gaiolas
vão penduradas nos muros;
outras vezes, mais privadas,
vão num bolso, num dos pulsos.

Mas onde esteja: a gaiola
será de pássaro ou pássara:
é alada a palpitação,
a saltação que ela guarda;

e de pássaro cantor,
não pássaro de plumagem:
pois delas se emite um canto
de uma tal continuidade

que continua cantando
se deixa de ouvi-lo a gente:
como a gente às vezes canta
para sentir-se existente.


2.

O que eles cantam, se pássaros,
é diferente de todos:
cantam numa linha baixa,
com voz de pássaro rouco;

desconhecem as variantes
e o estilo numeroso
dos pássaros que sabemos,
estejam presos ou soltos;

têm sempre o mesmo compasso
horizontal e monótono,
e nunca, em nenhum momento,
variam de repertório:

dir-se-ia que não importa
a nenhum ser escutado.
Assim, que não são artistas
nem artesãos, mas operários

para quem tudo o que cantam
é simplesmente trabalho,
trabalho rotina, em série,
impessoal, não assinado,

de operário que executa
seu martelo regular
proibido (ou sem querer)
do mínimo variar.

3.

A mão daquele martelo
nunca muda de compasso.
Mas tão igual sem fadiga,
mal deve ser de operário;

ela é por demais precisa
para não ser mão de máquina,
a máquina independente
de operação operária.

De máquina, mas movida
por uma força qualquer
que a move passando nela,
regular, sem decrescer:

quem sabe se algum monjolo
ou antiga roda de água
que vai rodando, passiva,
graçar a um fluido que a passa;

que fluido é ninguém vê:
da água não mostra os senões:
além de igual, é contínuo,
sem marés, sem estações.

E porque tampouco cabe,
por isso, pensar que é o vento,
há de ser um outro fluido
que a move: quem sabe, o tempo.

4.

Quando por algum motivo
a roda de água se rompe,
outra máquina se escuta:
agora, de dentro do homem;

outra máquina de dentro,
imediata, a reveza,
soando nas veias, no fundo
de poça no corpo, imersa.

Então se sente que o som
da máquina, ora interior,
nada possui de passivo,
de roda de água: é motor;

se descobre nele o afogo
de quem, ao fazer, se esforça,
e que êle, dentro, afinal,
revela vontade própria,

incapaz, agora, dentro,
de ainda disfarçar que nasce
daquela bomba motor
(coração, noutra linguagem)

que, sem nenhum coração,
vive a esgotar, gôta a gôta,
o que o homem, de reserva,
possa ter na íntima poça.


JOÃO CABRAL DE MELO NETO
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quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

A TARTARUGA - ANDERSON BRAGA HORTA

Eu venho donde vem o infinito da Vida,
do crespo e ardente oceano em toda parte ondeando,
da explosão inefável
do que chamais abismo, e é tudo, e é nada,
no pulso intemporal de quanto existe
e de quanto é oculto.
Vivo porque o Mistério impõe que eu viva,
e na vaga da Vida
— sonho que vou sonhando e que me sonha —
eu beijo a mão do Arcano e o lábio do Sigilo,
e reflito no olhar, como um memento,
o olhar do que é, não sendo.


Os olhos tenho abertos
para a impressão do nimbo e do relâmpago,
da água turva e do ar claro,
do céu-mar que se abre e se desdobra
à avidez do meu nado, de meu nada.
Mas não vêem o tempo além do agora,
o segundo futuro,
próximo como o que se foi há um átimo,
e no entanto remoto
como a encoberta eternidade.


Vi o homem de gatinhas,
na semente animal ainda indiferenciado.
Ouvi seus balbucios.
Fiz minha mão a mão que fez o arado,
que faiscou na pedra um firmamento
fugaz de estrelas árdegas.
Tomei-lhe da mão trêmula
a ensaiar-se divina
no primeiro rabisco
do primeiro alfabeto,
na prisca partitura
da vindoura vertigem
de encontrar-se maior que a imensa origem.


Das figuras rupestres das cavernas
subi ao zigurate dos sumérios.
Cunhei sonhos avoengos nos ladrilhos.
Andei Índias e Chinas
do Oriente e do Ocidente.
Topei do Egito o sacro escaravelho.
De tudo em toda parte uma imagem ficou-me
gravada na retina que não vedes.


Sei do amor e do ódio,
sei do hino e do vômito,
sei da paz e da guerra,
sei do mar e da terra,
sei do céu e do éter,
sei da carne e do espírito.


Muito eu tenho vivido,
tanto amado e sofrido
e pecado e ascendido. Respeitai-me,
se não por vós, grumetes
que o Mar aleita ainda,
pela Vida que em mim se fez tempo e caminha
para fazer-se eternidade.


Que novas cores beberei? Que músicas
fluirão no meu dorso? Que suaves,
que pétreos tatos guardarei no olfato,
no paladar, na pele, na retina?


Eu continuo. Adiante!
Para onde, afinal?
Que universo, que abismo
espera por meus pés na curva do infinito?


Eu vou para onde ireis:
para Além, para o Enigma.
Eu vou para onde vai o infinito da Vida.


ANDERSON BRAGA HORTA
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segunda-feira, 23 de fevereiro de 2009

AINDA QUE MAL -- Carlos Drummond de Andrade

Ainda que mal pergunte,
ainda que mal respondas;
ainda que mal te entenda,
ainda que mal repitas;
ainda que mal insista,
ainda que mal desculpes;
ainda que mal me exprima,
ainda que mal me julgues;
ainda que mal me mostre,
ainda que mal me vejas;
ainda que mal te encare,
ainda que mal te furtes;
ainda que mal te siga,
ainda que mal te voltes;
ainda que mal te ame,
ainda que mal o saibas;
ainda que mal te agarre,
ainda que mal te mates;
ainda assim te pergunto
e me queimando em teu seio,
me salvo e me dano: amor.

CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE
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Enviado por Moranguiho Pereira
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domingo, 22 de fevereiro de 2009

O Gato - Vinícius de Morais

ERA TÃO BOM SE A NOSSA VIDA FOSSE SIMPLES ASSIM!!!....UMA BRINCADEIRA SEM FIM...TENHO UMA GATA QUE SE CHAMA 'MIMI'. É UMA BOA COMPANHEIRA, NUNCA SAI DE PERTO DE MIM.....ESTÁ A DORMIR? MAS QUE IMPORTA? PARA ELA EU SOU TUDO! SÓ TENHO UM ADVERSÁRIO - O SOL...NÃO É LINDO? SERMOS A FELICIDADE DE UMA GATA E APENAS SERMOS TRAÍDOS PELO CALOR DO SOL?....EM ANEXO UM BEIJO

O GATO


Com um lindo salto
Lesto e seguro
O gato passa
Do chão ao muro
Logo mudando
De opinião
Passa de novo
Do muro ao chão
E pega corre
Bem de mansinho
Atrás de um pobre
De um passarinho
Súbito, pára
Como assombrado
Depois dispara
Pula de lado
E quando tudo
Se lhe fatiga
Toma o seu banho
Passando a língua
Pela barriga.

VINICÍUS DE MORAES
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Enviado por Moranguinho Pereira (hi5)
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sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009

ESTE INFERNO DE AMAR ! - Almeida Garrett

Foram Garrett e Beethoven, e Domingos Sequeira e Camilo (a minha mãe punha à venda livros da Guimarães editores, mas ninguém comprava, desforrava-se a família) que me levaram até ao romantismo, era eu uma pobre púbere provinciana. (Já tinha visto aquela tua mensagem no blog) Beijo grande. E viva Garrett!

ESTE INFERNO DE AMAR !

“Este inferno de amar — como eu amo!
Quem mo pôs aqui n’alma… quem foi?
Esta chama que alenta e consome,
Que é a vida — e que a vida destrói —
Como é que se veio a atear,
Quando — ai quando se há-de ela apagar?

Eu não sei, não me lembra; o passado,
A outra vida que dantes vivi
Era um sonho talvez… — foi um sonho —
Em que paz tão serena a dormi!
Oh! que doce era aquele sonhar…
Quem me veio, ai de mim! despertar?

Só me lembra que um dia formoso
Eu passei… dava o Sol tanta luz!
E os meus olhos, que vagos giravam,
Em seus olhos ardentes os pus.
Que fez ela? Eu que fiz? — Não no sei
Mas nessa hora a viver comecei…”

Almeida Garrett, in Folhas Caídas
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Enviado por Guilhermina Abreu (hi5)
,

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

DISCURSO NO MERCADO DO DESEMPREGO - Samih Al-Qassim

"Talvez eu perca — se desejares — a minha subsistência
Talvez venda as minhas roupas e o meu colchão
Talvez trabalhe na pedreira... como carregador... ou varredor
Talvez procure grãos no esterco
Talvez fique nu e faminto
Mas não me venderei
Ó inimigo do sol
E até a última pulsação de minhas veias
Resistirei
Talvez me despojes da última polegada da minha terra
Talvez aprisiones a minha juventude
Talvez me roubes a herança dos meus antepassados
Móveis... utensílios e jarras
Talvez queimes os meus poemas e os meus livros
Talvez atires o meu corpo aos cães
Talvez levantes espantos de terror sobre a nossa aldeia
Mas não me venderei
Ó inimigo do sol
E até a última pulsação das minhas veias
Resistirei
Talvez apagues todas as luzes da minha noite
Talvez me prives da ternura da minha mãe
Talvez falsifiques a minha história
Talvez ponhas máscaras para enganar os meus amigos
Talvez levantes muralhas e muralhas em meu redor
Talvez me crucifiques um dia diante de espetáculos indignos
Mas não me venderei
Ó inimigo do sol
E até a última pulsação das minhas veias
Resistirei
Ó inimigo do sol
O porto transborda de beleza... e de signos
Botes e alegrias
Clamores e manifestações
Os cantos patrióticos arrebentam as gargantas
E no horizonte... há velas
Que desafiam o vento... a tempestade e franqueiam os obstáculos
É o regresso de Ulisses
Do mar das privações
O regresso do sol... do meu povo exilado
E para os seus olhos
Ó inimigo do sol
Juro que não me venderei
E até a última pulsação das minhas veias
Resistirei
Resistirei
Resistirei "

Samih Al-Qassim
(poeta palestiniano proibido de exercer a profissão docente pelos israelitas)
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Enviado por Guilhermina Abteu (hi5)
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quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

DEIXEM-ME SER ASSIM - Zabul Moita

Deixem-me ser valado entre trigal

Cigarra de asas loucas pelo monte

Ribeiro de Vastíssimo caudal

Ou musgo adormecido ao pé da fonte.



Cantiga que ecoa pelo Vale

Sol morno a mergulhar no horizonte

Pintura de Miró ou de Bual

Ou lenda do passado que a avó conte.



Deixem-me ser nenúfar por abrir

Olor de rosa e nardos a florir

Criança com sapatos de mulher



E flauta de pastor ao Sol poente

E grito de luar Sereno e quente

Deixem-me ser aquilo que eu quiser!



ZABUL MOITA
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Enviado por Moranguinho Pereira (hi5)
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terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

LA CROIX POUR L’OMBRE - Louis Aragon

«Les gens heureux n’ont pas d’histoire
C’est du moins ce que l’on prétend
Le blé que l’on jette au blutoir
Les bœufs qu’on mène à l’abattoir
Ne peuvent pas en dire autant
Les gens heureux n’ont pas d’histoire

C’est le bonheur des meurtriers
Que les morts jamais ne dérangent
Il y a fort à parier
Qu’on ne les entend pas crier
Ils dorment en riant aux anges
C’est le bonheur des meurtriers

Amour et bonheur d’autre sorte
Il tremble l’hiver et l’été
Toujours la main dans une porte
Le cœur comme une feuille morte
Et les lèvres ensanglantées
Amour est bonheur d’autre sorte

Aimer à perdre la raison
Aimer à n’en savoir que dire
A n’avoir que toi d’horizon
Et ne connaître de saisons
Que par la couleur du partir
Aimer à perdre la raison

Ah c’est toujours toi que l’on blesse
C’est toujours ton miroir brisé
Mon pauvre bonheur, ma faiblesse
Toi qu’on insulte et qu’on délaisse
Dans toute ta chair martyrisée
Ah c’est toujours toi que l’on blesse

La faim, la fatigue et le froid
Toutes les misères du monde
C’est par mon amour que j’y crois
En elle je porte ma croix
Et de leurs nuits ma nuit se fonde
La faim, la fatigue et le froid»

Louis Aragon, "Le Fou d’Elsa" ("Chants du Medjnoûn")
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Enviado por Guilhermina Abreu
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sábado, 14 de fevereiro de 2009

INTERIORIDADE - António Gancho

INTERIORIDADE

«Interioridade
és bem o estímulo tu
duma vida cumprida ao serviço do invisível
Em teu nome
já eu sofri todos os pecados do Mundo
todas as humilhações já eu suportei
e tudo em teu nome
para que em teu nome de tudo eu aproveitasse
uma reinvindicação
E é certo que sempre te reclamarei
nos instantes mais tenebrosos do homem
ainda quando toda uma cidade se virar
contra nós
e quando a paisagem já não nos distrair
Interioridade
que coisas eu não imaginei poder fazer de ti
construir contigo templos imaginários
onde todos os homens se poderiam redimir
de todas as culpas
e onde só tu fosses o único elemento
de aniquilação de pecados
E no entanto um leopardo há sempre
em cada árvore da alma
e sempre um homem pode ser vítima
da sua selva interior
E no entanto eu propunha a todos os homens
a escalpelização dos animais selvagens
a abertura de vias férreas de progresso
interior
clareiras e estepes para uma melhor
expectação de horizontes
Porém há sempre um leopardo no
cimo da árvore mais inocentemente descopada
e o homem muitas vezes sacrifica
ao perigo da guerra
a noção do convívio.»

António Gancho
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Enviado por Guilhermina Abreu
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quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

Cartas de Meu Avô - Manuel Bandeira


A caminho das Caldas da Rainha, cerca de Torres Vedras - Foto Victor Nogueira


Cartas de Meu Avô

(Manuel Bandeira)
A tarde cai, por demais
Erma, úmida e silente...
A chuva, em gotas glaciais,
Chora monotonamente.

E enquanto anoitece, vou
Lendo, sossegado e só,
As cartas que meu avô
Escrevia a minha avó.

Enternecido sorrio
Do fervor desses carinhos:
É que os conheci velhinhos,
Quando o fogo era já frio.

Cartas de antes do noivado...
Cartas de amor que começa,
Inquieto, maravilhado,
E sem saber o que peça.

Temendo a cada momento
Ofendê-la, desgostá-la,
Quer ler em seu pensamento
E balbucia, não fala...

A mão pálida tremia
Contando o seu grande bem.
Mas, como o dele, batia
Dela o coração também

A paixão, medrosa dantes,
Cresceu, dominou-o todo.
E as confissões hesitantes
Mudaram logo de modo.

Depois o espinho do ciúme...
A dor... a visão da morte...
Mas, calmado o vento, o lume
Brilhou, mais puro e mais forte.

E eu bendigo, envergonhado,
Esse amor, avô do meu...
Do meu - fruto sem cuidado
Que inda verde apodreceu.

O meu semblante está enxuto.
Mas a alma, em gotas mansas,
Chora, abismada no luto
Das minhas desesperanças...

E a noite vem, por demais
Erma, úmida e silente...
A chuva em pingos glaciais,
Cai melancolicamente.

E enquanto anoitece, vou
Lendo, sossegado e só,
As cartas que, meu avô
Escrevia a minha avó.


http://rimas.mmacedo.net/index.php?Escolha=1&Acao=2&Codigo=405
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Foto de Victor Nogueira
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sábado, 7 de fevereiro de 2009

Mia Couto - Foi para ti

PARA TI

Foi para ti
que desfolhei a chuva
para ti soltei o perfume da terra
toquei no nada
e para ti foi tudo

Para ti criei todas as palavras
e todas me faltaram
no minuto em que talhei
o sabor do sempre

Para ti dei voz
às minhas mãos
abri os gomos do tempo
assaltei o mundo
e pensei que tudo estava em nós
nesse doce engano
de tudo sermos donos
sem nada termos
simplesmente porque era de noite
e não dormíamos
eu descia em teu peito
para me procurar
e antes que a escuridão
nos cingisse a cintura
ficávamos nos olhos
vivendo de um só
amando de uma só vida

MIA COUTO
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From Moranguinho Pereira
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quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

Poesia - Manuel da Fonseca


Original é o poeta
que se origina a si mesmo
que numa sílaba é seta
noutro pasmo ou cataclismo
o que se atira ao poema
como se fosse um abismo
e faz um filho ás palavras
na cama do romantismo.
Original é o poeta
capaz de escrever um sismo.

Original é o poeta
de origem clara e comum
que sendo de toda a parte
não é de lugar algum.
O que gera a própria arte
na força de ser só um
por todos a quem a sorte faz
devorar um jejum.
Original é o poeta
que de todos for só um.

Original é o poeta
expulso do paraíso
por saber compreender
o que é o choro e o riso;
aquele que desce á rua
bebe copos quebra nozes
e ferra em quem tem juízo
versos brancos e ferozes.
Original é o poeta
que é gato de sete vozes.

Original é o poeta
que chegar ao despudor
de escrever todos os dias
como se fizesse amor.
Esse que despe a poesia
como se fosse uma mulher
e nela emprenha a alegria
de ser um homem qualquer.

José Carlos Ary dos Santos
From Georgina Gi


Noite de Sonhos Voada

Noite de sonhos voada
cingida por músculos de aço,
profunda distância rouca
da palavra estrangulada
pela boca armodaçada
noutra boca,
ondas do ondear revolto
das ondas do corpo dela
tão dominado e tão solto
tão vencedor, tão vencido
e tão rebelde ao breve espaço
consentido
nesta angústia renovada
de encerrar
fechar
esmagar
o reluzir de uma estrela
num abraço
e a ternura deslumbrada
a doce, funda alegria
noite de sonhos voada
que pelos seus olhos sorria
ao romper de madrugada:
— Ó meu amor, já é dia!...

Manuel da Fonseca, in "Poemas Dispersos"

http://www.citador.pt/
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enviada por Georgina
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domingo, 1 de fevereiro de 2009

Cesário Verde - “Arrojos

Se a minha amada um longo olhar me desse
Dos seus olhos que ferem como espadas,
Eu domaria o mar que se enfurece
E escalaria as nuvens rendilhadas.

Se ela deixasse, extático e suspenso
Tomar-lhe as mãos "mignonnes" e aquecê-las,
Eu com um sopro enorme, um sopro imenso
Apagaria o lume das estrelas.

Se aquela que amo mais que a luz do dia,
Me aniquilasse os males taciturnos,
O brilho dos meus olhos venceria
O clarão dos relâmpagos nocturnos.

Se ela quisesse amar, no azul do espaço,
Casando as suas penas com as minhas,
Eu desfaria o Sol como desfaço
As bolas de sabão das criancinhas.

Se a Laura dos meus loucos desvarios
Fosse menos soberba e menos fria,
Eu pararia o curso aos grandes rios
E a terra sob os pés abalaria.

Se aquela por quem já não tenho risos
Me concedesse apenas dois abraços,
Eu subiria aos róseos paraísos
E a Lua afogaria nos meus braços.

Se ela ouvisse os meus cantos moribundos
E os lamentos das cítaras estranhas,
Eu ergueria os vales mais profundos
E abateria as sólidas montanhas.

E se aquela visão da fantasia
Me estreitasse ao peito alvo como arminho,
Eu nunca, nunca mais me sentaria
Às mesas espelhentas do Martinho.”

Cesário Verde


Lisboa, Diário de Notícias, 22 de Março de 1874
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Enviado por Guilhermina Abreu
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