quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

Lembro-te o vento; ai, o vento! - Pedro Branco

Assunto: Que o Azul seja assim
Data: 31/Dez 19:17
Azul tão fundo,é azul salgado, a cor do mar do mundo, o riso dos golfinhos na vasta imensidão, ecos de outro mundo ...
Beijo

eu (Flor do Deserto)


Lembro-te o vento; ai, o vento!
Lembro-te as mãos de escavar a ternura como se fosse terra. Lembro-te a estrada e a falésia e a curva e a paragem e o precipício e a pedra e o pó do caminho e a chuva e as cores. Lembro-te o silêncio da respiração. Lembro-te os carris da fuga. Lembro-te o monte e as fontes. Lembro-te o canto em tons de medo. Lembro-te que estás.
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Lembro-te a queda e a vertigem. Lembro-te as rugas das nossas memórias. Lembro-te o sossego e a inquietação. Lembro-te as letras. Lembro-te o cheiro de cada flor ou pedaço de nuvem. Lembro-te a embriaguez das vozes e dos abraços. Lembro-te as fotografias ou os livros. Lembro-te a família que passa. Lembro-te o riso estridente; o desejo calado. Lembro-te o nome das ruas; das velhas e das novas. Lembro-te as roupas; os sapatos. Lembro-te a saudade; pode ser boa. Lembro-te a parede branca ou o telhado quente. Lembro-te a ausência. Lembro-te a descoberta; as veias do sangue rio de outras fecundações. Lembro-te o mistério. Lembro-te as histórias de encantar ou malandrices de meninos panteras e outros que tais. Lembro-te sempre. Lembro-te a voz; talvez o mar dentro do peito. Lembro-te a silhueta na estação em chaga suicida. Lembro-te a arca dos segredos. Lembro-te o adro da Igreja. Lembro-te o orgulho. Lembro-te a Lua; Sol e Lua... Lembro-te o corpo do pintor. Lembro-te o rasgão do poeta. Lembro-te a surpresa do Músico. Lembro-te o cozinheiro.
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Lembro-te o murro na liberdade. Lembro-te a marcha na Avenida de olhos postos numa raiva cada vez mais fechada. Lembro-te que Abril abriu portas? Lembro-te o cravo a três cantos e nove passagens. Lembro-te o Bem Querer ou Oceano de ninar. Lembro-te a página em branco e o pincel. Lembro-te o tic-tac do coração. Lembro-te que tudo não é esquecimento; que esquecer é perder; e perder é não ser; e não ser é deixar de estar; e deixar de estar é apagar; e apagar é recomeçar; e recomeçar é lembrar....
Por isso, meus amigos, NUNCA SAIAM DE MIM!

(Pedro Branco)
31/12/2009)

Ozzy - Angeli


Digestivo nº 291 >>> No Rest for the Wicked?

No Brasil, em que se lê mais na infância, na adolescência e na juventude do que na idade adulta, a salvação, para o mercado editorial, são os livros didáticos. Para os autores, também. Quantos não se refugiaram, quase que para sempre, nos infantis – como Monteiro Lobato e Ana Maria Machado? Quantos não encontraram nos infanto-juvenis uma mina de ouro – como Ziraldo e seu Menino Maluquinho? Recentemente, até Miguel Sanches Neto – um dos poucos autores relativamente “novos” e verdadeiramente adultos – experimentou no gênero, com O Rinoceronte Ri. E Angeli não poderia ignorar o canto da sereia. Talvez não por isso, mas lançou Ozzy, no início da década passada: não um menino mas um pré-adolescente, de camiseta larga, bermuda folgada, gorro e skate à mão. Uma mistura, se formos analisar, de anos 80 com 90: estilo californiano tardio, combinado com grunge; espasmos diluídos da cultura hippie (hoje quase um palavrão), com o cientificismo da tecnologia e do computador. Ozzy é divertido como o Angeli sempre foi, mas não tão visceral como suas origens – é o Angeli mais “família”, autor da Flip, que de tanto combater o sistema foi absorvido por ele (embora charmosamente negue). Mas Angeli é gente boa; merece todo o sucesso e dinheiro. Ozzy, que estreou na Folhinha em 1993, sai agora em álbum, inicialmente quatro volumes, pela Companhia das Letras. O Ozzy, para quem precisa de uma referência mainstream, é o Calvin do Angeli. Sei que você pensou nos Skrotinhos, mas é mais light do que isso. Ozzy é um inconseqüente, mas não agride; é um transgressor, mas sem apelar para sexo e drogas (só rock’n’roll; ou para o que sobrou...). O Angeli virou marca. E foi merecido.
>>> Ozzy - Angeli - 54 págs. - Companhia das Letras
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Debret em Viagem Histórica e Quadrinesca ao Brasil









Digestivo nº 315 >>> No Largo do Paço
Das homenagens prestadas aos 100 anos do vôo do 14-bis, uma das melhores, e mais criativas, foi a de Spacca, também endereçada a Santos Dumont, no álbum Santô, lançamento da Cia. das Letras em 2005. Parece que na esteira do sucesso dessa realização, fruto de anos de pesquisa histórica do próprio Spacca – embora seja uma “simples” HQ –, a editora lançou, em 2006, Debret em Viagem Histórica e Quadrinesca ao Brasil. Debret, como todo mundo sabe (ou deveria saber), produziu uma das mais ricas iconografias sobre o Brasil do século XIX. Primo e discípulo de Jean-Louis David, o célebre pintor neoclássico, Debret se viu desamparado, com a queda de Napoleão III, e a mudança de ventos políticos na França, quando recebeu um convite para fundar uma Escola de Belas Artes no Rio. Mudou o rumo das artes brasileiras e mudou, inclusive, a maneira como o próprio Brasil era visto no Europa (e se via a si próprio). (Para quem tiver ainda dúvida, a editora Capivara registra isso muito bem num catálogo portentoso...) Spacca, em seu Debret atual, conta um pouco dessa saga, de 15 anos no Brasil, mesmo que de forma mais breve, e menos profunda, se compararmos com o seu quase perfil de Santos Dumont. Ainda que tenha produzido incansavelmente, como um Balzac dos pincéis, Debret não teve seu caminho facilitado no Rio e, como parte da chamada missão francesa, teve muitos dos seus desejos frustrados ou postergados, como a Escola de Belas Artes (que permanece até hoje mas que demorou a se concretizar). O álbum de Spacca, de certa forma, evoca uma seção de seu próprio site em que ele, como cartunista, homenageava mestres do traço. Para a geração conectada da virada do século, que mal conhece a representação de seu País em pintura, Spacca e a Cia. das Letras estariam prestando um enorme serviço se seguissem por essa trilha agora aberta. 
>>> Debret em Viagem Histórica e Quadrinesca ao Brasil

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Rafael Sica




Digestivo nº 402 >>> ~

Apesar de ter tido passagens pela Folha de S. Paulo, de 2003 a 2006, e de ter publicado na breve revista F e no fanzine Tarja Preta, Rafael Sica parece que sobressaiu, recentemente, na Piauí, ornando alguns dos textos mais bem escritos do que restou do nosso jornalismo. Embora ele mesmo não acredite no embrulha-peixe: “Não conto com carreira em jornal. Isso não existe mais”; e sobre a inesgotável competição entre papel e Web, pontue sem medo de arrependimento: “A internet tem repercussão maior que jornal”. Com menos de 30 anos, Sica é apontado como o mais influente quadrinista da nova geração. Já ganhou exposição em Porto Alegre (ele é de Pelotas/RS) e se prepara para lançar o primeiro livro, pela nova editora Barba Negra, uma dissidência da Desiderata (que ressuscitou, entre capas, o velho Pasquim). Sua produção pode ser conferida, amplamente, no blog Quadrinho Ordinário, que mantém atualizado desde 2007. Descende, claro, de Crumb e do grupo que fundou a revista Chiclete com Banana, nos anos 80, mas, além da acidez, do inconformismo e da veia cínica, que caracterizam toda a turma de Sica, ele reserva, para si, um lado de artista. Apesar do clima de fim de mundo (sempre tragicômico), da desilusão e, muitas vezes, da falta de saída, paira, de repente, um certo lirismo, uma epifania, e até uma certa poesia. Desenhar bem, todos desenham; passar a mensagem, todos passam – mas Sica faz arte; e isso nem todos conseguem fazer... Se a chamada Web 2.0 revelou Hugh MacLeod – seu maior tradutor em forma de rabiscos –, esperamos que a internet brasileira consagre Rafael Sica, permitindo-o viver dignamente de seu trabalho, afinal talentos como o dele não florescem todos os dias.
>>> Rafael Sica
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Receita de Ano Novo - Carlos Drummond de Andrade

Receita de Ano Novo
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Para você ganhar belíssimo Ano Novo
cor de arco-íris, ou da cor da sua paz,
Ano Novo sem comparação como todo o tempo já vivido
(mal vivido ou talvez sem sentido)
para você ganhar um ano
não apenas pintado de novo, remendado às carreiras,
mas novo nas sementinhas do vir-a-ser,
novo
até no coração das coisas menos percebidas
(a começar pelo seu interior)
novo espontâneo, que de tão perfeito nem se nota,
mas com ele se come, se passeia,
se ama, se compreende, se trabalha,
você não precisa beber champanha ou qualquer outra birita,
não precisa expedir nem receber mensagens
(planta recebe mensagens?
passa telegramas?).
Não precisa fazer lista de boas intenções
para arquivá-las na gaveta.
Não precisa chorar de arrependido
pelas besteiras consumadas
nem parvamente acreditar
que por decreto da esperança
a partir de janeiro as coisas mudem
e seja tudo claridade, recompensa,
justiça entre os homens e as nações,
liberdade com cheiro e gosto de pão matinal,
direitos respeitados, começando
pelo direito augusto de viver.
Para ganhar um ano-novo
que mereça este nome,
você, meu caro, tem de merecê-lo,
tem de fazê-lo de novo, eu sei que não é fácil,
mas tente, experimente, consciente.
É dentro de você que o Ano Novo
cochila e espera desde sempre.
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Texto extraído do "Jornal do Brasil", Dezembro/1997.
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quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

Letra para um hino - Manuel Alegre

Assunto: DEIXO-ME ESTAR...
Data: 30/Dez 14:50
DEIXO-ME ESTAR...O AQUI É O AGORA...DESTA VEZ NÃO ME VOU ENGANAR E OLHAREI OS GESTOS ACOLHEDORES COM QUE ME ACENAM, NÃO COMO UM CONVITE PARA A DANÇA,MAS ANTES SABEREI CLARAMENTE O MUNDO QUE ESTÁ POR TRÁS...A ESCURIDÃO,A MENTIRA, O CINISMO,A MALDADE, A TROÇA E POR FIM, O ABANDONO. ANTES FICAR COMO ESTOU...ESPERANDO...O TEMPO ESTÁ POR MIM E PAROU...O MOMENTO CHEGARÁ COM A LUZ DE MIL SÓIS...AÍ EU SABEREI E ENTÃO ME ENTREGAREI...EM ANEXO UM BEIJO!

VISITEM O MEU GUEST BOOK! OBRIGADA!
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Distribuído por Moranguinho Pereira (hi5)
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LETRA PARA UM HINO
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É possível falar sem um nó na garganta
é possível amar sem que venham proibir
é possível correr sem que seja fugir.
Se tens vontade de cantar não tenhas medo: canta.
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É possível andar sem olhar para o chão
é possível viver sem que seja de rastos.
Os teus olhos nasceram para olhar os astros
se te apetece dizer não grita comigo: não.
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É possível viver de outro modo. É
possível transformares em arma a tua mão.
É possível o amor. É possível o pão.
É possível viver de pé.
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Não te deixes murchar. Não deixes que te domem.
É possível viver sem fingir que se vive.
É possível ser homem.
É possível ser livre livre livre.
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MANUEL ALEGRE
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Não me importo com as rimas - Alberto Caeiro

Assunto: OVELHA NEGRA
Data: 29/Dez 16:31
SEMPRE FUGI A SER 'NORMAL'POIS ISSO NÃO É SER 'EU'.RETALHA, RECALCA, AMORDAÇA, IMPÕE, MOSTRA APENAS O CAMINHO JÁ POR TODOS CONHECIDO...ENFIM, MATA-ME EM VIDA QUANDO MEU DESEJO É VIVER.SOU ENTÃO A OVELHA NEGRA, A QUE VEM NA CONTRAMÃO, A QUE GRITA NO SILÊNCIO, UMA INSISTÊNCIA CONSTANTE, RELÓGIO SEMPRE PARADO,ÁGUIA QUE O CÉU ALCANÇA...SOU ALÉM DO QUE É PEQUENO, DA META QUE TODOS APONTAM...CONSTRUÍ MEU IDEAL.OLHAM PARA MIM? NÃO ME IMPORTO!ESTOU SÓZINHA? E DEPOIS? DEIXEM QUE ARREMESSE CORES PARA O CINZENTO DA VIDA, QUE PENSE QUE É POSSÍVEL TUDO O QUE O CORAÇÃO DIZ... REGRAS? SÃO MIL TESOURAS ESCONDIDAS...SÓ QUE NÃO VOU POR AÍ... MEU BARCO SABE DE COR OS CAMINHOS PROIBIDOS...CONHECE OS ATALHOS DA VIDA ONDE PASSO APENAS EU, E SEMPRE COMIGO Á PROA RUMA PARA LÁ DO IGUAL...EM ANEXO UM BEIJO!
Distribuído por Moranguinho Pereira (hi5)
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NÃO ME IMPORTO COM AS RIMAS

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Não me importo com as rimas. Raras vezes
Há duas árvores iguais, uma ao lado da outra.
Penso e escrevo como as flores têm cor
Mas com menos perfeição no meu modo de exprimir-me
Porque me falta a simplicidade divina
De ser todo só o meu exterior
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Olho e comovo-me,
Comovo-me como a água corre quando o chão é inclinado,
E a minha poesia é natural como o levantar-se vento
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ALBERTO CAEIRO
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terça-feira, 29 de dezembro de 2009

Que nenhuma estrela queime o teu perfil - Sophia de Mello Breyner

Assunto: DIA TRISTE
Data: 28/Dez 18:43
A CHUVA CAI NA CALÇADA COMO SE FOSSE AGULHAS. LEVA CONSIGO AS PASSADAS DE QUEM ALEGRE OU TRISTE ALI PASSOU...SÓ MINHA DÔR PERMANECE SENTADA NAS DURAS PEDRAS...NÃO HÁ CHUVA QUE A LEVE NEM SOL QUE A DISSOLVA...É ÁSPERA, PESADA E ESCURA...FERE-ME O SER E A ALMA... SABE-SE FAZER PRESENTE...O SEU GRITO ME ALCANÇA ALÉM DA PORTA FECHADA...HOJE É SENHORA DE MIM E DELA SOU SUA ESCRAVA...DESISTO...NÃO HÁ FORMA DE LUTAR...DEIXA-A ESTAR...DEIXA-A ESTAR...EM ANEXO UM BEIJO!
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Distribuído popr Moranguinho Pereira (hi5)
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QUE NENHUMA ESTRELA QUEIME O TEU PERFIL


Que nenhuma estrela queime o teu perfil
Que nenhum deus se lembre do teu nome
Que nem o vento passe onde tu passas.
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Para ti criarei um dia puro
Livre como o vento e repetido
Como o florir das ondas ordenadas.
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SOFHIA DE MELLO BREYNER
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segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

O Twitter na Time

DIGESTIVOS >>> Internet

Segunda-feira, 28/12/2009
Internet
Julio Daio Borges




Digestivo nº 419 >>> O Twitter na Time
Enquanto os jornalistas brasileiros classificam o Twitter como “uma besteira”, os da Time afirmam, na capa da revista, que o mesmo Twitter “vai mudar nosso jeito de viver”. Um exagero de ambos os lados. No caso do Brasil, um exagero em matéria de desinformação. E, no caso dos EUA, um exagero calculado, para vender mais exemplares na banca. Afinal, conforme a própria Time estima, são 32 milhões de usuários no Twitter neste momento. E o serviço vem crescendo de 50 a 100% mensalmente. A expectativa é de que alcance 50 milhões no final deste ano (vale lembrar que o Facebook tem 200 milhões). Abocanhar uma parcela disso – quando as maiores revistas têm tiragem de um milhão – é um grande feito, não é? A Time começa fazendo uma piada, pelo fato do Twitter causar uma “má primeira impressão”. Valoriza o que o microblog proporciona em termos de “ambient awareness” (algo como “consciência do ambiente” ou, numa tradução livre, “percepção do zeitgeist”), expressão de Clive Thompson. Sugere que o interesse reside não “no Twitter em si”, mas “no que estamos fazendo hoje com ele”. Na interpretação de Ashton Kutchermais de 2 milhões de “seguidores” –, seria o fato do Twitter não ser, exatamente, a “soma” de instant messaging (nosso MSN) com rede social (nosso Orkut). A Time se rende, finalmente, classificando muitos dos tweets (ou microposts) como “tocantes”, “engraçados”, “argutos” e “irreverentes”. Sua ameaça ao Google, segundo John Battelle, estaria na possibilidade do Twitter revelar a “super fresh” Web ou a “internet em tempo real” (que a poderosa ferramenta de busca, atualmente, não revela). O mesmo Facebook já ofereceu 500 milhões pela startup de Evan Williams, Jack Dorsey e Biz Stone. Não é, decididamente, “uma besteira”. Mas será que vai nos mudar mais do que já mudamos nestes últimos anos (© @dudafleury)? 
>>> How Twitter Will Change the Way We Live

Dia de Natal - Anrónio Gedeão


Dia de Natal 
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Hoje é dia de era bom.
É dia de passar a mão pelo rosto das crianças,
de falar e de ouvir com mavioso tom,
de abraçar toda a gente e de oferecer lembranças.
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É dia de pensar nos outros— coitadinhos— nos que padecem,
de lhes darmos coragem para poderem continuar a aceitar a sua miséria,
de perdoar aos nossos inimigos, mesmo aos que não merecem,
de meditar sobre a nossa existência, tão efémera e tão séria.
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Comove tanta fraternidade universal.
É só abrir o rádio e logo um coro de anjos,
como se de anjos fosse,
numa toada doce,
de violas e banjos,
Entoa gravemente um hino ao Criador.
E mal se extinguem os clamores plangentes,
a voz do locutor
anuncia o melhor dos detergentes.
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De novo a melopeia inunda a Terra e o Céu
e as vozes crescem num fervor patético.
(Vossa Excelência verificou a hora exacta em que o Menino Jesus nasceu?
Não seja estúpido! Compre imediatamente um relógio de pulso antimagnético.)
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Torna-se difícil caminhar nas preciosas ruas.
Toda a gente se acotovela, se multiplica em gestos, esfuziante.
Todos participam nas alegrias dos outros como se fossem suas
e fazem adeuses enluvados aos bons amigos que passam mais distante.
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Nas lojas, na luxúria das montras e dos escaparates,
com subtis requintes de bom gosto e de engenhosa dinâmica,
cintilam, sob o intenso fluxo de milhares de quilovates,
as belas coisas inúteis de plástico, de metal, de vidro e de cerâmica.
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Os olhos acorrem, num alvoroço liquefeito,
ao chamamento voluptuoso dos brilhos e das cores.
É como se tudo aquilo nos dissesse directamente respeito,
como se o Céu olhasse para nós e nos cobrisse de bênçãos e favores.
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A Oratória de Bach embruxa a atmosfera do arruamento.
Adivinha-se uma roupagem diáfana a desembrulhar-se no ar.
E a gente, mesmo sem querer, entra no estabelecimento
e compra— louvado seja o Senhor!— o que nunca tinha pensado comprado.
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Mas a maior felicidade é a da gente pequena.
Naquela véspera santa
a sua comoção é tanta, tanta, tanta,
que nem dorme serena.
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Cada menino
abre um olhinho
na noite incerta
para ver se a aurora
já está desperta.
De manhãzinha,
salta da cama,
corre à cozinha
mesmo em pijama.
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Ah!!!!!!!!!!
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Na branda macieza
da matutina luz
aguarda-o a surpresa
do Menino Jesus.
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Jesus
o doce Jesus,
o mesmo que nasceu na manjedoura,
veio pôr no sapatinho
do Pedrinho
uma metralhadora.
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Que alegria
reinou naquela casa em todo o santo dia!
O Pedrinho, estrategicamente escondido atrás das portas,
fuzilava tudo com devastadoras rajadas
e obrigava as criadas
a caírem no chão como se fossem mortas:
Tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá.
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Já está!
E fazia-as erguer para de novo matá-las.
E até mesmo a mamã e o sisudo papá
fingiam
que caíam
crivados de balas.
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Dia de Confraternização Universal,
Dia de Amor, de Paz, de Felicidade,
de Sonhos e Venturas.
É dia de Natal.
Paz na Terra aos Homens de Boa Vontade.
Glória a Deus nas Alturas.
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António Gedeão
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Enviado por Cecília (hi5)
21/Dez 17:23

Bom Natal e beijinhos.
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“Não fui eu!”, “Que gente má!” e “Potentes, prepotentes e impotentes” | Quino |





Digestivo nº 138 >>> Profissão desenhista
Quino é o autor da Mafalda. Aquela garotinha cabeçuda e de canelas grossas que os nossos professores de geografia (mais especificamente, de geopolítica) adoravam. Mas Quino é humorista também, e um artista do traço. A Martins Fontes acaba de editar três álbuns de suas peripécias sem a Mafalda. Descobrimos que, para além do renitente militante de esquerda, existe um quadrinista com ótimas sacadas, que no Brasil permanece incógnito, graças aos embalos de 1968. Quino despeja muitas de suas interrogações no mundo de hoje, pós-confrontos ideológicos de vida ou de morte, ressaltando alguns absurdos cotidianos em tirinhas engraçadas. Como quando a mulher enganada responde pelo seu estado civil: – Traída. Ou como quando a velhinha muito vivida responde “Todos!” à mesma pergunta. Ou ainda quando na abertura do volume “Não fui eu!”, um garotinho é cobrado pela sua falta de concentração nos estudos, sendo que sua casa está literalmente “de cabeça para baixo”. Quino é muito hábil com o amor; seja ele romântico, filial ou até mesmo em sua modalidade “ódio”. É hilária a cena da cartomante que, lendo a mão de um cliente, enxerga o “amor de sua vida” (pelo qual ele tanto anseia), mas, logo a seguir, enxerga a tendência daquele mesmo personagem a “pular a certa” – e, não tendo dúvidas, desfere-lhe um tapa na cara. A chamada “guerra dos sexos” é um prato cheio para Quino. E também a “luta de classes” (hélas!), que recheia boa parte do volume “Potentes, prepotentes e impotentes”. Quino erra ao insistir na velha representação do mundo: os “explorados” versus os “exploradores”. Mas outros momentos, de humor menos pretensioso, valem deslizes similares. No álbum “Que gente má!”, Quino tenta entender os jovens de hoje, com sua atitude despreocupada em relação ao sexo, com suas dúzias de aparelhagens e com suas metamorfoses assustadoras. Imagina-se que não sejam seus leitores (e que os pais deles certamente o são). Quino é mais uma prova de que a tendência universalizante na arte se afirma como a mais perene de todas. Afinal, os modismos passam e os ideais – como, aliás, o próprio reconhece –, também.
>>> “Não fui eu!”, “Que gente má!” e “Potentes, prepotentes e impotentes” | Quino | Martins Fontes
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Wood & Stock - Angeli


Digestivo nº 178 >>> Psicodelia e colesterol
Os anos 60 duraram mais do que se pensava. Nos anos 80, por exemplo. Foi nessa década que Angeli concebeu e estreou, na “Folha de S. Paulo”, a dupla Wood & Stock. Quem vê Arnaldo Angeli Filho passeando, em véspera de Natal, pelo shopping Higienópolis, totalmente integrado à paisagem (roupa preta, cabelo “punk” e barbicha são “fashion” hoje em dia) não imagina o que havia de rebeldia em um dos fundadores da “Chiclete com Banana”. Era um sinal de contestação, para a juventude incipiente dos 1980s, folhear ou mesmo empunhar a revista em público. As meninas provavelmente não conheciam. Era leitura de meninos. De sexo para cima. Não havia tanta “violência” nessa época; ou então, como temática, não fazia tanto sucesso. Mas sexo, sim. Não havia internet. E a “Playboy” era um luxo quase inacessível. Quem quiser reviver esses tempos – e não os anos 60, de novo, pelo amor de Deus – deve procurar a coleção “Sobras Completas”, que a Devir e a Jacaranda estão lançando em versão “colorizada” com obras de Angeli. Estamos no quinto número e já saíram, por exemplo, os álbuns da Rê Bordosa e dos Skrotinhos (duas vezes). Wood e Stock são aqueles dois sujeitos (tá bom, dos anos 60) que pararam na era do sexo, das drogas e do rock’n’roll. Parece que nunca trabalharam; continuaram boêmios; cantando as “louquinhas” que apareciam e “viajando” de vez em sempre. Em 1987, foi profético apostar na dupla. O filme se repetiu tantas vezes – confirmando o “feeling” de Angeli – que algumas piadas até ficaram velhas. Vimos elas encenadas na vida e na arte, até cansar. Chega a ser aflitivo revisitar Wood & Stock e pensar que muita gente continua presa no “íncubo” protagonizado pelo triunvirato Jimi Hendrix, Janis Joplin e Jim Morrison. Uma geração inteira “anestesiada” que – pré-televisão – anestesiou as outras. E o mundo saiu do coma só agora. Os hippies quando não são folclóricos são mesmo vagabundos. Vamos admitir. E alguém paga a conta do baseado depois. Ainda é gostoso rir de “Wood & Stock”. Mas a realidade bate à porta.
>>> Wood & Stock - Angeli - 48 págs. - Devir/Jacaranda
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Mr. Natural - Robert Crumb

DIGESTIVOS >>> Artes

Quarta-feira, 9/12/2009
Artes
Julio Daio Borges


Digestivo nº 181 >>> Libertinos Líricos
Quem hoje navega pela internet e acha que ela é a própria manifestação do inconsciente coletivo (ou da total ausência de superego) deve saber que quem começou com essa história – de botar o bacalhau pra fora – foi, nos Estados Unidos, entre outros, Robert Crumb. Crumb é o traço por trás de “Fritz the Cat”, “Zap Comix” e, atualmente, reeditado pela Conrad, “Mr. Natural”. Na bem-comportada sociedade dos EUA nos anos 50, ele e seu irmão (que enlouqueceu e se suicidou – muito depois) colocaram suas idéias em ebulição. Crumb confessou seus desejos mais bárbaros (sexuais?) em histórias de machismo, até racismo, e subversão. Seus personagens copulam como coelhos (na era do “sexo livre”), masturbam-se a céu aberto, falam o que pensam – não protelando quaisquer vontades; não guardando nenhum recalque. Era a “liberação”. E era a “contracultura”. Robert Crumb hoje mora na França (numa cidade de que não quer dar o nome) e saiu dos Estados Unidos justamente por se preocupar com a “corrupção” a que sua filha adolescente poderia estar exposta. Não é irônico? Reclamou das drogas e, aliviado, confessou que, na terra de Napoleão, o máximo que ela poderia encontrar – para fumar – seria haxixe. Faça o que eu digo, mas não o que eu faço (ou o que, um dia, eu disse para fazer). Já Mr. Natural é um velhinho sacana de barba, que mente compulsivamente sobre sua biografia, e que não consegue escapar do estigma de “guru” – personificado pelo seu maior “cliente”, Flakey Foont. Natural conta lorotas sobre a “nova era”, para seduzir as moças desavisadas, e não se furta a explorar ingênuos e crianças – a fim de obter sempre mais prazer. Uma visão, sem escrúpulos, do macho branco adulto? Pode ser. Felizmente, Crumb, um artista prolífico, é o retrato de uma época – e julgá-lo sob as lentes do presente “politicamente correto” é uma total perda de tempo. Crumb lembra nossa adolescência de hormônios descontrolados. E só por isso já vale a pena.
>>> Mr. Natural - Robert Crumb - 119 págs. - Conrad

A Vida é um Jogo | Que Saudade, Snoopy! - Charlie M. Schulz

Quarta-feira, 9/12/2009
Artes
Julio Daio Borges


Digestivo nº 198 >>> Nós, profetas, somos muito teimosos
A lembrança mais presente do Snoopy, para a geração televisão, é aquele desenho que passava dublado, nem-sei-em-que-canal, e que colocava Charlie Brown no centro, como uma criança problema, em permanente crise de identidade. Charles Schulz, na verdade, em 2 de outubro de 1950, ao lançar a série Peanuts, antecipava o existencialismo desencantado de Woody Allen em algumas décadas. É o que se comprova com as tiras reeditadas agora, no Brasil, pela Conrad. Também em A Vida é um Jogo e Que Saudade, Snoopy! (os dois mais recentes títulos), Charlie “Minduim” Brown está em primeiro plano, encabulado entre a Garotinha Ruiva e as recorrentes investidas de Patty Pimentinha; premido entre a sua turma que “cresce” (e se transforma) e o seu cachorro (que pode não falar, mas que pensa e tem muito estilo). Schulz definitivamente criou uma obra-prima no universo das HQs e usou de inocentes criancinhas para propagar as inquietações sociais de seu país, os Estados Unidos. Lucy ou Lucíola (depende em que língua), uma protofeminista, tenta, por exemplo, implantar a psicanálise no grupo, mas sua banca de consultas psicológicas acaba confundida com uma banca de vender sucos. “Que puxa!”, diria ela, se fosse o protagonista. Já Marcie surge com complexo de inferioridade e uma queda pela idolatria, seguindo os passos (e as ordens) da Pimentinha e chamando-a, para a sua irritação, de “senhor”. Além dessas reivindicações de seu tempo, Schulz é capaz de cenas da mais absoluta poesia, no reino das histórias em quadrinhos, quando promove encontros (e desencontros) do beagle mais famoso do mundo com seu companheiro Woodstock, o passarinho de linguajar incompreensível. Snoopy então sai da imagem estática e do costumeiro ar blasé para mostrar suas traquinagens e sua própria interpretação dos dilemas humanos. Talvez incorpore nosso desejo primal de transmitir, a um ser “alienígena”, o julgamento de atos e palavras – que nos confundem tanto e nos aprisionam nesse negócio chamado “vida adulta”.
>>> A Vida é um Jogo | Que Saudade, Snoopy! - Charlie M. Schulz - Conrad

domingo, 27 de dezembro de 2009

A difícil arte de viver de graça




Digestivo nº 205 >>> A difícil arte de viver de graça

Se os anos 80-90 tiveram Angeli (Chiclete com Banana), Laerte (Piratas do Tietê) e Glauco (Geraldão), os anos 2000 já podem dizer que têm Allan Sieber, Leonardo e Arnaldo Branco – todos em volta da recém-editada revista F. (Hy Brazil Editora/ Gibiteca Editorial). Talvez não seja essa a associação mais adequada, mas, a exemplo do trio de 1980-90, são novamente Três Amigos dando o sangue e a cara para bater numa publicação quadrinística e de humor. Já o formato, grande, lembra demais o Pasquim original. Se for essa a intenção, na F. falta jornalismo e sobra artes gráficas – apesar da entrevista bombástica de Claudio Assis, o cineasta por trás de Amarelo Manga (2003). Na linha desbocada que o mesmo Pasquim consagrou, e que volta a ser moda num tempo de menos palavras e de mais palavrões, Assis cai de pau, para ficar entre seus pares, em Hector Babenco e subliminarmente nos Irmãos Salles. Embora seu filme seja também mainstream, encarna aquela atitude underground, de excluído midiático, desqualificando o “sistema” (ou o que quer que isso seja) de alto a baixo. O tom agressivo (e agredido) permeia outros momentos da revista F. É louvável, por exemplo, o ataque a algumas unanimidades nacionais. Pediram, de repente, a Arnaldo Jabor que tentasse dizer algo que não envolvesse “as ilusões perdidas de sua geração” – ele ficou calado. Provocaram, então, Caetano Veloso – e este, atacado, foi atrás de Paula Lavigne para instaurar o quebra-pau (quando a F. foi concebida, a separação ainda não tinha tido lugar). Cansam, um pouco, as obsessões com sexo, mesmo que historicamente se saiba que, nesse tipo de veículo, o tema tem apelo forte. Para terminar, Allan, Leonardo e Arnaldo fazem de si mesmos personagens, numa fotonovela que narra a sua busca por uma secretária... Um ponto forte da F. é o preço, pois por 4 reais ninguém vai se sentir lesado (e vai, ao contrário, se arriscar). Em termos de conteúdo, não é a oitava maravilha do mundo, mas, em termos de iniciativa, é fundamental para abrir as transbordantes comportas geracionais.
>>> Revista F.
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Kaboom! - Banda Desenhada




Digestivo nº 222 >>> E a bomba caiu!
Embora sejam abundantes no Brasil as histórias em quadrinhos, é rara a publicação que trata do gênero de forma adulta. As abordagens, em geral, quando existem, são condescendentes, no tom paternalista; ou então juvenis demais, espantando o leitor maduro; ou ainda puramente infantis, comunicando-se com crianças ou nem isso. Na contramão dessas opções tão conhecidas (ou na falta de), surgiu a Kaboom!, uma publicação da Eclipse Quadrinhos, só sobre o universo das HQs, mas, desde o primeiro número, tratando o assunto do ponto de vista histórico, respeitando o leitor e, ao mesmo tempo, não sendo demasiadamente professoral. É impressionante o que se coletou de informação para produzir um exemplar de 50 páginas, a R$ 4,90. Remetendo às primeiras manifestações, desde o homem das cavernas (literalmente), até a revolução dos mangás e dos animes, passando, claro, pelos super-heróis, pelos fanzines, pelos italianos, pelos europeus, pela contracultura e pelos brasileiros. Involuntariamente ou não, os editores Daniel Camerini e Leonardo Passos, com sua equipe, acabaram produzindo um verdadeiro guia para quem procura se orientar no mundo das histórias em quadrinhos, desde o século XIX pelo menos, e seus atuais desdobramentos, em videogame, no cinema e na computação gráfica. Desde Mandrake e Spirit até Capitão América; desde Osamu Tezuka, e sua princesa Safiri, até Sergio Bonelli, e seu popularíssimo Ken Parker; desde Betty Boop até Sandman; desde a Marvel até a Vertigo; desde Crumb até Schulz; desde Henfil até Allan Sieber. É até questionável o futuro da Kaboom!, já que ela praticamente esgotou o tema na primeira edição. O que virá depois? Cobertura do mercado atual? Discussão dos títulos em banca? Análise da evolução presente, tomando por base a forte perspectiva histórica? A reportagem de uma cena tupiniquim? A interação entre mídias? O público leitor? Daniel Camerini, Leonardo Passos e sua trupe, graças à realização muito além das expectativas, têm uma grande responsabilidade, em termos de continuidade, agora. Se for possível permanecer com essa equipe que produziu textos exemplares, logo na primeira oportunidade, o futuro da Kaboom! está assegurado – e a educação de geração de HQ-maníacos atinge novo patamar.
>>> Kaboom! (contato)
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Minha Vida - Robert Crumb



Digestivo nº 268 >>> Pfflflf
Qual a utilidade da vida de Robert Crumb para a juventude de hoje, quase quarenta anos depois? Talvez devêssemos puxar pelo parentesco com Angeli – que, justamente, teve como ídolo... Robert Crumb. Mas Angeli ainda é ídolo de alguém hoje, mais de vinte anos depois? Robert Crumb, provavelmente, ficará como herói da contracultura, embora detestasse o epíteto. (Aliás, alguém sabe o que é contracultura hoje?) Talvez nós devêssemos puxar pelo iPod... iPod? Sim, pelo iPod. E pelo Macintosh. (Essas duas palavras soam como música para os ouvidos da juventude de hoje.) Nos 100 anos do inventor do LSD – sim, do LSD –, ainda outro dia, a Wired arrancou uma declaração bombástica de Steve Jobs, o homem por trás da Maçã. Jobs não só fumou, como tragou – como elogiou. O famoso ácido lisérgico foi uma das suas maiores experiências em vida, confessou. (Um verdadeiro fã de Bob Dylan não negaria sua raça. Não é, José Nêumanne?) Pois então: o centro desse novo álbum de Robert Crumb, Minha Vida, pela editora Conrad, são exatamente suas “viagens” à base de LSD. E ele volta, sucessivas vezes, à sua primeira viagem mítica. Dizem que é sempre a mais importante... Alguém ainda se lembra como é que foi? Crumb a descreve em detalhes. E põe junto sua primeira esposa. E todo os delírios de seus primeiros empregos, de suas primeiras atrações sexuais – de cenários e de figuras, para ele, inolvidáveis... E para nós? Há interesse em participar da intimidade de Robert Crumb? Talvez nós devêssemos puxar agora pelos blogs. Nesse sentido, Crumb é o primeiro blogueiro em HQ. Deus, como se expõe... Ficamos relativamente cansados de Robert Crumb. Como dos blogueiros brasileiros parcos em informação. Em realidade, Crumb não precisava de substâncias alucinógenas para “viajar”, sua vida já foi uma piração. Nenhum artista precisaria, a rigor. Como provou Aldous Huxley, em Às Portas da Percepção (Jim Morrison leu, não entendeu, morreu...). Aliás o que pensaria Huxley de Crumb? O mesmo que pensou de Van Gogh e de Beethoven?
>>> Minha Vida - Robert Crumb - Conrad - 136 págs.
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O Complô – A História Secreta dos Protocolos dos Sábios de Sião - Will Eisner








Digestivo nº 307 >>> O diálogo no Inferno
São famosos os Protocolos dos Sábios de Sião; são sinônimo, no mínimo, de grande conspiração. Para quem não sabe, trata-se de um documento lendário – e forjado – anunciando um grande plano dos judeus para dominar o mundo. O título dá um caráter milenar à coisa, mas os Protocolos foram inventados há poucos séculos – embora já tenham causado ao povo judeu enormes desastres. Se alguém aí pensou em Hitler, genocídio, Segunda Guerra Mundial, não pensou errado. Ocorre que os Protocolos, mesmo sendo falsos, continuaram a se espalhar pelo mundo – como outras pragas anti-semitas: nazismo, fundamentalismo, essas coisas. Qualquer pessoa que tenha algum contato com donos de sebo, sabe que, entre os livros mais procurados (fora de catálogo), está o Mein Kampf. A curiosidade, mesmo que o mundo tenha quase acabado entre 1939 e 1945, é maior... Enfim: Will Eisner, o célebre quadrinista do século XX, resolveu dar sua contribuição para denunciar a farsa dos Protocolos. Concluiu, antes de morrer, O Complô – A História Secreta dos Protocolos dos Sábios de Sião, que a Companhia das Letras lança no Brasil agora, também em comemoração dos seus 20 anos. Will Eisner é sempre Will Eisner – e sua assinatura, obviamente, já vale. O problema talvez esteja no tema tão delicado: a fim de eliminar qualquer nuance, qualquer ambigüidade, qualquer dúvida, e enterrar de vez qualquer chance de “autenticidade” dos Protocolos, o álbum adquire um tom simplista demais, quase infantil, de um didatismo paternalista até, como se o referido Complô se resumisse a uma história de bandidos sem nenhum mocinho... Claro que é impossível, para um judeu como Eisner, admitir que os Protocolos tenham sido, pelo menos, uma farsa bem montada. Então, fica o leitor com a pergunta: se eram tão ruins assim, os Protocolos, por que pegaram dessa forma (e por que foram tão catastróficos)? Mestre Will Eisner está perdoado por não ter sido, desta vez, genial; e os Protocolos – como ele mesmo reconhece, inconsolável – seguem sua trajetória... 
O Complô – A História Secreta dos Protocolos dos Sábios de Sião
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¡Qué mala es la gente! - Adriana Baggio

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Quinta-feira, 27/5/2004
¡Qué mala es la gente!
Adriana Baggio
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O ser humano é o único animal capaz de rir. Por ser uma manifestação tipicamente humana, o riso está ligado à inteligência, à racionalidade. Onde há afeto não há espaço para o riso. Ambos são mutuamente excludentes. Esta pode ser uma explicação para o comportamento daquelas pessoas divertidíssimas, irônicas e sarcásticas, das quais se diz que se quer morrer amigo delas. São elas que verbalizam o que todo mundo pensa mas ninguém tem coragem de expor. A chatice do politicamente correto não existe para elas. Por isso, também são consideradas pessoas cruéis, insensíveis, maldosas. São como a Geni do Chico Buarque. Condenadas pela hipocrisia daqueles que se acham guardiães da moral, da boa educação e do bom comportamento, mas também exploradas por eles quando querem uma válvula de escape para a dureza e o ridículo da vida.
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Deve ser por isso que o livro de história em quadrinhos de Quino, o famoso criador de Mafalda, chama-se Que gente má! (Martins Fontes, 2003). Mais conhecido pelas tirinhas da precoce e politizada garotinha argentina, Quino explora nessa obra o futil e medíocre dos humanos, principalmente dos latinos, com todos os seus tabus e valores deturpados. Por isso mesmo o livro é maravilhoso! Rimos de nós mesmos e isso faz com que a gente se sinta melhor com nossos defeitos. É como se ao vê-los desenhados, expostos em preto no branco do papel, nos sentíssemos menos culpados por constatar que o peso dos nossos pecadilhos pode ser dividido com toda a humanidade.
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Através de desenhos e às vezes de palavras, Quino mostra diversos personagens que trazem consigo as fraquezas humanas. É lógico que, quando se fala em fraquezas humanas, a primeira coisa que vem à cabeça é sexo. Que gente má! é repleto de homens obsessivos por sexo e mulheres calipígias. Um dos quadrinhos mais engraçados mostra um garotinho na praia, tentando brincar calmamente com seu castelinho de areia, rodeado por uma profusão de peitos e bundas semi-descobertos. Perturbado, pergunta à sua mãe: “Mamãe, estou sentindo uma coisa, não sei muito bem onde, e não sei o que é. O que é?”.
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Sexo e poder são os temas mais presentes no livro. O sexo, através das temáticas que alimentam a luxúria humana, como a infidelidade de homens e mulheres, homens maduros com mulheres jovens, sonhos eróticos, a safadeza dos velhinhos. O poder, pelas situações de trabalho, a representação dos chefes, dos patrões, da polícia, dos governantes. Quino é produto de uma cultura onde sexo e poder são temáticas arraigadas. A Argentina é tão conhecida pela sensualidade do tango quanto pela violência do seu regime militar. Sem machismo nem revanchismo, Quino retrata com crueza, mas com muito bom humor, o reflexo da experiência com a sensualidade e com o poder no comportamento humano.
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O livro de Quino deveria ser referência bibliográfica para as disciplinas de lingüística e semiótica. O cartunista usa e abusa das possibilidades de significação oferecidas pelos recursos de texto e dos traços. Quino brinca, por exemplo, com o sentido denotativo e conotativo das palavras e desenhos para construir suas idéias. Transforma expressões metafóricas em desenhos figurativos, como no quadrinho em que a mulher percebe que o ex ainda está em sua cabeça quando vai arrumar os cabelos e uma pequena figura masculina aparece presa nos dentes do pente. Já em outro quadrinho, a oposição entre traços grossos e finos é o principal recurso usado pelo autor para representar o deslocamento de poder do homem para a mulher após o casamento. O humor de Quino, além de acessível e familiar pelo seu conteúdo, também utiliza elementos iconográficos da cultura popular e, talvez por isso, provoque uma identificação tão forte com o leitor.
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Quino não perdoa homens, nem mulheres, nem crianças, nem velhos. Faz pouco dos modismos como o culto ao corpo, a alimentação saudável, a vida junto à natureza. Tira sarro do computador e da nova cultura a ele relacionada. Mostra o ridículo de se valorizar demais a tecnologia e o jargão que a acompanha, e que acaba por separar o mundo entre aqueles alfabetizados tecnologicamente e os não-alfabetizados e, portanto, sem acesso às novas formas de convivência social ou profissional.
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O paradoxo de Que gente má! é justamente a humanidade presente em traços e palavras tão cruéis. Por mais realisticamente ridícula que seja a situação retratada, parece que o afeto está prestes a aparecer por trás do riso maldoso que acompanha a leitura de cada quadrinho. Passamos a sentir pena dos outros, e por fim de nós mesmos. Ficamos surpresos de sermos aquilo que está retratado. E como somos condescendentes com nossos próprios defeitos, depois do riso talvez tenhamos uma pequena crise de consciência. É nesse ponto que o humor dá lugar ao afeto. Talvez passemos a nos consolar e nos acarinhar, tentando nos convencer de que se realmente somos aquilo, podemos melhorar. Ou seja, um processo hipócrita de auto-enganação.
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Continuaremos podres, mesquinhos, infiéis e obcecados com os pecados e tabus que povoam nossa cabeça. E dessa matéria prima serão criadas obras como a de Quino, que funcionam melhor que qualquer terapia de autoconhecimento. Com a vantagem que você não precisa falar, só ler. E que terá rido em vez de chorar.
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Para atender aos fãs de Mafalda, Quino encerra o livro com uma participação especial de sua estrela, com direito a ele próprio como personagem. Nesse quadro, ele volta a pena para si e para sua mais famosa criação, talvez para mostrar que não se acha acima das misérias retratadas por traços tão críticos e mordazes.
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Para ir além

Adriana Baggio
Curitiba, 27/5/2004

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http://www.digestivocultural.com/colunistas/imprimir.asp?codigo=1362
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O Mundo é Mágico, por Bill Watterson


Digestivo nº 355 >>> O Mundo é Mágico, por Bill Watterson
Calvin e Haroldo voltaram aos holofotes com o documentário que atualmente se prepara sobre seu criador, Bill Watterson. Calvin, além de personagem insubordinado, é um daqueles casos em que a criatura se volta contra o criador — ficou tão famoso, foi tão bem-sucedido, se consagrou tanto que Watterson não suportou a pressão e se isolou. Seu comportamento eremita tem evocado a comparação com J.D. Salinger, cujo sucesso de O Apanhador no Campo de Centeio se revelou tão incômodo que ele se isolou no campo. Correm boatos de que continua escrevendo e de que suas obras vão aparecer quando morrer (já tem mais de oitenta anos). E Watterson, o que andará fazendo? Reza a lenda que suas tentativas de fazer Calvin crescer foram todas frustradas. Como não queria se repetir ad nauseam — à maneira dos Simpsons ou do Dilbert —, abandonou sua criação. Quem quiser entender o fenômeno — ou simplesmente matar as saudades da dupla Calvin & Haroldo — têm à mão, desde o ano passado, o álbum O Mundo é Mágico, pela editora Conrad. Nele, Calvin antecipa algumas tendências que, dos anos 90 pra cá, se tornaram lugar-comum no comportamento das crianças: o horror à escola (cada vez mais desinteressante); o potencial insuspeitado para o consumo (no caso dele, de lança-chamas e outros bibelôs); e um certo amadurecimento precoce à la Mafalda (numa época em que as crianças não estão mais "preservadas"). E, por mais que Watterson não quisesse na ficção, seu Calvin cresceu junto com a sua geração, a chamada "Millennial", dos que nasceram depois da internet. São melhores ou são piores do que nós? Como vão deixar o planeta e a sociedade? Talvez o documentário, só com fãs de Calvin, possa ter a resposta.
>>> O Mundo é Mágico

Castro Maya - Colecionador De Debret


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Sinopse

Castro Maya reuniu uma apreciável coleção de imagens do Brasil antigo, particularmente da cidade do Rio de Janeiro, autêntico laboratório da civilização na Colônia, no Império e na República e uma de suas maiores paixões. Este livro revisita o artista, apresentando abordagens inovadoras da obra de Debret e da coleção recuperada por Castro Maya, buscando compreender, de maneira original, o contexto histórico e social, o significado das representações imagéticas e o sentido da coleção no universo cultural de Castro Maya.
 
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http://www.livrariacultura.com.br/scripts/cultura/resenha/resenha.asp?nitem=695753
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Debret e o Brasil, pela editora Capivara



Digestivo nº 362 >>> Debret e o Brasil, pela editora Capivara
Decididamente, um dos maiores presentes, nesta comemoração de 200 anos da chegada da Família Real Portuguesa, é Debret e o Brasil, o catálogo raisonné, a obra completa do pintor-cronista francês, com organização de Julio Bandeira e Pedro Corrêa do Lago, pela editora Capivara. Jean-Baptiste Debret, primo "in law" de Jacques-Louis David ― o grande nome do neoclassicismo napoleônico ―, desembarcou no Rio de Janeiro em 1816, nos embalos da chamada Missão Francesa, e no Brasil permaneceu até 1831, documentando, como ninguém, a transformação da colônia barroca em sede, civilizadamente europeizada, do império português. Debret e o Brasil, num esforço monumental de pesquisa, reúne, pela primeira vez, mais de 1300 imagens, em mais de 700 páginas, sendo 200 obras inéditas (entre elas, seis novas pinturas a óleo recentemente descobertas). Esse trabalho hercúleo de documentação ― que permitiu a Debret ser considerado inclusive "o maior repórter" do País ― resultou na sua já clássica Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil (1834-1839), nosso principal cartão de visita na Europa do século XIX, e fonte iconográfica inesgotável, até para a formação do nosso olhar e da nossa identidade como nação. Embora Nélson Rodrigues considerasse o brasileiro médio um "analfabeto plástico", não há, entre nós, quem não tenha consigo, mesmo que no inconsciente, as imagens de Debret ― que agora, com esse catálogo raisonné, permitem, além da viagem no tempo, um mergulho no Brasil profundo, de 200 anos para cá. Com prefácio do historiador José Murilo de Carvalho, o volume ainda refaz todo o percurso das obras nele reunidas, desde sua concepção até seu paradeiro (às vezes incerto), até, muitas vezes, seu feliz retorno ao Brasil. A editora Capivara já nos havia brindado com a bela edição das obras de Debret reunidas pelo colecionador Castro Maya, mas, com este Debret e o Brasil, recoloca tanto o País quanto seu pintor-redentor novamente no circuito internacional das artes.
>>> Debret e o Brasil

DENTRO DA BALEIA E OUTROS ENSAIOS - George Orwell

 DIGESTIVOS

Sexta-feira, 24/2/2006
Digestivo nº 267
Julio Daio Borges








Literatura >>> Política versus literatura

Há muito tempo ouvimos falar dos ensaios de George Orwell, o autor de 1984 e A Revolução dos Bichos. Sua obra de não-ficção é quase tão célebre quanto seus dois clássicos como romancista. Orwell viveu intensamente a primeira metade do século XX, experimentando os impactos diretos e indiretos de duas guerras mundiais, sendo um militante de esquerda e, depois, desiludindo-se com política. Fora a aventura de ser escritor (um salve-se-quem-puder em qualquer época, mesmo que em inglês). Um pouco dessa intensidade está em Dentro da Baleia e outros ensaios (2005, Cia. das Letras, 227 págs.), com organização de Daniel Piza e orelha de Sérgio Augusto. E Orwell vale sempre pela sua honestidade intelectual. Inesquecíveis as passagens em que ele desmonta a esquerda, apontando que a melhor motivação para alguém se converter ao socialismo é a falta de trabalho ou dinheiro. Ou então desconstruindo a classe conservadora da Inglaterra, derrubando totens como Johnatan Swift, de Viagens de Gulliver – que, para Orwell, só podia ser impotente sexualmente, para ter tanto horror ao corpo... E é incrível que, de lá pra cá, o mundo tenha mudado muito, mas não tenha, ao mesmo tempo, mudado tanto. Orwell já via sinais de decadência no maniqueísmo de esquerda & direita antes da metade do século XX – mas continuam praticando-o até hoje. No Brasil... Fora os insights literários que valem, igualmente, o livro. As vivências do escritor como resenhista e até profissional do mercado livreiro, num sebo. A fatalidade de assistir à execução de um prisioneiro de guerra; o desconcerto de ter de matar um elefante; e, de repente, o dever de ter de desmascarar Gandhi (ou qualquer outro herói com alguma aura “santa”). Orwell combina a incisividade de um bom filósofo com a clareza de um grande prosador. Sempre será um autor inevitável, para quem quiser revisitar as idéias do século passado.
Dentro da Baleia e outros ensaios (trecho) - George Orwell - 2005 - 277 págs.
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Sinopse

Os brasileiros conhecem bem o George Orwell de '1984' e 'A Revolução dos Bichos', duas fábulas políticas que marcaram época pelas críticas ao totalitarismo em imagens fortes. Mas a faceta de jornalista e ensaísta, apresentada em 'Dentro da Baleia', merece igual atenção. Sua prosa de não-ficção tem a mesma capacidade de prender o leitor e, de tão cristalina e flexível, tornou-se um estilo que as boas escolas de jornalismo estudam no mundo todo. Seus temas continuam vivos por obra e graça de sua transparência corajosa poder descritivo. Mesmo as reflexões políticas circunstanciais falam ao leitor de hoje. A organização do livro, a cargo do jornalista Daniel Piza, procura abarcar a variedade de assuntos que interessava a Orwell. Na primeira parte, o autor escreve sobre a carreira de escritor e lembra o período em que trabalhou como vendedor num sebo de livros. Ele também discute a arte da resenha e cria a categoria dos 'bons livros ruins', aqueles que seguimos lendo com empolgação mesmo cientes dos defeitos. Na segunda parte, temos o Orwell memorialista e analista político. Textos como 'Um enforcamento' e 'O abate de um elefante' são clássicos do jornalismo literário. Em 'Reflexões sobre Gandhi', Orwell causa controvérsia ao criticar a vaidade do pacifista mais famoso do século XX. Na terceira e última parte, literatura e política se misturam ainda mais, e ele examina autores como H. G. Wells, Tolstoi, Swift e Mark Twain à luz de suas opções políticas.

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O que a imprensa diz sobre: DENTRO DA BALEIA E OUTROS ENSAIOS
Estado de Minas  / Data: 11/2/2006
Política no ventre da baleia
João Paulo
George Orwell (1903-1950) entrou para a história como autor de dois romances políticos de denúncia, A revolução dos bichos e 1984. Entrar para a história não é apenas força de expressão. Com os dois volumes, ele se tomou um dos mais importantes críticos da experiência stalinista e do autoritarismo velado das chamadas sociedades livres, mesmo que pela força da metáfora. Orwell era um homem de esquerda, no sentido forte da palavra: era contra as injustiças, acreditava na ação política e confiava na direção civilizadora da história. De esquerda, mas nunca comunista. Antes de ser romancista - e talvez muito além de ficcionista -, George Orwell foi um jornalista ligado no seu tempo. Sua crítica e visão de mundo vêm exatamente de sua ética profissional: ele analisava o que se passava à sua volta, criticava o poder e apresentava seu olhar de maneira sempre clara. Não são muitos, atualmente, os jornalistas que agem assim, tanto na inteligência como na forma. Por isso a coletânea Dentro da baleia e outros ensaios tem, ainda hoje, grande interesse. O livro se divide entre os dois campos que tomaram a atenção de Orwell: a política e a arte. A seleção de Daniel Piza é equilibrada e inteligente. Na primeira parte, "Palavras, palavras", estão reunidos textos confessionais, que explicam de forma corajosa algumas das posturas do autor. No artigo "Por que escrevo", por exemplo, ele entrega: "Todos os escritores são vaidosos, egocêntricos e ociosos". Ao falar sobre o comércio de livros, confessa que está cansado de volumes antigos e, no texto sobre resenhas, afirma que a maioria dos livros não merece esse esforço. E completa: há mesmo livros considerados ruins que são mais úteis que obras-primas. Ao tratar de política, George Orwell se desdobra em duas vertentes. Numa, mostra sua vocação jornalística, ao narrar fatos da ocupação britânica e denunciar as condições subumanas de hospitais europeus. Orwell conhecia a realidade da classe trabalhadora e sabia que o sucesso da esquerda se devia mais ao desemprego que à ideologia marxista. A outra vertente, da crítica do poder, está representada no já clássico texto sobre Gandhi, em que parece mostrar o que todos viam e não tinham coragem de apontar: o projeto medievalista incapaz de resolver as grandes questões do país e a porção de vaidade presente na ação do líder indiano. George Orwell foi ainda bom analista de literatura, capaz de intuições argutas sobre Tolstoi, H.G. Wells e Henry Miller. Mas também de erros, como considerar a literatura de Mark Twain inferior à de Anatole France. Para um defensor da liberdade, é uma mancha sua participação na elaboração de listas de intelectuais criptocomunistas. Seu empenho era transformar política em arte. Talvez tenha falhado, ao achar que era possível estetizar a política. Mesmo nos erros, em muito menor número que os acertos, foi homem de seu tempo.

Veja  / Data: 21/12/2005
O paranóico lúcido
Sombrio nas previsões e certeiro na crítica ao totalitarismo, George Orwell foi um dos maiores ensaístas do século XX
Jerônimo Teixeira Naquela que é sua previsão central, George Orwell errou. "Estamos rumando para uma era de ditaduras totalitárias", escrevia ele, em 1940, no artigo que dá título a Dentro da Baleia e Outros Ensaios (tradução de José Antonio Arantes; Companhia das Letras; 228 páginas), coletânea organizada pelo jornalista Daniel Piza. Os novos tempos que se anunciavam seriam os mais sombrios da história: o "indivíduo autônomo" seria eliminado da existência. Naquele momento, com a II Guerra Mundial em seus princípios, o prognóstico de Orwell talvez não fosse tão exagerado. Mas, mesmo depois da derrota de Hitler, o escritor ainda sustentaria a mesma tenebrosa profecia no seu último e mais conhecido romance. Escrito em 1948 e publicado no ano seguinte, 1984 descrevia um mundo opressivo no qual os cidadãos vivem sob a permanente vigilância de um Estado autoritário. Essa projeção ficcional felizmente não se concretizou. Os anos 80 do século XX, pelo contrário, assistiram ao início da derrocada do comunismo soviético, a inspiração mais imediata de 1984. Não é por nada que já se falou até de um componente paranóico na obra de Orwell. Mas foi esse alarmismo militante que o manteve firme na recusa de toda e qualquer forma de tirania. Ele foi dos poucos intelectuais da esquerda européia que não flertaram com o stalinismo. Pelo contrário, fez da denúncia da barbárie comunista uma de suas missões como jornalista e escritor. Orwell era uma contradição ambulante: o paranóico lúcido. Filho de um funcionário colonial inglês, George Orwell (nome literário de Eric Arthur Blair) nasceu na Índia, em 1903. Na juventude, tentou seguir os passos do pai e serviu como policial numa colônia britânica, a Birmânia (atual Mianmar). Data daí sua profunda desilusão com a violência do colonialismo, expressa em dois dos mais poderosos textos da coletânea, Um Enforcamento e O Abate de um Elefante. De volta à Europa, no fim dos anos 20, viveu entre Paris e Londres, trabalhando como vendedor de livraria, resenhista de livros e jornalista. Foram anos duros, que o autor relatou em Down and Out in Paris and London (algo como Na Pior em Paris e Londres). Chegou a viver entre mendigos, embora haja quem diga que ele romantizou esse trecho da própria biografia: o que era apenas vida boêmia e dissipação foi transformado em pobreza e privação. Mas o empenho de Orwell pelas causas políticas e sociais estava longe de ser apenas festivo. Em 1936, ele viajou para a Espanha para lutar pelos republicanos na Guerra Civil. Foi ferido no pescoço, o que lhe deixou seqüelas permanentes. Dali em diante, só conseguiria falar em tom baixo (o que não o impediu de trabalhar para a rádio BBC durante a II Guerra). Foi com um devastador ataque aos rumos autoritários da revolução russa que Orwell alcançou o sucesso de público como escritor. A fábula A Revolução dos Bichos, de 1945, é uma bela realização de um ideal do autor: transformar a escrita política em arte. Mas é como ensaísta que o poder de fogo de Orwell se mostra mais certeiro e destruidor. Impecáveis tanto na elegância do estilo quanto na lógica argumentativa, os artigos de Orwell desmontam enganos e contradições do pensamento esquerdista. Embora tenha sempre se declarado um socialista, o escritor se recusava a obedecer a qualquer linha partidária. "A aceitação de qualquer disciplina política parece ser incompatível com a integridade literária", escreve Orwell. Sua integridade, porém, sofreu um golpe póstumo grave quando se descobriu, nos anos 90, que Orwell entregara uma lista de "criptocomunistas" aos serviços de informação britânicos, em 1949 (um ano antes de morrer de tuberculose). Entre os "companheiros de viagem" do Partido Comunista apontados pelo dedo duro de Orwell encontravam-se escritores como J.B. Priestley e atores como Charles Chaplin. Apenas um dos acusados era de fato um espião a serviço dos soviéticos – o jornalista Peter Smollett, também suspeito de ter aconselhado um editor inglês a recusar A Revolução dos Bichos. Ao que parece, a lista destinava-se apenas a evitar que o governo inglês contratasse comunistas em potencial, e nenhum dos acusados sofreu alguma forma de retaliação (a Guerra Fria na Europa não produziu os efeitos histéricos que se viram nos Estados Unidos do macarthismo). Mas é melancólico saber que o escritor tenha se rebaixado à delação anônima – logo ele, que em 1984 criticou a vigilância estatal do "Grande Irmão" (o Big Brother, ironicamente convertido em nome de reality show). George Orwell acabou traído por sua própria paranóia.
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http://www.livrariacultura.com.br/scripts/cultura/imprensa/imprensa_diz.asp?nitem=3185276&sid=184105107111226645935820425&k5=39F72278&uid=
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