terça-feira, 19 de janeiro de 2010

Clarice Lispector revelada para o público de Brasília


 

Cultura

Vermelho - 10 de Dezembro de 2009 - 15h33

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Um dia antes de completar 57 anos, Clarice Lispector morreu. Em 9 de dezembro de 1977, a escritora deixou os leitores órfãos de suas linhas herméticas. Porém, até 14 de março, a vida e a obra da autora poderão ser revisitados por meio de fotografias e manuscritos de seus livros na mostra "Clarice Lispector - A Hora da Estrela", em cartaz no Centro Cultural Banco do Brasil do Distrito Federal desde a última terça-feira (1).

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"Acho que loucura é perfeição. É como enxergar. Ver é a pura loucura do corpo". Logo na entrada da exposição, o espectador é fulminado por um daqueles relâmpagos poéticos reveladores da escritora. Mesmo os que conhecem muito bem a obra de Clarice ficam com a impressão de entrar em contato pela primeira vez com o seu universo, marcado pelo desejo de tocar no mistério, dizer o indizível, entrar em sintonia com o coração selvagem da vida.
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"…E descobri que não tem um dia a dia. É um vida a vida. E que a vida é sobrenatural". A exposição traduz Clarice em artes plásticas, cenografia, arte contemporânea e videoarte, jogando a sua obra em um espaço onírico, surreal, fantasmagórico. É para sonhar acordado, revisitando a cabeça, o cotidiano e a alma de Clarice.
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Clarice Lispector — a hora da estrela já passou por Rio de Janeiro e São Paulo, foi vista por mais de 50 mil pessoas e chega agora a Brasília para uma temporada no Centro Cultural Banco do Brasil. A exposição tem curadoria de Ferreira Gullar e Julia Peregrino, com cenografia de Daniella Thomas e Felipe Tassara.
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O projeto surgiu a partir de um convite do Museu da Língua Portuguesa de São Paulo no sentido de ampliar uma mostra que Júlia havia organizado em 1992, no Rio, na passagem dos 15 anos da morte de Clarice.

"Convidei o Gullar porque queríamos um olhar de poeta e a Daniela para conseguirmos uma cenografia inovadora. Não pretendemos esgotar o que a Clarice escreveu. A proposta é provocar o espectador para que ele vá atrás das obras para ler. E, para quem já conhecia, que queira saber mais."
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Ao longo de toda a exposição, Clarice nos mira com os seus olhos felinos, detrás de fotos e transparências, e nos atinge com suas frases fulminantes, que batem direto no coração. A sua figura ampliada em fotos e impressa em filó preto provoca a mesma inquietação que seus textos. Ela é uma estrela com luz própria, não depende da mídia ou do marketing para brilhar: "Oh, Deus, que faço desta felicidade ao meu redor que é eterna, eterna, eterna, e que passará daqui a um instante porque o corpo só nos ensina a ser mortal?"
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Uma das salas parece um pesadelo de Kafka, com 1.165 gavetas, sendo que só 55 se abrem de fato. Em algumas, o espectador poderá manusear documentos originais de Clarice. O acervo pertence ao filho da escritora, que zela pelo material com cuidado e discrição: "Ele é um exemplo de como cuidar da obra de um gênio", comenta Júlia.
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Ela conta que alguns visitantes abrem as gavetas com documentos e, literalmente, choram: "As novas gerações estão acostumadas a fazer navegações virtuais. Elas precisam aprender a preservar determinadas coisas. Por isso, fizemos questão de apresentar os documentos originais. Todos os documentos que estão ali têm vida, têm alma".
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Em um outro ambiente é possível assistir a uma entrevista de 21 minutos, a uma emissora de televisão, a última que concedeu, oito meses antes de morrer. As perguntas do entrevistador foram apagadas e Clarice fala solitariamente em um quarto escuro como se fosse uma voz de outro mundo. Parece que ela está viva: “Não sou triste, estou triste”, diz, a certa altura, Clarice.
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No Rio, um pai levou o filho cego, de 10 anos, para ver a exposição. Ele ia narrando as frases para que o filho acompanhasse. Júlia foi conversar com o menino. Ele contou que havia lido em braille todos os livros de Clarice para crianças. Júlia colocou uma cadeira para que ele pudesse ler as frases de Clarice em alto relevo numa das salas da exposição: "Quer dizer, mesmo sem visão você pode ler Clarice, pois como ela mesma diz: “Olhar é a pura loucura do corpo."
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Guimarães Rosa dizia que se interessava por alguns autores em razão do valor da literatura que produziam. Mas que lia Clarice por causa da vida: "Ave, Maria!", comenta Júlia. "Eu fico tocada ao entrar em contato com Clarice. Ela sempre mexe fundo com a gente. Ela consegue fazer um texto de multiuso. A gente não sabe onde está batendo mais. Ela é talvez a maior escritora que o Brasil pôde criar."
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Pernambucana da Ucrânia
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Clarice Lispector (1920-1977) nasceu na Ucrânia, na cidade de Tchetchelnik, mas mudou-se com a família para o Recife, quando tinha dois anos, e, apesar de escolher o Rio para morar, considerava-se pernambucana. Desde muito cedo, Clarice revelaria a singularidade do seu talento: os contos que ela enviou, aos 11 anos, para a seção infantil do Diario de Pernambuco foram recusados porque ela tratava menos de fatos e mais de sensações. O seu primeiro romance, Perto do coração selvagem, recebeu críticas favoráveis de Antônio Cândido, Sergio Milliet e Lúcio Cardoso.
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Clarice escreveu contos, romances e crônicas à sua maneira, quer dizer, preocupada menos em contar uma história do que em realizar reflexões existenciais desconcertantes, rompendo com a lógica e tentando dizer o indizível.
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"A resposta de um mistério é sempre outro mistério", escreveu. No romance A paixão segundo G.H., ela extrai transcendência da relação de uma mulher com uma barata no quarto da empregada. A liberdade com que Clarice escreveu seus textos embaralha os gêneros literários e aproxima sua linguagem das iluminações da poesia. O impressionante é que a sua literatura de meditação radical sobre a existência, sem nenhuma concessão ou complacência, conquista a cada dia mais leitores.
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Fonte: Correio Braziliense

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