quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

Carta Aberta ao meu camarada Manuel Bernardo - Rodrigo de Sousa e Castro

Carta Aberta ao meu camarada Manuel Bernardo

            Rodrigo de Sousa e Castro

Caro camarada,


Não o conheço pessoalmente, sigo todavia a sua intermitente intervenção política, sob forma escrita, a propósito dos acontecimentos que vivemos há cerca de três décadas.


Nunca emiti publicamente qualquer juízo de valor acerca das suas opiniões políticas e outras, apesar de em relação a algumas delas discordar profundamente. Que me recorde, apenas por uma vez me interessei pela sua pessoa, perguntando  ao nosso camarada Vasco Lourenço por si. Foi-me então dito que o camarada tinha sido um dos raros oficiais, de patente abaixo de tenente-coronel, saneados na sequência do 25 de Abril. A conversa ficou por aí.


Inicio por isso esta missiva, partindo da seguinte convicção: o camarada foi provavelmente alvo de uma injustiça, da parte de militares que como eu se empenharam na Revolução Libertadora, e que não lhe reconheceram na altura a sua hoje proclamada adesão aos valores da Democracia, Liberdade e Pluralismo. Apesar da probabilidade de termos errado, é absolutamente certo que se indícios houvesse, por ínfimos que fossem, de que se tinha empenhado no derrube da ditadura, tal acto não se verificaria. Creio que não negará esta evidência e aceitará que ela balize, desde já, esta minha resposta. 


Em relação aos acontecimentos anteriores a 25 de Abril de 1974, nos quais estive razoavelmente envolvido, não encontro de si registo significativo em nenhum deles. Em relação ao 16 de Março de 1974 e ao 11 de Março de 1975, no que vai ficar para a História, não reza qualquer intervenção significativa da sua parte. Fiquei agora a saber que os acontecimentos de 28 de Setembro de 1974 o perturbaram significativamente.


Afirma que desde “finais de 1974 a fins de 1975, praticamente passava todos os dias no gabinete do Coronel Jaime Neves…”. Tal facto, por si só, permite concluir que o camarada foi um dos mais destacados oficiais que fizeram a contenção do aventureirismo esquerdista de Novembro de 75, integrando ou o grupo político dos moderados ou o seu grupo militar de apoio. No mínimo, terá sido um conselheiro privilegiado do comandante dos Comandos da Amadora. Não posso por isso de deixar de o felicitar pela discrição, quando apela ao reconhecimento público da acção de grandes revolucionários e democratas esquecidos, como Mariz Fernandes, José Pais, Lobato Faria e outros, renunciando a enunciar a sua própria acção. Considero-o pois, desde já, um “ certo capitão” de Novembro. Consideração que constitui a outra baliza da minha resposta.


Apesar de a sua carta constituir, no essencial, um enunciado caótico de acusações, relatos falsos de factos historicamente provados e juízos de valor de discutível pertinência, não posso deixar de o felicitar por sair à liça em defesa de Jaime Neves o que não deixa de ser um são acto de camaradagem.

E comecemos por aqui. Acusa-me de utilizar a técnica da omissão. Todavia, nas citações que faz do meu livro, descontextualizando-as demagogicamente, afirma-se afinal perito nessa técnica. Por exemplo quando me cita sobre o que digo em relação a Jaime Neves: “… em 25 de Novembro, emerge impante como comandante da força aríete. Eanes fará dele, publicamente, o herói do momento e da circunstância…”, porque é que o camarada não continua a citação? Vou então eu fazê-lo: “… Jaime Neves, numa estranha manifestação de gratidão, responder-lhe-á com o apoio indefectível a Soares Carneiro durante as Presidenciais de 1980, corroborando o coro de ataques e insultos ao seu comandante de Outono de 1975”. Leu agora bem o que eu escrevi, camarada? Existe um dito popular para qualificar aquela atitude de Jaime Neves, o povo diz que é “ morder a mão do dono” !


Apenas um outro exemplo da sua, essa sim, descarada “técnica” de descontextualização e omissão. Quando digo, convictamente, que Jaime Neves é um zero à esquerda do ponto de vista político faço-o no quadro da seguinte afirmação: “Era realmente um homem extraordinariamente valoroso em termos de combate, decidido, mas politicamente um zero à esquerda”. Diferente, não é camarada? Tão diferente que arrisco-me a dizer que poucos, dos que conhecem Jaime Neves, no Exército Português e fora dele, não corroborarão tal afirmação, por certeira e justa.


Vejamos agora outras questões que levanta na sua carta:


1.    Em 28 de Setembro, como relato no meu livro, estou em Cascais a comandar a Bateria de Instrução, com a consciência que era um oficial para quem todo o quartel olhava naquela conjuntura difícil. Estava ainda com Otelo e contra Spínola e não hesitei um segundo. Devo lembrar-lhe que Jaime Neves estava com Otelo e que por essa altura, em jeito de “bravata”, afirmava que liquidando uns quantos fascistas resolvia a situação. Era ainda a lua de mel com Otelo... 
     
2.    Anoto também a opinião que reproduz de Manuel Monge sobre a descolonização, alinhando, aliás, no coro insensato e desleal de atribuirmos aos nossos camaradas sejam eles conotados com a direita ou com a esquerda  responsabilidades politicas primeiras e quase exclusivas, em tal processo, quando, para além de Spínola e do Conselho de Estado da altura - onde pontificavam ilustres apoiantes de Spinola e personalidades como Freitas do Amaral - foram Mário Soares e Almeida Santos os protagonistas do essencial da política de descolonização.  Mário Soares, “porta-voz” da Internacional  Socialista, Ministro dos Negócios Estrangeiros no I,II e III Governos Provisórios, o período decisivo da descolonização. O mesmo Mário Soares que sempre protegeu alguns militares (e só esses), como Pires Veloso, Jaime Neves e outros, incluindo  Manuel Monge, a quem por fim o Partido Socialista veio a fazer Governador Civil. Neste particular aspecto (o da descolonização) vou lembrar ao camarada o que ficará para a história: Rosa Coutinho sai de Angola quando é assinado, livremente, o acordo de Alvor entre os três movimentos angolanos, que estavam à altura em absoluto pé de igualdade. Mário Soares era à época Ministro dos Negócios Estrangeiros e continuará a sê-lo até Março seguinte. Interessante, não é? Pois  é camarada, para algumas pessoas, nem as evidências históricas, nem o tempo que aconselha à reflexão, conseguem atalhar o facciosismo. 
     
3.    Denuncio o saneamento político de Rosa Coutinho tal como denunciaria o seu, se tivesse elementos para isso (julgo até que pela sua eventual iniquidade terão bastante paralelismo). Faço uma mera apreciação política, discutível por certo, sobre a  actuação daquele militar em Angola, donde regressou, aliás, muito antes da data da independência, como se deve recordar; 
     
4.    Foram os militares moderados do Conselho da Revolução que autorizaram e impuseram o recrutamento das companhias de comandos, e a quem mais poderiam recorrer senão a ex-comandos e à própria Associação de Comandos?
     
5.    A sugestão de que eu me moveria por interesses de promoções cai pela base no momento em que me recusei a admitir sequer a hipótese de ser graduado para comandar a Região Militar Norte em substituição de Corvacho, tal como desejavam muitos camaradas nossos da RMN. Sobre questões desse género peço meças a todos os nossos camaradas; 
     
6.    Passei à reserva, apesar de alguns ilustres artilheiros terem insistido na minha continuação no activo, e dediquei-me a negócios privados, partindo do zero e trabalhando no duro para atingir o nível de vida que hoje felizmente usufruo. Talvez a imagem de um ex-conselheiro da Revolução, que nada pediu e nada obteve da dita, carregando caixotes de mercadoria, ora em carrinhas,  pelas estradas de Portugal, ora aos ombros abastecendo lojas da região de Lisboa, - “sem lhe caírem os parentes na lama”-, o pudesse levar a reflectir sobre a arrogante dimensão do seu sectarismo. 
     
7.    A tropa , os políticos e a Pátria nada me devem e pago-lhes integralmente na mesma moeda: eis o meu passaporte de homem livre e livre pensador, capaz de criticar e fazer auto-crítica. Eis porque caminho de cabeça levantada.

Por outro lado, algumas inexactidões da sua carta são tão flagrantes que não me dispenso de o corrigir:


      1.    Quem prendeu Pato Anselmo e o neutralizou foi um cidadão CIVIL, de seu nome Brito e Cunha, armado com uma pistola que lhe foi cedida na altura por Salgueiro Maia, após Jaime Neves, nesse dia com visível azar, ter “fracassado” também nessa missão. Este é um facto histórico, por muito que nós militares o não o evidenciemos ou o neguemos mesmo.
      2.    Jaime Neves NÃO chegou antes de Salgueiro Maia ao Terreiro do Paço, mas sim depois, e após ter anunciado a Otelo no Posto de Comando as razões dos seus “fracassos” naquela madrugada;
      3.    O coronel Costa Campos nunca esteve no Terreiro do Paço. Refere-se certamente ao coronel Correia de Campos, oficial superior enviado para o Terreiro do Paço, a pedido expresso de Salgueiro Maia;
      4.    NUNCA trabalhei com Inês de Medeiros, que aliás não conheço pessoalmente, sendo absolutamente critico em relação à caricatura de filme que produziu, pretensamente sobre o 25 de Abril. Francamente, camarada, não sei onde raio poderá ter ido buscar tal ideia!!!

Quanto às inusitadas considerações sobre o acto cívico de Marcelo Rebelo de Sousa dispenso-me de as comentar, mas não posso terminar sem lhe fazer uma pergunta. Depois de ter lido (e leu com toda a certeza) o livro do brigadeiro Pires Veloso,  e de ter constatado os insultos que aquele nosso camarada profere em relação ao homem e ao militar que é Ramalho Eanes, não lhe ocorreu na altura escrever uma carta aberta ao Bispo Emérito de Setúbal D. Manuel Martins, apresentador do livro, ou a Mário Soares autor do prefácio?

 Pois não, não lhe ocorreu.  É pena…      Do camarada   Rodrigo de Sousa e Castro

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