quarta-feira, 14 de julho de 2010

Algumas memórias, muita história política

Memórias

Algumas memórias, muita história política

  • Álvaro Cunhal - Sete Fôlegos do Combatente
  • Carlos Brito
  • Edições Nelson de Matos
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  • Carlos Brito reconstitui um Cunhal sempre à vontade entre militantes, mas muito menos à vontade fora destes círculos de proximidade e longe do modo de vida do povo em nome do qual combatia
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    Quem procurar em "Álvaro Cunhal - Sete Fôlegos do Combatente" pormenores sobre a vida íntima, ou mesmo sobre a vida privada, do líder histórico do PCP irá ao engano. Apesar de se apresentar como um livro de memórias, e de o autor ter privado de perto durante mais de três décadas com o antigo secretário-geral, este é um livro político onde os episódios que Carlos Brito recorda servem, sobretudo, para sublinhar ou ilustrar opções políticas.
    Álvaro Cunhal nunca quis expor-se publicamente. Ele representava "o partido", e apenas "o partido", com todas as consequências que isso tem e que Carlos Brito mostra bem neste livro. Por isso sempre foi grande a curiosidade por saber mais sobre a vida privada do líder comunista. Tinha família? Como se relacionava com os filhos? Onde morava? Como ocupava os tempos livres? Cunhal quase nunca permitiu que o véu se levantasse, e sempre que o fez foi apenas parcialmente. Quando não quase desastradamente, como sucedeu na altura em que aceitou falar um pouco de si numa entrevista à RTP e acabou a dizer que vivia com o salário mínimo e isso lhe chegava, deixando furiosos os sindicalistas do PCP. Pior: sem que, como se conta neste livro, tivesse esclarecido que o bonito fato que tinha vestido, assim como a sua gravata de seda, haviam sido ofertas de camaradas comunistas...
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    Esta regra de discrição não é quebrada por Carlos Brito - como não fora quebrada por José Pacheco Pereira nos três volumes que já editou sobre a vida de Cunhal. Há muitos episódios particulares que são recordados neste livro, mas quase todos se relacionam com a forma como Cunhal tomava decisões políticas, lidava com os quadros comunistas ou impunha a sua vontade. Vemos confirmada a forma como estava como peixe na água nos conclaves do movimento comunista internacional, acompanhamos o cuidado que tinha na redacção da maioria dos documentos do PCP, somos levados a recordar a forma fria como lidava com os que entravam em divergência - mas nunca passamos para lá da linha que protege a vida privada de Cunhal. Mesmo a sua aproximação da Fernanda Barroso, a última companheira, é descrita unicamente para mostrar como era discreto, mesmo entre camaradas, quando tocava aos que lhe eram mais próximos.
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    Ainda assim, a leitura deste "Álvaro Cunhal - Sete Fôlegos do Combatente" não nos leva apenas a revisitar as suas sucessivas posições políticas - os seus "fôlegos" (ver texto na pág. 26 e segs.) -, antes humaniza o dirigente político que, na escrita solta e escorreita de Carlos Brito nos surge com mais espessura do que na literatura oficialista. Por vezes isso beneficia Cunhal, outras vezes revela-nos um homem demasiado preso pela ideologia e incapaz de imaginar um PCP diferente do "seu" PCP.
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    Entre os aspectos mais curiosos do livro encontramos, por exemplo, a descrição detalhada da forma como as suas relações com a esquerda militar, no Verão Quente de 1975, se foram degradando ao ponto de marcar distâncias relativamente a Vasco Gonçalves. A sua crítica aos excessos de entusiasmo dos que acreditavam ser "a vanguarda" traduziu-se mesmo, mais tarde, na sua frontal oposição à nomeação de José Saramago para a direcção de "o diário" em 1976, pois não apreciara o seu radicalismo quando estivera à frente do "Diário de Notícias" em 1975. À conta dessa oposição, Saramago acabaria por deixar os jornais para, no Alentejo, com o apoio das estruturas locais do PCP, preparar o seu primeiro romance de grande impacto, "Levantado do Chão".
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    Um outro episódio muito sintomático da sua habilidade para resolver situações potencialmente complicadas é o da deslocação de um deputado do PCP numa delegação oficial a Marrocos. O deputado recusou-se terminantemente a usar gravata até que Cunhal sugeriu que, para cumprir com o protocolo do Reino, adoptasse um traje regional português, o que aterrorizou de tal forma esse militante que logo mandou vir as gravatas...
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    Mesmo assim, o que sobressai deste livro é a figura de um Cunhal sempre à vontade entre militantes e quando se fechava para escrever os documentos programáticos do partido e os seus discursos (por regra nunca falava de improviso), mas muito menos à vontade quando saía destes círculos de proximidade. Um Cunhal que, como se reconhece a dado momento, estava longe do sentir e da forma de viver do povo em nome do qual combatia.
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    Uma nota final: um livro como este ganharia imenso com um índice remissivo. É mesmo incompreensível como os editores portugueses continuam a menosprezar este importante instrumento de leitura.
     

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