sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

Poesia de Natal (Portugal)

PRELÚDIO DE NATAL

Tudo principiava
...pela cúmplice neblina
que vinha perfumada
de lenha e tangerinas

Só depois se rasgava
a primeira cortina
E dispersa e dourada
no palco das vitrinas

a festa começava
entre odor a resina
e gosto a noz-moscada
e vozes femininas

A cidade ficava
sob a luz vespertina
pelas montras cercada
de paisagens alpinas

David Mourão-Ferreira
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A NOITE DE NATAL
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Em a noite de Natal
Alegram-se os pequenitos;
Pois sabem que o bom Jesus
Costuma dar-lhes bonitos.
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Vão se deitar os lindinhos
Mas nem dormem de contentes
E somente às dez horas
Adormecem inocentes.
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Perguntam logo à criada
Quando acorde de manhã
Se Jesus lhes não deu nada.
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– Deu-lhes sim, muitos bonitos.
– Queremo-nos já levantar
Respondem os pequenitos.
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Mário de Sá-Carneiro
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História Antiga
Miguel Torga
  Era uma vez, lá na Judeia, um rei.
Feio bicho, de resto:
Uma cara de burro sem cabresto
E duas grandes tranças.
A gente olhava, reparava e via
Que naquela figura não havia
Olhos de quem gosta de crianças.

E, na verdade, assim acontecia.
Porque um dia,
O malvado,
Só por ter o poder de quem é rei
Por não ter coração,
Sem mais nem menos,
Mandou matar quantos eram pequenos
Nas cidades e aldeias da nação.

Mas, por acaso ou milagre, aconteceu
Que, num burrinho pela areia fora,
Fugiu
Daquelas mãos de sangue um pequenito
Que o vivo sol da vida acarinhou;
E bastou
Esse palmo de sonho
Para encher este mundo de alegria;
Para crescer, ser Deus;
E meter no inferno o tal das tranças,
Só porque ele não gostava de crianças.

(Miguel Torga)
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 Poema de Natal
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Não digo do Natal – digo da nata
do tempo que se coalha com o frio
e nos fica branquíssima e exacta
nas mãos que não sabem de que cio
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nasceu esta semente; mas que invade
esses tempos relíquidos e pardos
e faz assim que o coração se agrade
de terrenos de pedras e de cardos
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por dezembros cobertos. Só então
é que descobre dias de brancura
esta nova pupila, outra visão,
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e as cores da terra são feroz loucura
moídas numa só, e feitas pão
com que a vida resiste, e anda, e dura.
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Pedro Tamen
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NATAL
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Acontecia. No vento. Na chuva. Acontecia.
Era gente a correr pela música acima.
Uma onda uma festa. Palavras a saltar.
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Eram carpas ou mãos. Um soluço uma rima.
Guitarras guitarras. Ou talvez mar.
E acontecia. No vento. Na chuva. Acontecia.
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Na tua boca. No teu rosto. No teu corpo acontecia.
No teu ritmo nos teus ritos.
No teu sono nos teus gestos. (Liturgia liturgia).
Nos teus gritos. Nos teus olhos quase aflitos.
E nos silêncios infinitos. Na tua noite e no teu dia.
No teu sol acontecia.
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Era um sopro. Era um salmo. (Nostalgia nostalgia).
Todo o tempo num só tempo: andamento
de poesia. Era um susto. Ou sobressalto. E acontecia.
Na cidade lavada pela chuva. Em cada curva
acontecia. E em cada acaso. Como um pouco de água turva
na cidade agitada pelo vento.
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Natal Natal (diziam). E acontecia.
Como se fosse na palavra a rosa brava
acontecia. E era Dezembro que floria.
Era um vulcão. E no teu corpo a flor e a lava.
E era na lava a rosa e a palavra.
Todo o tempo num só tempo: nascimento de poesia.
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Manuel Alegre
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Se considero o triste abatimento
Em que me faz jazer minha desgraça,
A desesperação me despedaça,
No mesmo instante, o frágil sofrimento.
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Mas súbito me diz o pensamento,
Para aplacar-me a dor que me traspassa,
Que Este que trouxe ao mundo a Lei da Graça,
Teve num vil presepe o nascimento.
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Vejo na palha o Redentor chorando,
Ao lado a Mãe, prostrados os pastores,
A milagrosa estrela os reis guiando.
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Vejo-O morrer depois, ó pecadores,
Por nós, e fecho os olhos, adorando
Os castigos do Céu como favores.
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Manuel Maria Barbosa du Bocage
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ROSAS DE INVERNO
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Corolas, que floristes
Ao sol do inverno, avaro,
Tão glácido e tão claro
Por estas manhãs tristes.
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Gloriosa floração,
Surdida, por engano,
No agonizar do ano,
Tão fora da estação!
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Sorrindo-vos amigas,
Nos ásperos caminhos,
Aos olhos dos velhinhos,
Às almas das mendigas!
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Desse Natal de inválidos
Transmito-vos a bênção,
Com que vos recompensam
Os seus sorrisos pálidos.
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Camilo Pessanha
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OS PASTORES
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. Guardavam certos pastores
seus rebanhos, ao relento,
sobre os céus consoladores
pondo a vista e o pensamento.

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Quando viram que descia,
cheio de glória fulgente,
um anjo do céu do Oriente,
que era mais claro que o dia.

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Jamais os cegara assim
luz do meio-dia ou manhã.
Dir-se-ia o audaz Serafim,
que um dia venceu Satã.

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Cheios de assombro e terror,
rolaram na erva rasteira.
– Mas ele, com voz fagueira,
lhes diz, com suave amor:

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«Erguei-vos, simples, daí,
humildes peitos da aldeia!
Nasceu o vosso Rabi,
que é Cristo – na Galileia!

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Num berço, o filho real,
não o vereis reclinado.
Vê-lo-eis pobre e enfaixado,
sobre as palhas de um curral!

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Segui dos astros a esteira.
Levai pombas, ramos, palmas,
ao que traz uma joeira
das estrelas e das almas!»

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Foi-se o anjo: e nas neblinas,
então celestes legiões
soltam místicas canções,
sobre violas divinas.

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Erguem-se, enfim, os pastores
e vão caminhos dalém,
com palmas, rolas, e flores,
cordeiros, até Belém.

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E exclamavam indo a andar:
– «Vamos ver o vinhateiro!
Ver o que sabe lavrar
nas nuvens, ver o Ceifeiro!

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Vamos beijar os pés nus
do que semeia nos céus.
Ver esse pastor que é Deus
– e traz cajado de luz!»

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Chegando ao presépio, enfim,
caem, de rojo, os pastores,
vendo o herdeiro d’Eloim
que veste os lírios e as flores.

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Dão-lhe pombas gloriosas,
meigos, tenros animais.
– Mas, vendo coisas radiosas,
casos vindouros, fatais…

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Abria o deus das crianças
uns olhos profundos, graves,
no meio das pombas mansas
– nas palpitações das aves.

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Gomes Leal
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Natal Divino
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Natal divino ao rés-do-chão humano,
Sem um anjo a cantar a cada ouvido.
Encolhido
À lareira,
Ao que pergunto
Respondo
Com as achas que vou pondo

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Na fogueira.
O mito apenas velado
Como um cadáver
Familiar…
E neve, neve, a caiar
De triste melancolia
Os caminhos onde um dia
Vi os Magos galopar…
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Miguel Torga
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NATAL CHIQUE
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. Percorro o dia, que esmorece
Nas ruas cheias de rumor;
Minha alma vã desaparece
Na muita pressa e pouco amor.

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Hoje é Natal. Comprei um anjo,
Dos que anunciam no jornal;
Mas houve um etéreo desarranjo
E o efeito em casa saiu mal.

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Valeu-me um príncipe esfarrapado
A quem dão coroas no meio disto,
Um moço doente, desanimado…
Só esse pobre me pareceu Cristo.

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Vitorino Nemésio
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http://www.culturalivre.net/2009/11/10/poemas-de-natal-de-autores-brasileiros-e-portugueses/
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