segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

O século de Sabato - Mariana Ianelli

ENSAIOS

Segunda-feira, 10/1/2011
O século de Sabato










Sendo a sorte generosa, Ernesto Sabato completará este ano um século de vida. É uma pena que homens como ele sejam submetidos à mesma recôndita justiça que, assim como deu a vida, dá também a morte a todos. Porque a vitalidade deste senhor quase centenário é de fazer inveja aos jovens de hoje.


Quem sabe neste momento, em Santos Lugares, onde mora, Ernesto Sabato esteja desfrutando de algum prazer muito simples, rememorando, por exemplo, a campana das suas horas de infância em Rojas, pintando um autorretrato em azul e negro ou contemplando em silêncio, na ruína da sua casa coberta de trepadeiras, a imagem da sua própria velhice.

Ernesto Sabato é um homem que pode se mirar, a essa altura da vida, sem o medo de encontrar pegada à cara qualquer espécie de máscara sinistra. Não por acaso o ano de explosão da bomba atômica em Hiroshima oficializou sua entrada para a literatura. Entre as torres da ciência e um caminho escarpado de perigos, Sabato escolheu o que julgava ser o seu destino. Onde se encerrava uma prestigiosa carreira de físico, tinha início a peregrinação do artista, seu respeito pelo mistério de uma realidade que a razão não domina, sua observância a valores transcendentes que não se negociam, uma luta contra aquilo que, adoecendo o mundo contemporâneo, ele chamou de “indiferença metafísica”.


Em uma manhã de janeiro de 1975, Borges e Sabato, em um de seus últimos encontros, conversaram sobre Hölderlin e sobre a loucura que levou o poeta a viver em uma torre durante mais de trinta anos, aos cuidados de um carpinteiro. Borges fala dessa loucura como um cerco da noite. Sabato recorda, então, uma frase de Hölderlin citada anteriormente em seu livro O escritor e seus fantasmas: “O homem é um deus quando sonha e não passa de um mendigo quando pensa”.


Frase emblemática da trajetória de Sabato como artista, como criador que, separando a luz das trevas, hospedou-se, também ele, dentro da noite, levando para ali sua lucidez, uma lucidez que, se teve algo de louco, foi sua resistência, sua esperança em uma vida mais humana, feita de convívio, de memória e de experiência, e não uma vida avassalada pela tecnologia, pela hipnose das telas, pelo utilitarismo. Se faltam encontros verdadeiros e horas livres, é porque sobeja do outro lado um entorpecimento, uma esterilidade dos sentidos, uma epidemia de cegueira da qual já se teve notícia uma vez pelas páginas da literatura. Foi inclusive José Saramago que, na ocasião do aniversário de 98 anos do escritor, escreveu em seu Caderno: “Estou certo de que ao século que acabou se virá chamar também o século de Sabato, como o de Kafka ou de Proust”. Espera-se que o início desta nova década mereça também um século de vida de Ernesto Sabato.

Nota do Editor
Texto gentilmente cedido pelo autor. Originalmente publicado no site Vida Breve.

Salvador, 10/1/2011

Terça-feira, 15/9/2009
A resistência, de Ernesto Sabato








Vivemos tempos instáveis. Há por todos os lados alguma ameaça, alguma preocupação que nos deixa em estado de alerta o tempo inteiro. A qualquer momento um conflito entre nações pode acontecer, ou uma epidemia se alastrar pelo mundo. A economia já deu sinais de que pode entrar em um colapso profundo; na política, o que vemos é um mar de corrupção e negligência. Tais sintomas terminam por contaminar a sociedade como um todo e, diante disso, os poucos que têm algum tempo para pensar e se dar conta do que está acontecendo ― e do que pode vir a acontecer ― se perguntam: o que podemos fazer? Ou, melhor dizendo: podemos fazer alguma coisa?


Através de seis cartas dirigidas a toda a humanidade, o escritor argentino Ernesto Sabato tenta responder a essas questões no singelo A resistência (Companhia das Letras, 2008, 112 págs.).


Sabato inicia o livro dizendo "Há certos dias em que acordo com uma esperança demencial, momentos em que sinto que as possibilidades de uma vida humana estão ao alcance de nossas mãos. Hoje é um desses dias". Mas essa esperança não dura mais que algumas linhas ― ela é logo minada pelo esboço de análise que ele faz da influência que tem a televisão na nossa sociedade.

Para Sabato, a televisão nos faz perder "a capacidade de olhar e ver o cotidiano". O autor costuma dizer, "alterando a famosa frase de Marx", que "a televisão é o ópio do povo". "Ela nos tira a vontade de trabalhar em algum artesanato, de ler um livro, de fazer um conserto na casa enquanto se escuta música ou se toma um mate." Publicado na Argentina em 2000, essa crítica à televisão talvez tenha ficado um tanto ultrapassada, porque hoje é a internet que exerce esse "poder" sobre uma quantidade cada vez maior de pessoas.


Mas Sabato não é um pessimista, e algumas páginas depois a esperança reaparece: "Sim, tenho uma esperança demencial, ligada, paradoxalmente, à nossa atual pobreza existencial e ao desejo, que descubro em muitos olhares, de que algo grande nos consagre a cuidar com empenho da terra em que vivemos".


Na segunda carta, o autor escreve sobre valores que foram "esquecidos" pelos homens: "Esses grandes valores, como a honestidade, a honra, o apreço pelas coisas bem-feitas, o respeito pelo outro, nada disso era excepcional, mas coisas que se encontravam na maioria das pessoas". Tais características caíram tão em desuso que, hoje, ser honesto, por exemplo, é algo quase absurdo, e muitas vezes quem é honesto é tido como bobo, ingênuo.

O tema da carta seguinte é o Bem e o Mal, mas o que mais chama a atenção nela é o depoimento muito pessoal, uma espécie de mea culpa, do escritor argentino, quando ele recorda uma visita que fez à sua mãe, "a última vez que eu veria minha mãe com saúde, de pé". Essa lembrança é a deixa para que Sabato faça uma severa autocrítica e, também, um alerta: "Enquanto escrevo a vocês, volta a imagem de minha mãe que deixei tão sozinha em seus últimos anos...". É uma confissão emocionante e corajosa de um filho arrependido por ter se afastado da mãe, e que nos serve de lição.


Mas como agir, como se preocupar com valores e emoções, se grande parte das pessoas não tem sequer tempo para si próprias? Como tentar "salvar o mundo" se não podemos salvar nem a nós mesmos? Sabato responde:


"Essa é uma grande tarefa para quem trabalha no rádio, na televisão ou escreve nos jornais; uma verdadeira proeza, possível de realizar quando é autêntica a dor que sentimos pelo sofrimento alheio."


Ou seja: se o mundo começar a melhorar para alguns, vai também melhorar para outros. As mudanças não acontecem de uma hora para outra, elas são lentas. Mas surtem efeito sobre milhares e milhares de pessoas. Se essas mudanças ― leia-se melhoras ― começarem a acontecer em mais lugares e em doses cada vez maiores, certamente o efeito cascata ― expressão muito utilizada em tempos de crise ― fará com que a vida de milhões de pessoas seja modificada para melhor. Exemplo de algo que pode trazer uma mudança radical no mundo, se controlada, é a corrupção, assunto abordado na quarta carta de Sabato:

"Milhares de homens perdem a vida trabalhando ― quando podem ―, acumulando amarguras e desilusões, mal conseguindo sustentar-se por mais um dia na mais precária situação, ao passo que quase todo indivíduo que chega a um cargo de poder em poucos meses troca seu modesto apartamentinho por uma luxuosa mansão com fabulosos automóveis na garagem. Como é que essa gente não tem vergonha?"


A quinta carta, que dá título ao livro, é aberta com a seguinte frase: "O pior é a velocidade vertiginosa". E ela é a tônica do texto, um dos mais emocionados e libertadores do livro. Esta carta é uma espécie de manifesto, um elogio à resistência. É como se Sabato dissesse "Acordem! Nós podemos vencer, a Humanidade pode vencer!". E ele de certa forma nos diz isso: "Neste caminho sem saída que hoje enfrentamos, a recriação do homem e seu mundo surge não como uma escolha entre outras, mas como um gesto tão impreterível quanto o nascimento de uma criança quando é chegada a hora".


Ernesto Sabato tinha 89 anos quando A resistência foi publicado. Então não chega a ser um espanto o fato que de a última carta do livro, um epílogo intitulado "A decisão e a morte", seja uma espécie de testamento que ele deixa a seus leitores. Fica a impressão de que Sabato se entrega à morte, de que ele está se resignando a ela, mas ele apenas a aceita, o que é totalmente diferente: "Resignar-se é uma covardia, é o sentimento que justifica o abandono daquilo pelo qual vale a pena lutar; de certo modo, é uma indignidade. A aceitação é o respeito pela vontade do outro, seja ele um ser humano ou o próprio destino. Não nasce do medo, como a resignação; é como um fruto".


Além de uma obra literária importantíssima, Ernesto Sabato nos deixa várias lições, sendo que resistir, mesmo sabendo que a hora de partir está cada vez mais perto, é talvez a maior de todas.

Para ir além
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Resistencia, A

Tradutor: MOLINA, SERGIO



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Sinopse


Em 'A resistência', na forma de cartas pessoais ao leitor, temas como a internet, a onipresença da televisão, o terrorismo, a intolerância religiosa, a mercantilização da arte, as novas formas de opressão social e a degradação da natureza são vistos pelo prisma da desumanização dos indivíduos. Com um olhar ao mesmo tempo lúcido e apaixonado, embasado na melhor tradição humanista do Ocidente, Sabato se recusa a aceitar passivamente o avanço da barbárie e o embotamento da sensibilidade do homem. Incita o leitor à resistência, propondo como armas o afeto interpessoal, a solidariedade com os mais fracos, a defesa da liberdade de pensamento e imaginação. 

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Sobre o autor:


SABATO, ERNESTO
Ernesto Sabato nació en Rojas, provincia de Buenos Aires, en 1911, hizo su doctorado en física y cursos de filosofia en la Universidad de La Plata, trabajó en radiaciones atómicas en el Laboratorio Curie y abandonó definitivamente la ciencia en 1945 para dedicarse exclusivamente a la literatura. Ha escrito varios libros de ensayo sobre el hombre en la crisis de nuestro tiempo y sobre el sentido de la actividad literaria - así, 'El escritor y sus fantasmas' (1963; versión definitiva, Seix Barral, 1979); 'Apologías y rechazos' (Seix Barral, 1979) - , y tres novelas cuyas versiones definitivas se honró en presentar Seix Barral al publico de habla hispana en 1978 - 'El túnel' en 1948, 'Sobre héroes y tumbas' en 1961 y 'Abaddón el exterminador' en 1974. Otros escritores han escrito con admiración sobre su obra. 
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