segunda-feira, 17 de outubro de 2011

Flores certas, morada errada Por:Tiago Rebelo










Serigrafia de Ribeiro de Pavia - Mulheres Alentejanas

Fotos  Victor Nogueira

Correio da Manhã

Breves histórias

Flores certas, morada errada

 
“Procura um cartão que explique as flores, debalde, não há nada, nenhuma pista”.
16 Outubro 2011


Por:Tiago Rebelo, Escritor (breveshistorias@hotmail.com)

  
A florista recebe a encomenda de um cliente, que lhe diz uma morada. Ela pergunta-lhe se quer enviar um cartão junto, ele responde-lhe que não. A florista compõe o ramo, agrafa-lhe o papel da morada. O motorista coloca-o na carrinha das entregas, inicia a volta.
Ao chegar à morada, arranca o papel agrafado, toca à campainha do terceiro esquerdo sem notar que o ramo é para o terceiro direito. Ela vive sozinha, sem esperança. Adormeceu tarde com um livro a escorregar-lhe das mãos. É trazida lentamente à superfície da consciência pelo besouro insistente que vai entrando no seu sonho, até que se apercebe que tocam à campainha. Levanta-se, embrulha-se num roupão, acode à porta, estremunhada.
Bom-dia, florista, anuncia o homem, assine aqui, por favor. Ela pisca os olhos ensonados, segura a caneta que ele lhe empresta, põe a custo um rabisco no papel da encomenda. Fecha a porta, confusa, retira lentamente o celofane, procura um cartão que explique as flores, debalde, não há nada, nenhuma pista. Perplexa, vai à sala buscar uma jarra, à cozinha enchê-la de água, distrai-se a compor as flores, pensativa. Coloca-a em cima da mesa de apoio à frente do sofá, senta-se a olhar para elas.
Sem conseguir encontrar uma explicação, suspira, levanta-se, vai tomar banho. No duche, dá consigo a sorrir. Escolhe um vestido ligeiro, amarelo, decide sair para dar um passeio, aproveitar o dia.
No átrio do prédio encontra o vizinho do segundo andar, o gestor do condomínio. É um homem solitário, tímido, muito correcto. Ele cumprimenta-a, pergunta-lhe recebeu o que lhe enviei? Ela estaca, incrédula, gagueja que sim... recebi. E o que achou? Adorei!, exclama, sorridente. Ele arregala os olhos, sem perceber como é que ela gostou tanto da conta absurda que lhe colocou na caixa do correio, força um sorriso, diz ainda bem, dirige-se para o elevador. Ela chama-o, espere! Ele volta-se. Então, e agora não me convida para sair? Ele coça a cabeça, para sair?, estranha. Ela abre as mãos, perguntando-se se ele terá perdido a coragem. Sim, vamos tomar um café? Ele fica sem reacção, ela insiste, é só um café, pode ser? Ele rende-se, está bem, diz.
Vão a uma esplanada, ela está tão empolgada que não se cala, diz coisas divertidas. E ele, que nunca imaginou que ela tivesse qualquer interesse, solta-se, brinca também. Acabam a almoçar juntos, bebem uma garrafa de vinho, ela comenta as flores, vai tão embalada que o trata por tu. Foste amoroso, adorei as flores, afirma. Ele solta uma risada aguda, quais flores?, pergunta. Ela engasga-se num gole de vinho. E então descobrem o engano, mas já é tarde para recuarem, porque as flores já fizeram o seu feitiço, já mudaram as suas vidas.

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