domingo, 15 de janeiro de 2012

José Régio ~ O príncipe com orelhas de burro

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      O PRÍNCIPE COM ORELHAS DE BURRO


                                                                                        I


        DE ALGUMAS CIRCUNSTÂNCIAS QUE PRECEDERAM O NASCIMENTO DO PRÍNCIPE LEONEL, PRESUMÍVEL HERÓI DESTA VERÍDICA HISTÓRIA.

Era duma vez, no reino de Traslândia, um casal que não tinha filhos. Grande mágoa, suponho, deve ser não ter filhos um casal que se entende bem. E assim era nesse casal. Eis porque o marido começara de precocemente encanecer, entretendo os seus ócios com aprender jogos chineses, coleccionar pássaros e armas brancas, estudar dialectos ou outras futilidades semelhantes; e a mulher se tornava rabugenta, caprichosa, avarenta, fanática, histérica, (tendo sido a própria imagem da alegria!) como se não houvera casado, e antes do tempo envelhecera de inutilidade e amargor. Esse casal que se adorava - principiara, até, a não poder tolerar-se: Como quase todos os infelizes ligados por uma desgraça comum e odiada, cada um via no outro o espelho do seu infortúnio. Além de que, no presente caso, cada um tendia a ver no outro o próprio causador desse infortúnio. Este mútuo ressentimento ia a pontos de já nem poder o triste casal escondê-lo da corte.
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Pois não me ia esquecendo um pormenor importante?: Ele era o próprio rei e ela a própria rainha de Traslândia; a ausência de filhos nesse matrimônio representava uma desgraça pública. A mágoa dos dois míseros esposos acrescentava-se, pois, da inquietação dos reinantes. A cupidez dos povos vizinhos espreitava o seu trono sem herdeiros. Tanto mais que alguns desses povos eram governados por parentes seus, embora vagos, que se supunham com direitos ao trono; e os governantes nem de longe seus parentes - desde já forjavam teorias, invocavam necessidades, aventavam doutrinas, alegavam conveniências, chegavam a idear questões de ordem metafísica ou religiosa que lhes permitissem, mortos os pobres reis estéreis, caírem sobre o reino sem leme. Quem não sabe como sempre se arrearam de razões a ambição e a violência?
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Assim os pobres reis estéreis se sentiam responsáveis, perante seu povo, tanto do temível choque de interesses entre que seria um dia baldeado, como da escravidão final a que seria reduzido. E parecia-lhes uma grande injustiça que sofriam eles próprios, uma praga dos deuses se não dos demônios, - essa anomalia de não dar fruto um par que fora belo e jovem, e se possuíra, primeiro, com apaixonado e total abandono, depois com esperança e violência, mais tarde com ciência e cálculo, finalmente com desesperada insistência e um misto de compaixão e raiva na infelicidade comum... Inútil dizer que tudo o mais se tentara para arredar tal maldição das pobres cabeças régias: os conselhos dos médicos e as malas-artes das bruxas, os palpites pessoais e os segredinhos das comadres, as influições da hora ou da estação, as preces públicas e a própria interferência, aos pés de Deus, do Santo Papa. Só uma experiência chegara a ser insinuada, que o bom rei Rodrigo repelira com indignação: o repúdio da esposa infecunda. Sim, chegara a aventar-se que o rei tomasse outra mulher legítima; e a primeira se resignasse a um convento com todas as honras da sua condição, e todo o azedume do seu destino, caso fosse mais bem sucedido o segundo ensaio matrimonial de Sua Majestade. Nem a alta razão de estado conseguira resolver El-Rei! Tampouco resolvera a rainha, se é que aos ouvidos da infeliz rainha chegara este parecer que a punha de parte como árvore seca...
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Se é que chegara...? Mas que chegara! Alguém tivera a crueldade ou o heroísmo de lhe dizer, (como, não sei) que o povo ameaçado acusava de egoísta esse amor que não cumpria o seu dever: Porque o amor dos reis tem deveres a cumprir, - a rainha sabia-o! A rainha sabia qual o seu dever, provada a sua esterilidade; e, por sabe-lo, e lhe escassearem forças de o cumprir, se tornara ela rabugenta e caprichosa, avarenta e fanática, histérica e até invejosa...
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Invejosa, em especial, da felicidade vulgar que Deus dava a tantas, para lha recusar a ela! A pobre mulher já não podia ver um baptizado; nem nenhuma dona que andasse de esperanças ousaria apresentar a seus olhos o ventre abençoado por Deus.
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Até que, certa manhã, a rainha ergueu-se muito cedo; e meteu-se a caminho em direcção ao imenso bosque para lá do Parque. Embalde a tinham querido acompanhar. Desistiram perante ameaços dum desses ataques em que a espuma lhe borbulhava na boca, os olhos lhe pasmavam em branco, as palavras e os gestos se lhe descompunham, e ela jazia, depois, aniquilada, para vários dias. Demais, Sua Majestade El-Rei partira ao lusco-fusco de alva a caçar na tapada dum dos seus mais nobres vassalos. Só voltaria sobre a tarde. Quem se atrevera a contrariar a vontade da rainha? O perigo dalgum encontro com um caçador furtivo, qualquer foragido à polícia, algum mendigo perverso ou guarda florestal rebelde, (pois já existiam rebeldes adentro dos próprios domínios reais) - nem de raspão tocara o seu ânimo decidido. Por igual a deixara intemerata a lenda de monstros e fantasmas habitando essas espessuras virgens; ou a certeza de as povoarem bestas-feras. Dir-se-ia que um Arcanjo lhe aparecera, em sonhos, a mandá-la ir, e lhe prometera guardá-la. Foi. E lá andou toda a manhã, toda a tarde, todo o dia, embrenhando-se por cavernas de verdura e sombra, passando curvada sob rendilhados tetos oscilantes de trepadeiras, deslizando entre penhascos e velhos troncos gigantes, mais grossos que pilares dos antigos templos lendários...
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Os homens que, da torre maior do palácio, ainda pretenderam segui-la com seus óculos de grande alcance - breve desistiram. Soube-se ao depois, por informações das mulheres dos guardas florestais, que ela entrara às suas modestas choupanas, se sentara nos seus escabelos, beijara os loiros cabelos sujos ou as caras lambuzadas, bochechudas, dos seus filhos, e quisera saber de suas vidas com tão insinuante insistência , tanta simplicidade nos modos e palavras, que as pobres mulheres, um momento esquecidas da imensa distância das suas condições, tinham chegado, talvez, a falar demais... Até onde se internara na parte verdadeiramente selvática da floresta, nunca ninguém soube. Um ou outro guarda que a vira tornar, já pelo arrefecer da tarde, e, atrapalhado, se perfilara mal fiado em seus próprios olhos, também, depois, disse que ela vinha trejeitando e falando alto, com a vista nos galhos extremos das árvores, como discorrendo enlevadamente com elas e a passarada; talvez com os angélicos espíritos que os guardas não viam, mas por certo a guiaram nesse passeio inspirado, - sugeriu mais tarde um poeta palaciano. O ponto é que já se espraiava o luar quando a rainha voltou; já do palácio alvoroçado se preparavam a sair em sua busca bandos com lampeões e archotes; e já o rei seu marido e senhor a esperava a grandes pernadas frenéticas no salão dos lustres, com o sobrolho carregado e as mãos torcidas atrás das costas, como nos dias de muitíssimo mau humor. A rainha vinha cheia de pó, cambados e rotos os seus sapatinhos verdes, amarrotada toda a seda da saia; e trazia rubis de sangue na cara. Em seu sorriso e seus olhos, porém, raiava um clarão que poucos viram, porque a grande maioria dos homens são cegos; (posto, depois, todos assegurassem tê-lo visto). Viu-o, de verdade, El-Rei, que não era cego. E as palavras de exprobração e cólera que iam soltar seus lábios - gelaram-se de misteriosos respeito.
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A rainha arrastou seu marido para a câmara régia. Aninhando-se-lhe aos pés, disse-lhe:
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- Pensei muito durante este passeio... Não mo censureis, porque decidiu da nossa vida. Estou resolvida a afastar-me para que outra vos dê o filho que vos não posso dar...
- Nunca! - interrompeu o rei com violência.
- Ainda não acabei, meu senhor. Também eu vos quero muito, apesar da nossa desgraça quase nos ter tornado inimigos!... Estou resolvida a afastar-me, e nem vós me podereis deter, se, dentro de meses, se não cumprir o nosso grande desejo...
- Quantas vezes já temos esperado em vão, querida! O melhor será conformarmo-nos com a determinação de Deus.
- Nunca tive tanta fé, meu senhor. Por amor de vós, ousei consultar o Gênio da Floresta; ir até onde me não julgara capaz...
- Sois louca! - disse ele passando-lhes amorosamente os braços por cima dos ombros. Cria, nesse momento, que ela fantasiava, - e não ligou importância de maior às suas palavras.
- Meu querido...! - suspirava ainda a rainha pela noite adiante. E, sentindo-se desejado, solicitado com vibrante sinceridade, ele afogava em beijos ardentes como os das suas primeiras noites de amor essa meiga apelação que já se ia desacostumando de ouvir...
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Passaram alguns meses. Se os homens não foram cegos, veriam que, nos olhos da rainha como em seu sorriso, um clarão continuava a anunciar grandes coisas. Nem seu marido, porém, tornou a reparar nesse indício, que uma tarde lhe gelara nos lábios palavras de exprobração e cólera. Os homens são cegos! Debalde o que chamam mistério lhes envia as suas mensagens. Mas o que todos achavam - pois isso fora impossível não ver - é que a bondade da rainha se manifestava, agora, com nunca manifestada radiação. Diga-se, até, com radiação inquietante, pois inquietantes são a grande bondade, a grande beleza e o grande entendimento: Quem não sente que marcam os seres como dum resplandecente estigma que os furta à vida do mundo? (posto na própria vida do mundo sejam superiores tais seres). De rabugenta, caprichosa, avarenta, fanática, histérica, - defeitos que ultimamente empanavam a grande bondade natural da pobre esposa estéril, - dia a dia progredia a rainha em humildade e paciência, igualdade de ânimo, generosidade ardente, largueza de compreensão, bom senso luminoso... Chegava a ser inquietante, sim! Dir-se-ia que a rainha ia morrer.
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Ora uma tarde, indo a sentar-se à mesa na grande sala de jantar, fez-se súbito muito branca, levou a mão trêmula à testa, expediu um suspiro que todavia se acompanhava duma aura de sorriso... e teria caído desamparada se o marido não correra a apanhá-la nos braços. Quando voltou a si, de aí a nada, e circunvagou o olhar ainda baço pela sala cintilante de cristais e pratas, aquela aura de sorriso abriu-se como uma auréola.
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- Este calor de Agosto... - murmurou com os olhos enlanguescidos do delíquio. O seu rei ainda a tinha nos braços, e ela aconchegou-se-lhe mais ao peito:
- Talvez também doutra coisa...que vos tenho querido ocultar... com receio de enganar-me...
Ele não compreendia; ou tinha medo duma decepção terrível. Arredando-a um pouco de si, fixava nela os olhos ansiosos e graves, quase duros, como para a violentar à confirmação; e o seu rosto pusera-se pálido e extraordinariamente sério. Acenando que sim à sua muda interrogação, ela tornou:
- Uma grande surpresa... mas não para mim...
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Fazia-se ainda mais pequena contra o seu peito largo. Então, esse peito ergueu-se, arquejou como se fora estalar; e, por um movimento impulsivo de ajoelhar diante dela, o pobre marido arrastou-a consigo; ficaram ambos abraçados e ajoelhados um diante do outro, soluçando. A muita gente pareceria cômica ou ridícula esta cena.
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- Querida!... - gaguejou ele quando pôde falar. Quebrada de emoção, a sua voz era meiga como a duma criança. - Pois será verdade?... Então, naquela noite...
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Pensava no clarão que lhe vira nos olhos, no sorriso, certa noite em que ela voltara tarde, cheia de pó, cambados e rotos os sapatinhos verde-mar, - dum misterioso passeio para lá do Parque... Pensava no calor dos beijos que essa noite haviam trocado. Nem por sombras duvidava dela; mas sabia, agora, que havia um mistério na gestação do seu filho.
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- Naquela noite... - repetia, querendo penetrar esse mistério.
- Naquela noite, sim! - disse a rainha. - O Gênio da Floresta prometera-me...
- Sois louca!... - disse ele, como dissera essa vez. É o que é uso dizer-se, quando alguém afirma qualquer realidade sobrenatural. Por esse tempo, não obstante o seu dom de já ver o que outros não viam, muito atrasado estava ainda o rei na leitura dos livros obscuros.
- Não..., tornou a rainha - o Gênio da Floresta existe. Procurei-o e encontrei-o. Consultei-o sobre o nosso caso. O Gênio da Floresta prometeu-me que teríamos um filho. Mas o nosso filho... 
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Repentinamente, fez-se outra vez muito branca. Os seus olhos olhavam espantados, fixos, qualquer coisa ao longe. O mistério erguera-se diante dela, um dedo nos lábios a impor silêncio, sob a figuração do Gênio da Floresta que só ela via.
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- Este calor de Agosto... - murmurou, dorida e forcejando sorrir.
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Como a sentisse voltar a desfalecer, o rei levantou-a amorosamente nos braços fortes, poisou os lábios, com delicadeza e respeito, nos seus olhos que se fechavam; e, atravessando, com ela nos braços, os amplos salões resplandecentes e frios, foi aconchega-la no leito. Ao longo dos amplos salões resplandecentes e frios, a comprida cauda do seu vestido Glauco, atrás dos passos graves do rei, ia fugindo como um ribeirinho que ao mesmo tempo fosse correndo e secando. E, habituados a nada ver, nada ouvir, os lacaios erectos como estátuas, vestidos de seda e oiro como bonecos, nem pestanejavam e nada compreenderam do que se passava. 

                                                                                        II

DE ALGUMAS CIRCUNSTÂNCIAS QUE ACOMPANHARAM O NASCIMENTO DO MESMO PRÍNCIPE


Evoé! Voara por todo o reino a grande nova! E começara uma festa pegada: As músicas eram por toda a parte ching-chong, ai e ó ai as cantigas esfusiavam contínuo no ar, os foguetes estralejavam ou estoiravam que era um pavor, o chão andava coberto de espadanas e funcho, os sinos repicavam sem cessar dling-dlong!, dling-dlong!, no ar álacre... E, vira que vira, o povo dançava nos terreiros, nas eiras, nas ruas, nas praças, toca ora toca!, esgotavam-se os enormes cangirões vidrados, olari que se arrebanhavam ranchos por toda a parte, se concertavam os instrumentos, se improvisavam folguedos e tunas..., bailar! Cantar! Viver! - uma onda de alegria irresistível subia, irrompia de tudo e por tudo se espraiava, só porque uma nova pequenina vida ia chegar ao mundo... Deus a trouxesse a salvamento! Deus a resguardasse e protegesse! E que fosse um menino! Que fosse um rapaz! Que fosse um homem! O reino precisava dum senhor para o futuro.
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Mais do que nunca, as beatas gastavam seus dias nos templos, babujando as lájeas, ou alçando as mãos lívidas, frementes de súplicas, às imagens cobertas de flores. Nos intervalos, juntavam-se em bandos que grasnavam e saltavam na sombra fresca dos adros. Depois recomeçavam as ladainhas, as punhadas no peito, os ósculos no empedrado, - sob as abóbadas incendiadas de luzes ou esfumadas em nuvens de incenso. E nunca tinham sido tão felizes! Nunca tinham podido satisfazer por tal forma a sua beatice, pois nunca, nas igrejas, se haviam assim seguido as novenas e os tridos, as preces e as cerimônias. Tal-qualmente contentavam os glutões a sua gula, celebravam os bêbados o seu culto por Baco, - Evoé!, Evoé! - improvisavam os eloqüentes as suas tiradas, os dançarinos matraqueavam toda a sorte de ritmos, e, quanto aos namorados..., ai!, que melhor fariam os namorados do que aproveitarem-se da embriaguez colectiva? Esquecidos por pais severos e velhas tias zeladoras, os namorados metiam-se em azinhagas floridas de madre-silva, desapareciam sob as ervas mais altas dos campos ou os mais folhudos ramos das árvores... E, vai de beijos e abraços, vai de juras e risos, risos magoados misturados de voluptuosos gemidos - a mocidade breve passa, mas é poderosa enquanto dura! - dentro dalguns meses, essas pobres virgens loucas achar-se-iam nas condições da rainha, sem que suas cabeças fossem cobertas de flores como a da rainha uma vez que saíra à rua. Ah! Nunca se fora tão feliz no reino da Traslândia! Em particular, na sua capital. A vida era uma quermesse pegada; e uma prece contínua: Que viesse a salvamento e fosse um menino! As saias são muito boas, sim! Que seria o mundo sem o delicioso farfalhar das saias? Mas um trono requere uns calções. Que viesse a salvamento e fosse um rapaz!
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E veio a salvamento. E era um rapaz. A noite de dores da rainha correu toda em preces públicas. Os templos ardiam de velas e regurgitavam de fiéis. Diante do palácio, um mar de povo aguardava. E como, por certo, incomodaria a padecente o marulho desse mar, toda aquela turba esperava num silêncio impressionante e dramático. Sob a promessa de tal silêncio, gravemente feita por alguns dos mais populares homens-bons da capital, desistira a guarda de dispersar a multidão. E a multidão cumpria a promessa dos seus representantes. Informada do que, a rainha chorara de ternura. Mandara, depois, dizer ao povo que se mostraria valente como qualquer das suas mulheres. E que estivesse descansado: dar-lhe-ia um homem!
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Ora pela ante-manhã, um pouco antes dos últimos esforços da rainha, três velhas muito velhas, como a um sinal combinado, haviam saído, ao mesmo tempo, desse mar de gente. Como se para elas não houvera distância, quási imediatamente se haviam juntado numa clareira remota, lá onde acaba o Parque do palácio e começam florestas inexploradas. Dir-se-ia, na verdade, que um sinal só delas percebido as reunira: hipótese, afinal, não tão inverossímil como à primeira vista pudera supor-se, pois essas três velhas eram, nem mais nem menos, três bruxas. Vestiam largos capotes negros, de capuz levantado, talvez por via do fresco de alva. Mas, do fundo do capuz, os olhos da primeira brilhavam como topázios; os da segunda, como safiras; os da terceira, como esmeraldas. Lindos olhos em caras tão cheias de rugas, tão cor de pergaminho...! A bem dizer, porém, aquelas três bruxas não eram três bruxas: sim três boas fadas, que poderiam tomar quaisquer outros disfarces; e só tinham tomado aquele por que as não denunciasse a sua beleza. Também elas tinham vindo, e se tinham ali reunido, por amor do herdeiro esperado.
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- A praga que lhe rogo - começou a primeira, sorrindo com as falsas engelhas da car - é que tenha todas as qualidades que fazem um homem respeitado dos homens: Será inteligente, valente, leal...
- A praga que lhe rogo - interveio a segunda, entremostrando um colar de pérolas entre os lábios murchos - é que tenha todas as qualidades que tornam um homem desejado das mulheres: Será belo, forte, másculo...
- A praga que lhe rogo - declarou a terceira, acendendo ao fundo do capuz os dois pequeninos faróis dos olhos - é que tenha todas as qualidades que tornam um príncipe querido do povo: Será justo, generoso, enérgico...
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- Parvas! - disse uma voz que se diria vvir de muito além, e já estava perto. Em volta, os ramos das árvores foram agitados como por um vento misterioso. As folhas secas levantaram-se do chão, rodopiaram um momento no ar. Uma toada de água, ao longe, parecia aproximar-se... As três boas bruxas compreenderam que estavam em presença do Gênio da Floresta, o qual rarissimamente costumava tomar forma visível; a falar verdade, só perante os vulgares humanos: Como o veriam estes doutra forma?
- Parvas! - tornou a voz profunda e sarcástica. - Estragaríeis o meu príncipe como fúteis mulheres que sois...; estragá-lo-íeis de mimos! Pois a prenda que lhe eu dei é que tenha um defeito hediondo, capaz de corrigir todas as vossas prendas: Será um príncipe perfeito com orelhas de burro!
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Palavras não eram ditas, uma violenta revoada de folhas se levantou furiosamente no ar; os braços mais baixos das árvores açoitaram o chão; fugindo, repetidas vezes o vento zuniu lamentoso de tronco em tronco; e o fundo som da água, longe, ecoou mais cavo, rotundo... Ao mesmo tempo, de vários pontos entre a cerração verde-negra da folhagem, se corresponderam no ar uivos e gritos, ululos e bramidos, pios plangentes e cacarejos estralejando como risadas sarcásticas e tristes. Era o Gênio da Floresta que se afastava de pouco bom humor, alvoroçando animais e vegetais.
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E eis que um enorme velho membrudo, barbaçanas, de olhos volúveis de reflexos como os lagos em que dá hora sol ora sombra, poderia, à mesma hora, ser visto apresentar-se diante do palácio real. (Poderia ser visto?... - pregunto). Era a hora em que repicavam todos os sinos dos templos, vibravam todos os clarins e trombetas do paço, e El-Rei se achegava à imensa varanda de mármore para mostrar a seu povo o filho recém-nascido. Uma aclamação reboou até aos céus como uma explosão gigantesca e prolongada... Entretanto, o velho atravessara a multidão, passou entre os guardas, subiu escadarias, deslizou ao longo de corredores e salões. Não o veriam os guardas, os lacaios, os cortesãos, as camareiras? Grande era ele, e bem de se ver, com seus braços e pernas imitantes a troncos, suas barbas que torrencialmente lhe inundavam o peito e o ventre, sua basta cabeleira revolvida como densa moita em que se encafurnam os ventos, suas feições cortadas em angulosidades de rocha viva... E, apesar disso, tornar-se-ia a sua figura invisível, pelo menos aos olhos comuns? Ou seria, antes, que o extraordinário dessa figura tolhesse as palavras e os movimentos de todos? Eis o que, por uma deplorável ausência de informes seguros, se me torna impossível explanar. Uma pessoa, porém, o viu nessa travessia até à câmara da rainha, - isso posso eu afirmá-lo. E foi essa pessoa nem mais nem menos que Rolão Rebolão, monstro sem pernas que só andava como o seu nome indica - rebolando - e simultaneamente exercia no palácio os cargos, se tal se lhes pode chamar, de palhaço e poeta libérrimo; coisa, aliás, não para estranhar, pois sempre muito há de palhaço num poeta libérrimo; ou de poeta libérrimo num palhaço.
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Claro que ninguém, ao tempo, acreditou Rolão Rebolão. Patranhar, fantasiar, fingir, não era de seus ofícios? Nem por isso Rolão Rebolão deixou de afirmar aquele seu estranho encontro; como de o identificar, não obstante várias diferenças aparentes, com quem depois veio a ser aio do dito príncipe; - o que, evidentemente, pareceu o cúmulo da fantasia. Mais tarde, vários acontecimentos e circunstâncias concederam foros de autenticidade às declarações de Rolão Rebolão. E alguns cronistas, deram conta do passo nas suas crônicas, em grande parte por isso mesmo consideradas suspeitas pelos mais conspícuos membros da Academia de História. Pois não chegaram tais cronistas, a despeito dos mais autorizados juízos dos críticos consagrados, ao excesso de afirmarem ser Rolão Rebolão um poeta estupendo, - um vidente?
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Ora ficara Rolão Rebolão improvisando no corredor um sibilino poema inspirado na sua visão, quando as camareiras que rodeavam o leito da rainha viram esta ficar ainda mais pálida, escancarar uns olhos imensos fitos na porta, e, atrapalhadamente, espetar os dedos nas roupas, forcejando por soerguer-se. Todos os olhos das nobres donas se voltaram igualmente para a porta. E nenhuma delas viu nada; nem ninguém. A seus olhos se furtava a extraordinária presença que se revelara ao monstro sem pernas. O parecer daquelas pobres nobres donas - era que ninguém abrira a pesada porta da câmara... Todavia, todas estavam arrepiadas: E' que o doairo da rainha era sobrenatural. A palidez que lhe ficara da grande prova demudara-se numa brancura de linho, de açucena, de mármore, e que já não era de criatura do mundo. Os seus olhos continuavam imensos, como se tudo pudera caber nuns olhos que, por maiores que sejam, são coisa tão pequenina! Os seus lábios tinham sorrisos longínquos, ora parados, ora fugidios como relâmpagos; e mexiam pareciam a medo, mexiam enquanto as suas mãos espalhavam sobre os lençóis esboços de gestos muito delicados, acompanhando as palavras mudas da boca. Era claro que a rainha via alguém que ninguém mais via. Conversava com quem mais ninguém ouvia.
Por fim, pediu em voz muito claro, natural, que lhe fossem buscar o marido e o filho; e às camareiras que ficaram mandou que lhe trouxessem para cima da cama todo o enxovalzinho do recém-nascido. Assim esteve como afogada, sorridente, sob um montão de peçazinhas enternecedoras, ridículas, preciosíssimas pela riqueza do tecido, dos bordados, das rendas. Quando o marido chegou, com o pequenino nos braços, acompanhado tanto do Físico assistente como da boa dona escrupulosamente escolhida para aleitar o herdeiro do trono, pediu na mesma voz clara e natural que a deixassem só com os seus dois homens. As camaristas sorriram embevecidamente desta graça da sua soberana. O Físico recomendou que se não cansasse muito Sua Majestade. A ama atirou um beijo ao seu nobre menino. Todos se retiraram.
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Só com o marido, a pobre mãe tentou reclinar-se na cama, puxou o filho a si, tirou-lhe a touca de rendas.
- Reparai...- disse ela poisando os dedos trêmulos nas diminutas orelhas do pequenino.
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Diminutas? O caso é que as orelhas do principezinho não eram diminutas! Eram, até, de tamanho pouco natural num recém-nascido. Além de que não tinham bem o formato normal, antes as diríamos ponteagudas, e com tendência a dobrarem nas extremidades... Mas como dizer o pior? O pior é que as revestia um pelozinho escuro, quási basto, extravagante em orelhas de qualquer ser humano, e absolutamente incompatível com o arrepio de penugem fina, loira, que lhe doirava a cabecinha mimosa.
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O mísero pai não podia crer no que via! Como é que ainda não reparara? Como é que ainda ninguém reparara...? Mas não teria, ainda, reparado ninguém? Verdade seja dito, logo o principezinho fora todo enfardado em cambraias e rendas... O mísero pai não podia crer no que via! Quási com brutalidade, as suas mãos convulsas arrancaram tantas rendas, tantas cambraias. O seu terror era que o filho apresentasse ainda qualquer outra monstruosidade que ninguém houvesse notado. Mas não! O menino era todo ele perfeitinho e robusto. Nada lhe faltava; nada tinha a mais. Só aquelas orelhas de bicho... Porque não havia duvidar: Eram, efectivamente, umas orelhas de bicho, uma espécie de miniatura das orelhas dum pobre bicho muito conhecido, muito simbólico, - as orelhas do principezinho perfeito...
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Quando, após um agoniado silêncio, o rei ousou levantar os olhos para a mulher, viu que também ela mal ousava levantar os olhos para ele. E as lágrimas corriam-lhe em fio pelas faces alvas, indo perder-se-lhe nas rendas da camisa não mais alva.
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- Querida... - rouquejou ele numa espéciie de soluço, que, súbito, lhe tomou a garganta como a pressão duma garra. E, não podendo dizer mais, baloiçou o busto e bateu com os punhos cerrados nas fontes. Continuava a não compreender o que sucedia. Outro longo silêncio caiu, durante o qual só se percebia afastarem-se, longínquas e agora profundamente melancólicas, duma terrível ironia aos ouvidos dos míseros pais, as aclamações lá fora. O bom povo retirava-se para deixar descansar a sua rainha. Não se retirava para dormir, não: A noite era de jubilosa vigília! Até dia claro, haveria descantes e bailes. Só os pobres pais aclamados estavam ali um diante do outro sem ousarem fitar-se, mudos e angustiosamente constrangidos pela sua descoberta: Não!, não havia duvidar: o seu menino tinha orelhas que não eram de gente! Que maldição pesava, então, sobre o seu amor, que, depois de tanto tempo o haver condenado à esterilidade, o condenava, agora, a esse belo fruto gafado, a esse produto superior mas tocado de monstruosidade...?
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Quando, porém, novamente ergueu os olhos, o pai encontrou os da mulher que já lhe não fugiram. As lágrimas continuavam a correr-lhe nas faces brancas. Mas havia em seus olhos, agora firmes, cravados nos dele como por lhe comunicarem essa mesma serenidade melancólica e luminosa, um resplendor que ele já conhecia. De mais, reaparecera nos seus lábios uma réstea de sorriso sobrenatural...
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- Bem sabia - disse ela - que o nosso filho seria marcado pelo destino. Só um sacrifício dele e um meu permitiriam o seu nascimento. Aceitei o dele, porque me foi prometido que o seu destino seria grande... e sei que será grande... apesar de tudo! O meu, embora penoso agora que eu poderia ser tão feliz, aceito-o gostosamente. Só me dói ter de vos deixar sozinhos, a ambos, sem ainda saberdes o que eu já sei...
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Estendeu as mãos e apanhou nelas, apertando-a com paixão, a mão trêmula do marido.
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- Querida...- tornou ele soluçando; porque, não compreendendo embora este novo mistério, bem sentia que ela lhe fugia. De facto, a rainha estava morta: morta com os mesmos olhos resplandecentes e calmos fitos nele, e a mesma réstea de sorriso sobrenatural na boca entreaberta.
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Como sempre esteve coberta de flores enquanto exposta, - não era de admirar que cheirasse tão bem nas proximidades da câmara ardente. Mas sabe toda a gente que Rolão Rebolão não atribuiu às flores, sim ao próprio cadáver, esse aroma de violetas e lírios. A elegia em que no-lo diz anda hoje em todas as selectas.
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