quinta-feira, 4 de abril de 2013

José António Gomes ~ O Óscar, para quem sempre existiu o tu

  • José António Gomes


«Refere Máximo Gorki, não sem espanto, que em Lénine, no meio de tanta preocupação, havia ainda lugar para a bondade – permitam-me que diga o mesmo de Óscar Lopes. E também sem espanto.»
O Óscar, para quem sempre existiu o tu

A seu modo músico e poeta, senhor de um pensamento-feito-prosa, escrita ou oral, que era autêntica poesia, o Óscar pensava e escrevia coisas fulgurantes como esta: «Nós falamos quase sempre como quem usa frases, palavras. Às vezes, e de repente, sentimos que, pelo contrário, estão as frases, as palavras, a utilizarem-nos, como se fôssemos nós, e não elas, a servir de veículos para um certo sentido. As palavras, quando usadas, servem-nos de mãos, mãos de mil dedos invisíveis, que enredam as coisas e de algum modo as manejam. Quando são elas, vivas, a usarem-nos, não há fora delas quaisquer coisas situadas ou a situar: a fala e o mundo consubstanciam-se num mundo só, e parece que renascemos. Trabalha-nos um novo senso do real e do humano» (Óscar Lopes, Uma Espécie de Música).
O Óscar. Todos diziam, todos dizem «o Óscar», naquele centro de trabalho. Todos sabiam que tinham um génio ali à mão, quase do outro lado da rua. Um génio da Língua, da História e da Crítica Literárias, da Filosofia e da Cultura Clássica, da Matemática e até da Física. Um corajoso humanista à antiga, um clássico-moderno de insaciável curiosidade e sede de saber. Alguém com uma superior inteligência do mundo e da linguagem. E que no entanto tratava os camaradas por tu e por tu era tratado. Fossem operários, empregados, sindicalistas, fossem intelectuais, eleitos comunistas, gente com responsabilidades de direcção. Recordo o saudoso Sérgio Teixeira, antigo operário, evocando uma viagem para Lisboa, com o Óscar a falar-lhe de Camões.
Ele era, ele será sempre, para nós, «o Óscar», o intelectual por excelência, incomparável e incapaz de trair – ao contrário de outros – o compromisso que, desde a juventude, desde 1944, o vinculou à classe trabalhadora, aos oprimidos, ao projecto comunista. E pelos quais sofreu, antes de Abril, sem disso vir a fazer gala: a prisão fascista, a perseguição, a apreensão de obras suas pela PIDE, a proibição de ensinar na Universidade, de se deslocar ao estrangeiro para participar em seminários para os quais era convidado, de assinar artigos com o seu nome.
Era, além do mais, um génio da fraternidade, da solidariedade, da empatia com o seu semelhante, da capacidade de escutar o outro. Alguém que olhava a vida, o futuro, a sua própria presença no mundo como uma aventura sem limites. E que, por isso, disse algures: «Nós só conhecemos uma fracção mínima da realidade, estamos no início de uma grande aventura cósmica.»
 
Sempre presente
 
Para todos nós, o Óscar era, será sempre, um exemplo para os dias por vir – e não apenas pelo seu saber imenso. Era-o também para outros, muito distantes de nós. Uma mensagem electrónica, no dia da sua partida: «O ser humano e o intelectual mais brilhante, mais sábio e mais simples que tive o privilégio de ter como Professor na minha vida académica» – palavras de uma colega, de direita, sua antiga aluna de mestrado.
Na última etapa de uma vida de estudo e de luta, na sua casa da Boavista, bem perto do centro de trabalho, já afectado pela crueldade do tempo, da doença e do silêncio em que mergulhara, o Óscar era o camarada despojado e modesto, sempre disponível para a partilha do saber, para a solidariedade, para colaborar na angariação de fundos, para juntar convictamente o seu nome ao nosso, quando necessário: num abaixo-assinado, num manifesto, numa edição do Sector Intelectual. (E há generosidades militantes do Óscar que nem sequer aqui se podem contar.)
Animada de ternura e daquela amizade comunista que é tão sua, a nossa querida Lina visitou-o sempre, prestando o apoio necessário ao Óscar, à família. (Todos te conhecem, Lina, és um esteio, o sorriso e o amparo de que todos precisam nestes dias difíceis.) E, por isso, nesse fim de tarde em que velávamos o camarada, estavas tão triste e comovida, ali, no salão secular da Associação dos Jornalistas e Homens de Letras do Porto (de que o Óscar era um dos mais antigos sócios), a urna ladeada por duas coroas belíssimas. Vermelho de flores sobre verde. Vermelho. Sobre verde. E depois contavas como, enquanto os dias lhe permitiam ainda sair de casa e deslocar-se, o Óscar pedia por vezes à senhora que dele cuidava: «Olhe, vamos antes por ali.» E, apoiado no seu braço, «obrigava-a» a atravessar a rua para o passeio do centro de trabalho. E a fazia continuar até chegarem à entrada. E ela dizia: «Ai, que o senhor é um maroto. Queria mas era vir até aqui.» É que o Óscar gostava do centro de trabalho, gostou sempre, enquanto as forças lho consentiram, de rever e conviver com os camaradas.
Por tudo isto – e por todo o resto, que é muito – nos dói muito a partida do Óscar. Que sabíamos ali ao lado, sempre presente nos momentos difíceis, nos momentos necessários, com a sua cortante ciência do mundo, da literatura e da linguagem. O Óscar, para quem sempre existiu o tu. E que por isso escreveu, no único poema seu que até hoje veio a lume, numa antologia organizada pela Associação dos Jornalistas e Homens de Letras do Porto:
 
Segunda pessoa
 
Alguém diz tu. Alguém sem nome.
É a terra e o corpo e é o rasto de um sentido.
Alguém diz tu à imagem que se esgarça,
à certeza de uma longínqua razão.
Longe. O passado. Nomes, errados nomes de desejo.
Cego de insónia, nem lembrar te posso.
Nem mesmo em sonho saberia ver-te.
És só o pronome, tu, a ondular-me na boca,
norte magnético num desespero em surdina.
És a sílaba que dói a dor solar de um sentido.
A história avança na cabra-cega sem rostos,
e eu vivo em ti o tu mais só da minha vida.

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