domingo, 24 de novembro de 2013

Charles Baudelaire - Uma Heróica Morte

Pequenos Poemas em Prosa - Charles Baudelaire

XXVII

UMA HERÓICA MORTE


Fancioulle era um admirável palhaço e quase um dos amigos do Príncipe. Mas para as pessoas destinadas a ser cômicos, as coisas sérias têm atrações fatais e, ainda que possa parecer bizarro que as idéias de liberdade e de pátria tomem despoticamente o cérebro de um histrião, um dia Fancioulle entrou em uma conspiração formada por alguns cavalheiros descontentes,

Existem em todos os lugares homens de bem para denunciar ao poder esses indivíduos de humor melancólico que querem depor os príncipes e operar a mudança de uma sociedade, sem consultá-la. Os senhores em questão foram presos, como também Fancioulle, e condenados à morte certa.

Creio sinceramente que o Príncipe tenha ficado quase chocado por encontrar seu ator favorito entre os rebeldes.
O Príncipe não era nem melhor nem pior do que qualquer outro, mas uma excessiva sensibilidade tornava-o, em muitos casos, mais cruel e despótico do que todos os seus semelhantes. Amoroso, apaixonado, excelente conhecedor, também, das belas-artes, era, verdadeiramente, de insaciável volúpia. 

Muito indiferente em relação aos homens e à moral, verdadeiro artista, ele próprio, não conhecia inimigo mais perigoso do que o tédio. Os bizarros esforços que fazia para fugir ou para vencer tal tirano do mundo fariam exatamente que tivesse ganho, da parte de um historiador severo, o epíteto de “monstro”, se ele tivesse permitido, em seus domínios, que se escrevesse o que quer que fosse, que não tendesse ao prazer ou à surpresa, que é uma das mais delicadas formas de prazer. A grande infelicidade deste Príncipe foi não ter tido nunca um teatro suficientemente vasto para o seu gênio. Há jovens Neros que foram sufocados em limites muito estreitos, e os séculos futuros ignorarão sempre seus nomes e a sua boa vontade. A imprevisível Providência deu a ele faculdades maiores que seus Estados.

Subitamente correu o boato que o soberano queria perdoar todos os conjurados; e a origem desse boato foi o anúncio de um grande espetáculo onde Fancioulle deveria desempenhar um de seus principais e melhores papéis; e ao qual assistiriam mesmo, dizia-se, os cavalheiros condenados; sinal evidente, acrescentavam os espíritos superficiais, das tendências generosas do Príncipe ofendido.

Da parte de um homem tão natural e voluntariamente excêntrico, tudo é possível, mesmo a virtude, mesmo a demência, sobretudo se se pudesse ter a esperança de encontrar prazeres inesperados. Mas para aqueles que, como eu, puderam penetrar mais adiante na profundeza dessa alma curiosa e doente, seria infinitamente mais provável que o Príncipe quisesse julgar o valor dos talentos cênicos de um homem condenado à morte. Ele queria aproveitar a ocasião para fazer uma experiência fisiológica de interesse capital e verificar até que ponto as faculdades habituais de um artista poderiam ser alteradas ou modificadas pela situação extraordinária em que se encontrava; e mais, existiria mesmo em sua alma uma intenção mais ou menos predisposta à demência? Eis um ponto que jamais poderá ser esclarecido.

Enfim, chegado o grande dia, a pequena corte mostrou todas as suas pompas, e seria difícil conceber, a não ser que se tivesse visto tudo o que a classe privilegiada de um pequeno Estado, de recursos escassos, pode mostrar de esplendores para uma autêntica solenidade. Isso era duplamente verdade, primeiro pela magia de luxo exibido, depois pelo interesse moral e misterioso ao qual estava ligado.

O senhor Fancioulle era excelente sobretudo nos papéis não falados ou pouco expressos em palavras, que são, quase sempre, os principais nesses dramas feéricos cujo objetivo é representar simbolicamente o mistério da vida. Ele entrou em cena com leveza e naturalidade, o que contribuiu para fortificar, no nobre público, a idéia de doçura e perdão.

Quando se diz de um ator: “Eis um bom ator”, serve-se de uma fórmula implicando que, sob o personagem, deixa-se perceber o ator, quer dizer, a arte, o esforço, a vontade. Ora, se o ator chega a ser, relativamente ao personagem que ele está encarregado de representar. o que as melhores estátuas da antiguidade, miraculosamente animadas, vivas, caminhantes, vistosas seriam relativamente à idéia geral e confusa da beleza, isto é, sem dúvida, um caso singular e absolutamente imprevisto. Fancioulle foi essa noite uma perfeita idealização, que seria impossível que não se supusesse viva, possível e real. Este bufão ia, vinha, ria, chorava, entrava em convulsões, com uma indestrutível auréola em volta da cabeça, auréola esta invisível para todos, mas visível por mim e onde se misturavam, em estranho amálgama, os clarões da Arte e a glória do Martírio. Fancioulle introduziu, não sei por que graça especial, o divino e o sobrenatural até nas mais extravagantes pantomimas. Minha pena treme e lágrimas de uma emoção sempre presente sobem-me aos olhos enquanto procuro descrever esta incrível noite. Fancioulle provou-me, de maneira peremptória e irrefutável, que a embriaguez da Arte é mais apta do que qualquer outra para encobrir os terrores do abismo; que o gênio pode representar uma comédia à beira do túmulo com uma alegria que o impede de ver o próprio túmulo, perdido como está em um paraíso que exclui toda idéia de sepultura e de destruição.

Todo este público, por mais afetado e frívolo que pudesse ser, sofreu logo a poderosa dominação artística. Ninguém sonhou mais sobre a morte, o luto, nem sobre suplício. Cada um abandonou-se, sem inquietação, às volúpias multiplicadas da visão de uma obra-prima da arte viva. As explosões de alegria e de admiração abalaram várias vezes as cúpulas do edifício com a energia de um trovão contínuo. Até mesmo o Príncipe, inebriado, juntou seus aplausos aos da corte.

Entretanto para um olho clarividenteexatamente justificadas, mas não absolutamente injustificáveis, atravessaram meu espírito enquanto eu contemplava a face do Príncipe , sobre a qual uma palidez nova juntava-se sem cessar à palidez habitual, como a neve que cai sobre a neve. Seus lábios cercavam-se cada vez mais e os olhos brilhavam com um fogo interior semelhante ao do ciúme e ao rancor, mesmo quando aplaudia ostensivamente o talento de seu velho amigo, o estranho bufão, que gracejava tão bem com a morte. A um certo momento, vi Sua Alteza inclinar-se para um pequeno pajem que estava atrás dele e lhe falar ao ouvido. A fisionomia maliciosa do lindo jovem iluminou-se com um sorriso; depois ele deixou rapidamente o camarote do Príncipe, como para cumprir uma missão urgente.

Alguns minutos mais tarde um silvo agudo, prolongado, interrompeu Fancioulle em um de seus melhores momentos e feriu tanto os ouvidos quanto os corações. E do lugar da sala de onde havia brotado a desaprovação inesperada, um menino precipitou-se para um corredor em gargalhadas abafadas.

Fancioulle, agitado, acordado de seu sonho, inicialmente fechou os olhos, depois reabriu-os e, quase de imediato, arregalou-os desmesuradamente; em seguida abriu a boca como para respirar convulsivamente, cambaleou, um pouco para a frente, um pouco para trás e, depois, tombou morto sobre o assoalho,

O silvo, rápido como uma espadas frustrara realmente o carrasco? O Príncipe previra toda a homicida eficácia de seu ardil? E permitido duvidar. Deplorava ele a morte de seu caro e inímitável Fancioulle? É doce e legítimo acreditar.

Os fidalgos, culpados, haviam gozado pela última vez o espetáculo da representação. Naquela noite mesma eles foram apagados da vida.

Desde então, muitos mímicos justamente apreciados em diversos países vieram representar diante da corte de ***; mas nenhum deles fez lembrar os maravilhosos talentos de Fancioulle, nem conseguiu obter os mesmos favores.

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