domingo, 10 de novembro de 2013

Guerra Junqueiro - Como se faz um monstro

Por Incursões, às 12:05 | comentar
I

Ele era nesse tempo uma criança loira

Vivendo na abundância agreste da lavoira,

Ao vento, à chuva, ao sol, pastoreando os gados,

Deitando-se ao luar nas pedras dos eirados,

Atravessando à noite os solitários montes,

Dormindo a boa sesta ao pé das claras fontes,

Trepando aos pinheirais, às fragas, aos barrancos,

No rijo e negro pão cravando os dentes brancos,

Radioso como a aurora e bom como a alegria.

Quando no azul do céu cantava a cotovia,

Aos primeiros clarões vibrantes da alvorada

Transportava ao casebre o leite da manada,

Acordando, a assobiar e a rir pelos caminhos,

Os lebréus nos portais e as aves nos seus ninhos.

E à tarde quando o Sol, extraordinário Rubens,

Na fantasmagoria esplêndida das nuvens,

Colorista febril, lança, desfaz, derrama

O topázio, o rubi, a prata, o oiro, a chama,

Ele ia então sozinho, alegre, intemerato,

Conduzindo a beber ao trémulo regato,

A golpes de verdasca e gritos estridentes,

Num ruidoso tropel os grandes bois pacientes.

O seu olhar azul de limpidez virtuosa,

Onde brilhava a audácia heróica e valorosa,

A candura infantil e a inteligência rara,

O timbre da sua voz imperiosa e clara,

A linha do seu corpo altivamente recta,

Tudo lhe dava o ar soberbo dum atleta

Em miniatura.

II

Um dia o pai, um bravo aldeão,

Chamou-o ao pé de si, e disse-lhe:«João:

À força de trabalho e à força de canseiras,

A moirejar no monte e a levar gado às feiras,

Consegui ajuntar ao canto do baú

Alguns pintos. Vocês são dois rapazes; tu,

Além de ser mais novo, és mais inteligente.

Vou botar-te ao latim; quero fazer-te gente.

Hás-de me dar ainda um grande pregador.

Hoje padre é melhor talvez que ser doutor.

Aquilo é grande vida; é vida regalada.

Olha, sabes que mais? manda ao diabo a enxada.

Aquilo é que é vidinha! aquilo é que é descanso!

Arrecada-se a côngrua, engrola-se o ripanço,

Arranja-se um sermão aí com quatro tretas,

Vai-se escorropichando o vinho das galhetas,

E a missa seis vinténs e doze os baptizados.

Depois, independente e sem nenhuns cuidados!

Olha, João, vê tu o nosso padre-cura:

É, sem tirar nem pôr, uma cavalgadura,

Vi-o chegar aqui mais roto que os ciganos;

Pois tem feito um casão em meia dúzia d'anos.

Isto é desenganar; padres sabem-na toda...

É o sermão, é a missa, é o enterro, é a boda.

É pinga da melhor, e tudo quanto há!

Quando o abade morrer hás-de vir tu p'ra cá.

Despacha-te o doutor nas cortes; quando não

Votamos contra ele, e foi-se-lhe a eleição.

Mas que é isso, rapaz? Nada de choradeira!

É tratar da merenda, e quinta ou sexta-feira

Toca pró seminário. Eu quero ir para a cova

Só depois de te ouvir cantar a missa nova».

III

Numa tarde d'Outono, a sonolento trote

Um macho conduzia em cima do albardão,

Já coluna da Igreja, o novo sacerdote,

O muitíssimo ilustre e digno padre João.

Ao entrarem na aldeia os dois irracionais,

Dos foguetes ao grande e jubiloso estrépito

Um velho recebeu nos braços paternais,

Em vez do alegre filho, um monstro já decrépito

Que acabava de vir das jaulas clericais.

Que transfiguração! Que radical mudança!

Em lugar da inocente, angélica criança,

Voltava um chimpanzé, estúpido e bisonho,

Com o ar de quem anda alucinadamente

Preso nas espirais diabólicas dum sonho.

Seu corpo juvenil, robusto e florescente,

Vergava para o chão, exausto de cansaço:

Os dogmas são de bronze, e a lã duma batina

Já vai pesando mais que as armaduras d'aço.

A ignorância profunda, a estupidez suína,

A luxúria d'igreja, ardente, clandestina,

O remorso, o terror, o fanatismo inquieto,

Tudo isto perpassava em turbilhão confuso

Na atonia cruel daquele hediondo aspecto,

Na morna fixidez daquele olhar obtuso.

Metida nas prisões escuras de Loiola,

A sua alma infantil, não tendo luz nem ar,

Foi como os rouxinóis, que dentro da gaiola

Perdem toda a alegria e morrem sem cantar.

IV

Como ninguém ignora, os sórdidos palhaços

Compram, roubam às mães as loiras criancinhas,

Torcem-lhes o pescoço, as mãos, os pés, os braços,

Transformam-lhes num junco elástico as espinhas,

E exibem-nas depois nos palcos das barracas,

Dando saltos mortais e devorando facas

Ante o espanto imbecil da ingénua multidão;

E para lhes cobrir a lividez plangente

Costumam-lhes pintar carnavalescamente

Na face de alvaiade, um rir de vermelhão.

Também o jesuitismo hipócrita-romano,

Palhaço clerical, anda pelos caminhos

A comprar, a furtar, assim como um cigano,

As crianças às mães, os rouxinóis aos ninhos.

Vão levá-las depois ao negro seminário,

Às terríveis galés, ao sacro matadoiro,

E escondem-nas da luz, assim como o usurário

Esconde também dela os seus punhados d'oiro.

Dentro da estupidez e da superstição,

Casamata da fé, guardam-lhes a razão,

A análise, esse forte e venenoso fluido,

Que, andando em liberdade, ao mínimo descuido

Poderia estoirar com trágica explosão.

O que o palhaço faz ao corpo da criança,

Fazem-lho à alma, até que dela reste enfim,

Em lugar do histrião que nas barracas dança,

O pobre missionário, o inútil manequim,

O histrião que nos prega a bem-aventurança

A murros de missal e a roncos de latim.

As almas infantis são brandas como a neve,

São pérolas de leite em urnas virginais:

Tudo quanto se grava e quanto ali se escreve,

Cristaliza em seguida e não se apaga mais.

Desta forma, consegue o astucioso clero

Transformar, de repente, uma criança loira

Num pássaro nocturno estúpido e sincero.

É abrir-lhe na cabeça a golpes de tesoira

A marca industrial do fabricante — um zero!



Guerra Junqueiro

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