domingo, 24 de novembro de 2013

o domingo na poesia segundo vários escritores - 18 - os bobos e truões - 03


24 de Novembro de 2013 às 22:43
* Cecília Meireles - Dia de Chuva
* Charles Baudelaire - A Tampa
* Charles Baudelaire - A Morte dos Artistas
* Paulo Henriques Britto - O funâmbulo
* Jean Genet - E a tua ferida, onde está?
* Kahlil Gibran - O Louco

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* Cecília Meireles

Dia de Chuva

As espumas desmanchadas
sobem-me pela janela,
correndo em jogos selvagens
de corça e estrela.

Pastam nuvens no ar cinzento:
bois aéreos, calmos, tristes,
que lavram esquecimento.

Velhos telhados limosos
cobrem palavras, armários,
enfermidades, heroísmos...

Quem passa é como um funâmbulo,
equilibrado na lama,
metendo os pés por abismos...

Dia tão sem claridade!
só se conhece que existes
pelo pulso dos relógios...

Se um morto agora chegasse
àquela porta, e batesse,
com um guarda-chuva escorrendo,
e, com limo pela face,
ali ficasse batendo
— ali ficasse batendo
àquela porta esquecida
sua mão de eternidade...

Tão frenético anda o mar
que não se ouviria o morto
bater à porta e chamar...

E o pobre ali ficaria
como debaixo da terra,
exposto à surdez do dia.

Pastam nuvens no ar cinzento.
Bois aéreos que trabalham
no arado do esquecimento.

(in Cecília Meireles, Antologia Poética, Relógio d'Água)
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* Charles Baudelaire


A Tampa (Le Couvercle )

Onde quer que ele vá, ou sobre mar ou terra,
Sob um clima de chama ou sol branco,
Servidor de Jesus, cortesão de Citera,
Mendigo tenebroso ou Creso rutilante.

Cidadão, camponês, vagabundo, sedentário
Que seu pequeno cérebro seja ativo ou lento,
Em todo lugar o homem sofre o terror do mistério,
E olha ao alto senão com olhar trêmulo.

Acima, o Céu! o muro da cova que sufoca,
Teto iluminado para uma ópera bufa
Onde cada histrião pisa um chão de sangue;

Terror do devasso, esperança do tolo eremita;
O Céu! Tampa escura da grande marmita
Onde se confina a sutil e vasta Humanidade.

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Trad. livre: Leonardo de Magalhaens
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* Charles Baudelaire

A Morte dos Artistas  -  La Mort des Artistes (CXXIII)

Quantas vezes é preciso sacudir meus guizos
E beijar tua fronte baixa, morna caricatura?
Para furar o alvo, de mística natura,
Quantos, ó meu cesto, perder de dados?

Usaremos nossa alma em sutis complôs,
E destruiremos muita pesada armadura,
Antes de contemplar a grande Criatura
Cujo infernal desejo enche-nos de dor!

Não há quem não conheça seu ídolo,
E esses escultores condenados, em afronta,
Que vão se golpeando o peito e a fronte,

Sem uma esperança, estranho e sombrio Capitólio!
É que a Morte, tal um novo sol a planar
As flores de seus cérebros fará desabrochar!

.
Trad. livre: Leonardo de Magalhaens
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* Paulo Henriques Britto

O funâmbulo

Entre a palavra e a coisa
o salto sobre o nada.

Em torno da palavra
muitas camadas de sonho.
Uma cebola. Um átomo.
Uma cebola ávida.
Entre uma e outra camada
nada.

Saltam sobre o abismo
tomam o vazio de assalto.
De píncaro a píncaro
projetam-se, impávidas,
epifânicas, esdrúxulas,
teimosas e dançarinas.

O salto é uma dança,
a teima é uma doença.
Em torno da cebola
o ar é tenso de lágrimas.

(1951)

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* Jean Genet

E a tua ferida, onde está?

Pergunto onde fica,
em que lugar se oculta a ferida secreta
para onde foge todo o homem
à procura de refúgio
se lhe tocam no orgulho, se lho ferem?

Esta ferida
— que fica assim transformada em foro íntimo —
é que ele vai dilatar, vai preencher.

Sabe encontrá-la, todo o homem,
ao ponto de ele próprio ser a ferida,
uma espécie de secreto
e doloroso coração.

Se observarmos o homem ou a mulher
que passam com olhar rápido e voraz
— e também o cão, o pássaro, uma panela —
a velocidade do olhar é que nos mostra,
ela própria e com rigor máximo,
que ambos são a ferida
onde se escondem mal sentem o perigo.

O quê?
Já lá estão, já os conquistou
— deu-lhes a sua forma —
e para ela a solidão:
lá estão inteiros no retesar de ombros
em que passam a concentrar-se,
com toda a vida a confluir na ruga maldosa da boca,
e contra a qual nada podem nem querem,
pois dela é que sabem esta solidão absoluta,
incomunicável — este castelo da alma —
para serem a própria solidão.

È visível no funâmbulo que refiro,
no olhar triste
que deve reportar-se às imagens de uma infância miserável,
inesquecível,
em que ele teve consciência
de ser abandonado.

(...)

jean genet
o funâmbulo
trad. de aníbal fernandes
hiena editora
1984

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* Kahlil Gibran

O Louco

Perguntais-me como me tornei louco.
Aconteceu assim: um dia, muito tempo antes
de muitos deuses terem nascido,
despertei de um sono profundo e notei que todas
as minhas máscaras tinham sido roubadas
- as sete máscaras que eu havia
confeccionado e usado em sete vidas  –
e corri sem máscara pelas ruas cheias de gente, gritando:
"Ladrões, ladrões, malditos ladrões!"

Homens e mulheres riram de mim e alguns
correram para casa, com medo de mim.

E quando cheguei à praça do mercado,
um garoto trepado no telhado de uma casa gritou:
"É um louco!".

Olhei para cima, pra vê-lo.
O sol beijou pela primeira vez minha face nua.

Pela primeira vez, o sol beijava minha face nua,
e minha alma inflamou-se de amor pelo sol,
e não desejei mais minhas máscaras.

E, como num  transe, gritei:
"Benditos, bendito os ladrões que
roubaram minhas máscaras!"

Assim me tornei louco.

E encontrei tanto liberdade
como segurança em minha loucura:
a liberdade da solidão e a segurança de não ser compreendido, pois aquele desigual que nos
compreende escraviza alguma coisa em nós.

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Ensaísta, filósofo, prosador, poeta, conferencista e pintor de origem libanesa, cujos escritos, eivados de profunda e simples beleza e espiritualidade, alcançaram a admiração do público de todo o mundo. (1883-1931)


vem de o domingo na poesia segundo vários escritores - 17 - os bobos e truões - 02

Retrato do Louco olhando através de seus dedos Atribuído a 'Maître de 1537

Retrato do Louco olhando através de seus dedos Atribuído a 'Maître de 1537


Bufão ou bobo - Gravura de J.A.Beauce et Rouget

Bufão ou bobo - Gravura de J.A.Beauce et Rouget


17th-century engraving of Will Sommers, Henry VIII's jester

17th-century engraving of Will Sommers, Henry VIII's jester


Peter Brueghel - Loucos brincando - 1642

Peter Brueghel - Loucos brincando - 1642


Um casal de bufões.[bobos] Desenho de Hans Sebald Beham

Um casal de bufões.[bobos] Desenho de Hans Sebald Beham

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