domingo, 18 de maio de 2014

as crónicas de antónio sousa homem 03

* António de Sousa Homem


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O livro da Natureza
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Para que servem os livros, amontoados e desequilibrados? Entre mim e eles, nestas tardes de calor, fechadas as portadas de madeira da casa de Moledo, não há diálogo, não há – como se diz agora – interacção. Eu limito-me a estar deste lado, diante deles, olhando-os como uma estampa ou como um mapa de um velho atlas desactualizado.

Tenho, pelos velhos atlas, é preciso dizer, uma ternura especial, embora me esforce por actualizar as edições dos três que existem na biblioteca; as mudanças de fronteiras, alterações de nomes, ou simples trocas de soberania são sempre importantes. Há cerca de trinta, ao todo, entre actualizações e reimpressões – o mundo nunca foi, portanto, um problema para os Homem. Às vezes abro um ou outro e recordo como foi o traçado dos países, como evoluíram as suas designações, como se mudaram as cores dos estados federados e como alguns deles se tornaram independentes – e como continua exacta, imutável, perfeita, a localização das pequenas ilhas que formam o arquipélago de Tristão da Cunha, esse mistério da geografia do Atlântico Sul e dos nossos descobrimentos. O primeiro vice-rei da Índia portuguesa, que antecedeu o primo Afonso de Albuquerque no seu cargo, ficou pois perpetuado nas várias edições de atlas de todas as línguas: Tristão da Cunha continuará pelos séculos adiante como essa mancha no meio do mar profundo lembrando que há quinhentos anos, há exactamente quinhentos anos, em 1506, aquelas rochas foram visitadas por homens cujos netos, bisnetos e tetranetos depois se desinteressaram pelo facto. Na verdade, a data não foi assinalada e compreendo a perturbação que isso pudesse causar nos arquivos do velho império, habituado a glórias avulsas, repentinas e destinadas a inventários de banalidades.

Sinto diante de Tristão da Cunha a mesma angústia que me toma quando olho para os livros – há sempre um deles, abandonado há anos, que me pede atenção. Aproximo-me deles para recordar uma página, a data em que foi comprado numa livraria, um autor ignorado ou relegado para a penumbra. E pergunto-me: para que servem os livros, amontoados e desorganizados, inclinados uns sobre os outros, ou arrumados numa estante? Ora, eu sempre compreendi a vaidade do bibliotecário, mesmo a sua avareza – ela é um dos grandes segredos, não do mundo que teme a passagem do tempo, mas daquele que não tem quase nenhuma comunicação com o tempo e se limita a arquivar, a incluir uma nova ficha no catálogo de raridades acumuladas, a apreciar a forma como o tempo passa sobre os livros carregando-os de pó, de humidade e de comentários. A vaidade dos bibliotecários é uma das mais justificadas, e eu compreendo-a bem de cada vez que, sentado no sofá, assinalo distorções e enganos na organização das prateleiras, acasos na proximidade de autores, ou sinais de perfeição numa arrumação de há tempos.

A generalidade dos bons leitores, ou dos bons bibliotecários, gosta de mencionar as alegrias que eles – os livros – lhes proporcionaram, mas eu prefiro falar de felicidade, o que se compreende num velho de oitenta e seis anos que os folheia para confirmar que a curiosidade se sacia com pouco.

Na falta de literatura sobre Tristão da Cunha, dediquei-me a mais um volume do “Minho Pittoresco” para ler, na prosa de José Augusto Vieira, uma das explicações mais surpreendentes sobre a natureza do meu Minho. Repare o leitor: “Qualquer que seja o lado para que nos voltemos, a vista não alcança um horisonte que não seja fechado por montanhas, uma paysagem que não seja tufada de carvalheiras viçosas. Talvez que a abundancia d’esta especie florestal justifique as revoluções minhotas, que teem descido das alturas de Vieira resolvidas a varrer a cacete todas as oligarchias das terras baixas. A observação fica já agora como futuro elemento mesologico a determinar, quando se tenha em vista estabelecer o laço intimo, que liga a abundancia do carvalho cerquinho com o espírito revolucionário das populações, que lhe sentem o zoar da rama.”

Tamanho esforço de antropólogo apenas é permitido no “Minho Pittoresco”. Em redor de Moledo, nas encostas mais luminosas, existem carvalhos frondosos que resistem à avalanche de pinhais. Prefiro estes perto do mar – e os carvalhos no alto da serra, nas penedias, nas curvas dos montes. Mas os livros das bibliotecas podem organizar-se. Os da natureza estão apenas desorganizados.

in Revista Notícias Sábado – 17 Junho 2006
POSTED BY ANTÓNIO SOUSA HOMEM AT 17.6.06



Da ignorância, por causa da música

Houve uma altura em que havia muito Beethoven junto do velho gira-discos de Moledo. O piano de Beethoven enterneceu duas gerações de Homem, não podia ser mais, junto com algum Schubert. Para provar que não tinha sobrevivido ao Titanic por pura sorte, alimentei na minha sobrinha, por pura vaidade, a ideia de que era um apreciador de jazz, coisa em que ambos acreditámos durante algum tempo. O meu ouvido assemelha-se às paredes da casa de família em Ponte de Lima: muita surdez e alguns hábitos que não se perdem. Os trompetes sempre despertaram em mim aventuras que nunca aconteceram – a orquestra de Coleman Hawkins, nascido com o século, esteve ligada às pequenas alegrias da minha vida: irregulares, melodiosas, uma espécie de barroco do jazz.

Não castigo o leitor com a minha ignorância, que me basta a mim próprio para corar de vergonha. O mundo da minha adolescência, que ainda lembro, era muito mais silencioso do que o actual. Há momentos irrepetíveis, que hoje não têm sentido: ligar o aparelho de rádio, sintonizar uma estação de rádio para procurar um programa em especial, virar um disco no aparelho, mudar a rotação no gira-discos ou accionar a manivela de uma grafonola, por exemplo. O velho Doutor Homem, meu pai, gostava de uns discos com sambas brasileiros, acompanhados de orquestra a rigor, semelhantes às grandes orquestras americanas – e chegou a coleccionar discos de Dick Farney e de Cartola. Esses objectos vagamente arqueológicos já não existem, tal como o primeiro canteiro de hibiscos originais, que desapareceu com a idade. De certo modo, havia um cerimonial ligado à música: uma hora, uma solenidade, um auditório, uma novidade. Todo o resto da nossa vida, minha e do meu pai, foi dedicado aos livros – e ao escritório de advocacia mais ou menos familiar, onde entrei a contragosto, e de onde me retirei para Moledo, arrastando comigo os fins-de-semana da família, álbuns de fotografia e uma biblioteca em busca de organização. Apenas se mantêm os fins-de-semana e os álbuns de fotografia.

A biblioteca nunca teve ordem possível e compreendi que dar-lhe uma ordem demasiado exacta, profissional, era desrespeitar o espírito aventuroso do Doutor Homem, meu pai, que apenas concedia em organizar uma pequena parte dos seus livros – justamente, os seus autores de eleição, que iam de Disraeli a Yeats com alguns apeadeiros em poesia romântica inglesa e nas biografias de grandes homens. Pensando bem, a minha contribuição para essa biblioteca apenas veio envelhecê-la e torná-la menos cosmopolita; não a arejei com muitos novos autores, não a enriqueci com o chamado “pensamento contemporâneo” nem com o “romance moderno”, ignorei o que havia a ignorar. Ou seja, ilustrei-a com a minha ignorância e com a soberba de um velho cuja curiosidade tem limites muito estreitos.

Essa limitação tem vantagens. A minha sobrinha, enquanto me acompanhava às esplanadas da praça de Cerveira, onde costumo ir todos os meses como pretexto para almoçar onde a idade já me não perdoa, acha estranho que muitas das coisas de hoje não me interessem. O que não me interessa eu não conheço. O que conheço tento conhecer melhor. Passou o meu tempo de fazer escolhas e de exercitar a paciência deste pobre homem do Minho. As pessoas não são mais felizes por coleccionarem tantos títulos como o dr. Prado Coelho. Há, por certo, alguma virtude em não ser assim. Por mim, sou-o por hábito, por génio e por preguiça.

Quando o meu médico de Viana do Castelo recebe a minha visita periódica para vigiar os rins e os males cardíacos, tenta esconder-me as misérias. Eu compreendo-o. É um médico de antigamente, sabe que o conforto da alma é um bem muito superior ao conhecimento geral do universo.

in Revista Notícias Sábado – 5 Agosto 2006
POSTED BY ANTÓNIO SOUSA HOMEM AT 5.8.06

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