sexta-feira, 28 de novembro de 2014

Manuel da Fonseca - antes que seja tarde



ANTES QUE SEJA TARDE, Manuel da Fonseca (Poemas Completos)

Do livrinho "Cancioneiro da Esperança" (antologia organizada por Maria Tereza Horta e José Carlos Ary dos Santos, editado pela "Seara Nova, em 1971), o poema, "Antes que seja tarde", de Manuel da Fonseca.

Antes que Seja Tarde 

Amigo,
tu que choras uma angústia qualquer
e falas de coisas mansas como o luar
e paradas
como as águas de um lago adormecido,
acorda!
Deixa de vez
as margens do regato solitário
onde te miras
como se fosses a tua namorada.
Abandona o jardim sem flores
desse país inventado
onde tu és o único habitante.
Deixa os desejos sem rumo
de barco ao deus-dará
e esse ar de renúncia
às coisas do mundo.
Acorda, amigo,
liberta-te dessa paz podre de milagre
que existe
apenas na tua imaginação.
Abre os olhos e olha,
abre os braços e luta!
Amigo,
antes da morte vir
nasce de vez para a vida.

sexta-feira, 21 de novembro de 2014

chico buarque - tanto mar


Tanto mar 
Chico Buarque 
Notas 
1975
(primeira versão)* 


Sei que estás em festa, pá
Fico contente
E enquanto estou ausente
Guarda um cravo para mim

Eu queria estar na festa, pá
Com a tua gente
E colher pessoalmente
Uma flor do teu jardim

Sei que há léguas a nos separar
Tanto mar, tanto mar
Sei também quanto é preciso, pá
Navegar, navegar

Lá faz primavera, pá
Cá estou doente
Manda urgentemente
Algum cheirinho de alecrim

* Letra original,vetada pela censura; gravação editada apenas em Portugal, em 1975. 
1978
(segunda versão)




2ª versão 1978 


Foi bonita a festa, pá
Fiquei contente
E inda guardo, renitente
Um velho cravo para mim

Já murcharam tua festa, pá
Mas certamente
Esqueceram uma semente
Nalgum canto do jardim

Sei que há léguas a nos separar
Tanto mar, tanto mar
Sei também quanto é preciso, pá
Navegar, navegar

Canta a primavera, pá
Cá estou carente
Manda novamente
Algum cheirinho de alecrim 



http://www.chicobuarque.com.br/letras/tantomar_75.htm

quinta-feira, 20 de novembro de 2014

ANTÓNIO MACHADO poeta sevilhano

Um dos poemas mais divulgados de António Machado concentra interessante conteúdo filosófico. A lembrar, por exemplo, a questão da prioridade essência/existência.

Caminante, son tus huellas
el camino, y nada más;
caminante, no hay camino,
se hace camino al andar.
Al andar se hace camino,
y al volver la vista atrás
se ve la senda que nunca
se ha de volver a pisar.
Caminante, no hay camino,
sino estelas en la mar.
Caminhante, são teus rastos
o caminho, e nada mais;
caminhante, não há caminho,
faz-se caminho ao andar.
Ao andar faz-se o caminho,
e ao olhar-se para trás
vê-se a senda que jamais
se há-de voltar a pisar.
Caminhante, não há caminho,
somente sulcos no mar.

O poema transcrito faz parte de um conjunto de provérbios e cantares. Uma selecção de mais alguns do mesmo conjunto:


XXI
Ayer soñé que veía
a Dios y que a Dios hablaba;
y soñé que Dios me oía...
Después soñé que soñaba.
XXXVII
¿ Dices que nada se crea?
No te importe, con el barro
de la tierra, haz una copa
para que beba tu hermano.
XXXVIII
¿ Dices que nada se crea?
Alfarero, a tus cacharros.
Haz tu copa y no te importe
si no puedes hacer barro.
XLII
¿ Dices que nada se pierde?
Si esta copa de cristal
se me rompe, nunca en ella
beberé, nunca jamás.
XLVI
Anoche soñé que oía
a Dios, gritándome: ¡ Alerta!
Luego era Dios quien dormía,
y yo gritaba: ¡ Despierta!
XXI
Ontem eu sonhei que via
Deus e que a Deus falava;
e sosnhei que Deus me ouvia...
Depois sonhei que sonhava...
XXXVII
Dizes que nada se cria?
Não te importes, e com o barro
da terra faz uma taça
para que beba teu irmão.
XXXVIII
Dizes que nada se cria?
Oleiro, mãos ao trabalho!
Faz teu copo e não te importe
se não podes fazer barro.
XLII
Dizes que nada se perde?
Se esta taça de cristal
se me partir, nunca nela
eu beberei, nunca mais.
XLVI
À noite sonhei que ouvia
Deus, que me gritava: Alerta!
Depois Deus adormecia
e eu gritava: Desperta!

sonho. O sonho é o "pano de fundo" de um dos poemas de António Machado de que mais gosto. Com referências filosóficas evidentes num invólucro poeticamente delicioso. Ou não fosse uma parábola...

Era un niño que soñaba
un caballo de cartón.
Abrió los ojos el niño
y el caballito no vio.
Con un caballito blanco
el niño volvió a soñar;
y por la crin lo cogía...
¡ Ahora no te escaparás!
Apenas lo hubo cogido,
el niño se despertó.
Tenia el puño cerrado.
¡ El caballito voló!
Quedóse el niño muy serio
pensando que no es verdad
un caballito soñado.
Y ya no volvió a soñar.
Pero el niño se hizo mozo
y el mozo tuvo un amor,
y a su amada le decía:
¿ Tú eres de verdad o no?
Cuando el mozo se hizo viejo
pensaba: todo es soñar,
el caballito soñado
y el caballo de verdad.
Y cuando vino la muerte,
el viejo a su corazón
preguntaba: ¿ Tú eres sueño?
¡ Quién sabe si despertó!


http://ocanto.no.sapo.pt/destaque/machado.htm


Os poemas de António Machado foram transcritos da 2ª ed. (revista e aumentada) de uma Antologia Poética (com selecção, tradução, prólogo e notas de José Bento), da editorial Cotovia (1999).

sábado, 15 de novembro de 2014

manoel de barros - "O MENINO QUE CARREGAVA ÁGUA NA PENEIRA


Dizem que morreu ontem Manoel de Barros. “Noventa por cento do que escrevo é invenção, só dez por cento é mentira”. Manoel de Barros não morreu ontem. Ainda há dias, poucos, aqui mostrei parte dele. "Retrato do artista quando coisa". O artista continua coisando. Sim, e Sempre! O menino continua carregando água na peneira. Obrigado, Manoel. [não sei de ninguém que saiba -- saiba! -- declamar Manoel de Barros]
"O MENINO QUE CARREGAVA ÁGUA NA PENEIRA
Tenho um livro sobre águas e meninos.
Gostei mais de um menino
que carregava água na peneira.
A mãe disse que carregar água na peneira
era o mesmo que roubar um vento e
sair correndo com ele para mostrar aos irmãos.
A mãe disse que era o mesmo
que catar espinhos na água.
O mesmo que criar peixes no bolso.
O menino era ligado em despropósitos.
Quis montar os alicerces
de uma casa sobre orvalhos.
A mãe reparou que o menino
gostava mais do vazio, do que do cheio.
Falava que vazios são maiores e até infinitos.
Com o tempo aquele menino
que era cismado e esquisito,
porque gostava de carregar água na peneira.
Com o tempo descobriu que
escrever seria o mesmo
que carregar água na peneira.
No escrever o menino viu
que era capaz de ser noviça,
monge ou mendigo ao mesmo tempo.
O menino aprendeu a usar as palavras.
Viu que podia fazer peraltagens com as palavras.
E começou a fazer peraltagens.
Foi capaz de modificar a tarde botando uma chuva nela.
O menino fazia prodígios.
Até fez uma pedra dar flor.
A mãe reparava o menino com ternura.
A mãe falou: Meu filho você vai ser poeta!
Você vai carregar água na peneira a vida toda.
Você vai encher os vazios
com as suas peraltagens,
e algumas pessoas vão te amar por seus despropósitos!"

parilhado por Isabel Reis

sexta-feira, 14 de novembro de 2014

Tawfiq Az-Zayyad - Um poema em homenagem à resistência palestina

14 de novembro de 2014 - 16h07 

O poeta e ativista político Tawfiq Az-Zayyad (1929 – 1994) dedicou a vida à valorizar a cultura palestina e lutar pela liberdade de seu povo. Estudou literatura na antiga União Soviética e incorporou em sua escrita os provérbios tradicionais, enigmas e advinhas além de ritmos e refrões da poesia popular árabe-palestina.






Preso pelos israelenses em 1958, escreveu a maior parte dos poemas de seu primeiro livro na prisão. Suas obras foram publicadas em diversos países, entre eles a Síria e o Líbano, e foram traduzidas, parcialmente, para as línguas ocidentais. 


No Brasil, a poesia de Az-Zayyad foi traduzida (a partir de uma versão para o espanhol) por Abdellatif Laâbi, na antologia Poesia palestina de combate (Rio de Janeiro: Achiamé, 1981). 

Tawfiq Az-Zayyad desempenhou também importantes atividades políticas, sendo eleito prefeito de Nazaré e deputado para o Knesset. Foi coautor de um relatório sobre o uso da tortura em prisioneiros palestinos pelas autoridades israelenses, que foi publicado no jornal Al Hamishmar. 

Az-Zayyad faleceu em 5 julho de 1994, no Vale do Jordão, em um acidente de carro, quando voltava a Nazaré após encontrar-se com o líder da Organização para a Libertação da Palestina (OLP), Yasser Arafat, em Jericó.


Confira um poema de Tawfiq Az-Zayyad:



O Impossível 




Fazer um elefante passar pelo buraco
de uma agulha
seria tarefa mil vezes mais fácil
ou ainda pescar peixe frito 
em terra incinerada
semear os mares
fazer falarem os crocodilos
sim, mil vezes mais fácil
do que perseguir, extinguir 
um tênue pensamento 
do caminho que escolhemos.

Como se fôssemos vinte impossibilidades
em Al-Lid, Ar-Ramla e Galileia
recostamos em seu peito-muralha 
ferimos a sua garganta
com a rispidez de cacos de vidro 
com a rispidez de figos indianos
e cegamos seus olhos
como um inferno de flamas.
Aqui descansamos em seu peito-muralha 
lavamos pratos em restaurantes
enchemos os copos de ricaços
limpamos azulejos em cozinhas escuras
e assim roubamos pão para os pequenos
dos seus dentes azuis acostumados com o roubo.
Aqui no seu peito persistimos
ficaremos aqui, no pesado peito-muralha
famintos, desafiadores, nus
recitando poemas
revolvendo as ruas com revoltas 
e as prisões da soberba.
Transformamos nossos filhos numa geração
que levará adiante a nossa ira 
— redobrada —
como se fôssemos vinte impossibilidades
em Al-Lid, Ar-Ramla e Galileia.
Aqui devemos ficar.
Você pode sorver o mar
mas nós cuidaremos com prazer
das sombras da oliveira e da figueira
e plantaremos ideias como fermento.

Frio glacial em nossos nervos
e fogo de flama em nossos corações:
esprememos as pedras
tomados pela sede
aplacamos a fome com terra.
Não desistimos, nós não desistimos
não somos avaros com sangue precioso.
Aqui está o nosso passado.
Aqui, presente e futuro.
Como se fôssemos vinte impossibilidades
em Al-Lid, Ar-Ramla e Galileia.
Dizemos a vocês: agarrem as vivas raízes
e penetrem profundamente no solo!
Para o caçador, vale a pena a caça
ver os relatos fabricados
antes que seja impossível deter a roda.
Para cada ação, uma reação.
Leia o que diz o Livro, 
Como se fôssemos vinte impossibilidades 
em Al-Lid, Ar-Ramla e Galileia.



Tradução: Moara Crivelente e Claudio Daniel

Nota sobre a tradução: o poema O impossível, de Tawfiq Az-Zayyad, foi traduzido inicialmente do inglês para o português por Moara Crivelente e posteriormente revisado e “reimaginado” por Claudio Daniel.

http://www.vermelho.org.br/noticia/253531-11

quinta-feira, 13 de novembro de 2014

A poesia inventada de Manoel de Barros, só dez por cento é mentira

Cultura


14 de novembro de 2014 - 14h36 



Nesta quinta-feira (13) o dia amanheceu triste. O poeta das coisas simples, Manoel de Barros, que tanto inventou sua biografia, não pôde inventar também o fim. Aos 97 anos ele se foi, para virar passarinho, e a nós resta um legado belo e singelo de poeminhas sobre a simplicidade. 

Inventou suas infâncias e deixou o mundo um lugar mais bonito. “Noventa por cento do que eu escrevo é invenção. Só dez por cento é mentira”, dizia o poeta.


Confira cinco poemas de Manoel de Barros selecionados pela redação do Portal Vermelho: 


Retrato do artista quando coisa

A maior riqueza
do homem
é sua incompletude.
Nesse ponto
sou abastado.
Palavras que me aceitam
como sou
— eu não aceito.
Não aguento ser apenas
um sujeito que abre
portas, que puxa
válvulas, que olha o
relógio, que compra pão
às 6 da tarde, que vai
lá fora, que aponta lápis,
que vê a uva etc. etc.
Perdoai. Mas eu
preciso ser Outros.
Eu penso
renovar o homem
usando borboletas.




O apanhador de desperdícios


Uso a palavra para compor meus silêncios.
Não gosto das palavras
fatigadas de informar.
Dou mais respeito
às que vivem de barriga no chão
tipo água pedra sapo.
Entendo bem o sotaque das águas
Dou respeito às coisas desimportantes
e aos seres desimportantes.
Prezo insetos mais que aviões.
Prezo a velocidade
das tartarugas mais que a dos mísseis.
Tenho em mim um atraso de nascença.
Eu fui aparelhado
para gostar de passarinhos.
Tenho abundância de ser feliz por isso.
Meu quintal é maior do que o mundo.
Sou um apanhador de desperdícios:
Amo os restos
como as boas moscas.
Queria que a minha voz tivesse um formato
de canto.
Porque eu não sou da informática:
eu sou da invencionática.
Só uso a palavra para compor meus silêncios.




Tratado geral das grandezas do ínfimo


A poesia está guardada nas palavras — é tudo que eu sei.
Meu fado é o de não saber quase tudo.
Sobre o nada eu tenho profundidades.
Não tenho conexões com a realidade.
Poderoso para mim não é aquele que descobre ouro.
Para mim poderoso é aquele que descobre as insignificâncias (do mundo e as nossas).
Por essa pequena sentença me elogiaram de imbecil.
Fiquei emocionado.
Sou fraco para elogios.




O menino que carregava água na peneira


Tenho um livro sobre águas e meninos.
Gostei mais de um menino
que carregava água na peneira.
A mãe disse que carregar água na peneira
era o mesmo que roubar um vento e
sair correndo com ele para mostrar aos irmãos.
A mãe disse que era o mesmo
que catar espinhos na água.
O mesmo que criar peixes no bolso.
O menino era ligado em despropósitos.
Quis montar os alicerces
de uma casa sobre orvalhos.
A mãe reparou que o menino
gostava mais do vazio, do que do cheio.
Falava que vazios são maiores e até infinitos.
Com o tempo aquele menino
que era cismado e esquisito,
porque gostava de carregar água na peneira.
Com o tempo descobriu que
escrever seria o mesmo
que carregar água na peneira.
No escrever o menino viu
que era capaz de ser noviça,
monge ou mendigo ao mesmo tempo.
O menino aprendeu a usar as palavras.
Viu que podia fazer peraltagens com as palavras.
E começou a fazer peraltagens.
Foi capaz de modificar a tarde botando uma chuva nela.
O menino fazia prodígios.
Até fez uma pedra dar flor.
A mãe reparava o menino com ternura.
A mãe falou: Meu filho você vai ser poeta!
Você vai carregar água na peneira a vida toda.
Você vai encher os vazios
com as suas peraltagens,
e algumas pessoas vão te amar por seus despropósitos!




O fazedor de amanhecer



Sou leso em tratagens com máquina.
Tenho desapetite para inventar coisas prestáveis.
Em toda a minha vida só engenhei
3 máquinas
Como sejam:
Uma pequena manivela para pegar no sono.
Um fazedor de amanhecer
para usamentos de poetas
E um platinado de mandioca para o
fordeco de meu irmão.
Cheguei de ganhar um prêmio das indústrias
automobilísticas pelo Platinado de Mandioca.
Fui aclamado de idiota pela maioria
das autoridades na entrega do prêmio.
Pelo que fiquei um tanto soberbo.
E a glória entronizou-se para sempre
em minha existência.



Só dez por cento é mentira


O documentário Só dez por cento é mentira (2008) traz uma entrevista inédita com Manoel de Barros, que até então nunca tinha se deixado filmar para tais fins. Seguindo a lógica - se pode se chamar assim - da obra do poeta, o documentário investe em produção ficcional, dramaturgia, representações gráficas e linguagem visual inventiva para narrar o universo extraordinário criado por Manoel de Barros.


Narrado na maior parte das vezes em tom pessoal o filme busca, sobretudo, “uma voz que aproxime-se da simplicidade e da afetividade do personagem e que se afaste da soberba e da pretensão de uma análise teórica sobre poesia no idioleto manoelês”, disse o diretor Pedro Cezar. 

Só Dez Por Cento é Mentira ganhou os prêmios de melhor documentário longa-metragem do II Festival Paulínia de Cinema 2009 e os prêmios de melhor direção de longa-metragem documentário e melhor filme documentário longametragem do V Fest Cine Goiânia 2009.

Veja o documentário na íntegra: 


Do Portal Vermelho
Mariana Serafini

segunda-feira, 10 de novembro de 2014

Eugénia Cunhal - A TV

* Eugénia Cunhal

A TV

Costumava passar a maior parte do tempo de olhos fechados. Abri-los, para quê? Iriam bater nas paredes brancas, quase nuas, enfeitadas apenas por uma pequena reprodução da Ceia de Cristo que habitava no seu quarto. Iriam bater nas duas foto- grafias coloridas que descansavam na cómoda. Desbotadas. Talvez pelo olhar que amiúde nelas se fixava. Sugando-lhes as imagens. Roubando-as ao passado. Sem que elas se fundissem no rosto e no corpo que agora eram os seus.

Pensava nisso, quando os olhos fugiam para as mãos poisadas nas bordas do lençol. Mãos de pele enrugada e veias salientes. Mãos gastas, sem terem podido realizar os gestos que habitavam os seus sonhos. Mãos, que a vida dirigiu para trabalhos ásperos e duros. Mãos, cujos dedos ficavam presos ao mais leve movimento, tomando cada vez mais penoso o simples agarrar num qualquer objecto necessário.

Até que chegou o momento em que o corpo resistira a cumprir as mais pequenas obrigações do dia a dia. E ali ficava, deitada a maior parte do tempo. Como um trapo inútil. Ela, que sempre dominara os desafios que nasciam a cada passo do longo caminho dos seus setenta anos.

Um gesto de amor colocou-lhe no quarto um aparelho de televisão. E as paredes ficaram menos nuas. Menos brancas. Menos vazias. Assim, passa melhor o tempo - disseram-lhe. Sempre se vai entretendo.

Agradeceu. E foi conseguindo premir os botões do comando e passear pelos vários canais. De qualquer modo, pelo menos, nasceria um ruído feito de outras vozes, de mil sons que a haveriam de ligar ao lado de fora. E as falas que tentava seguir, proferidas por tantas vozes, hora após hora. E as imagens de gente com quem mal se cruzara, como se tivesse vivido num mundo paralelo.

Viste a novela, ontem? Com a pergunta, a voz ganhava um novo colorido. E o olhar também. Por momentos, eram elas próprias que viviam as histórias das personagens. Eram aquelas mulheres. Suas, aquelas casas confortáveis, espaçosas. Seus, aqueles gestos. Aquelas traições. Aqueles amores. Seus, os finais felizes daquelas vidas. Esquecidas, amassadas, bem no fundo do peito, ficavam as preocupações do dia a dia. O dinheiro que mal chegava até ao fim do mês. O novo filho que ia nascer para todas as interrogações da vida de amanhã. Todas as inquietações. Todas as angústias. Sim, por momentos, elas eram aquelas mulheres.

Viste a novela, ontem?

domingo, 9 de novembro de 2014

Eugénia Cunhal - Oh Capitão

* Eugénia Cunhal

Oh , capitão

Por vezes, amanhecemos diferentes. Os olhos, ainda toldados pelo sono, já brilham por detrás das pálpebras. Um brilho que se não vê, mas que sente quem põe uma qualquer esperança, numa qualquer coisa, num qualquer dia. Luminoso, que se aproxima.

Assim aconteceu com ela. O filho prometera-lhe levar-lhe o neto para passar um pedaço da tarde consigo. O neto que com ela vivera, na mesma casa, os primeiros dias e meses de vida. Uma infância que ia até ao fim do segundo ano de escola, como agora  se diz.

A vida dos pais levara-o para uma outra casa. Num bairro longínquo, em que, mesmo numa cidade pequena como esta, toma difíceis as deslocações.

Mãe, amanhã levo-lhe o João para passar um bocado da tarde consigo.

Para matar saudades, que acabavam sempre por doer mais, ia muitas vezes ao quarto que fora do neto. Os olhos contemplavam, embevecidos, uma dezena de autocolantes, na maioria, representando animais, que ele fora colando na porta do armário da roupa. Primeiro, na zona debaixo, depois subindo, como tamanho dos anos que ia tendo.

As mãos, numa carícia lenta, acompanhavam o movimento dos olhos. E no rosto pincelava-se um leve e magoado sorriso de saudade, recordando os dias em que ali brincavam. Vó, vamos brincar. Com que gosto os brinquedos que se amontoavam pelo chão ficavam ignorados. Inúteis.

Vamos imaginar que ... E vinham os barcos de que as mãos comandavam as velas. E as espadas sempre ao serviço dos mais fracos. E os chefes índios que os saudavam como verdadeiros amigos. Acompanhava, orgulhosa, as expressões que se iam espelhando no rosto do menino. Assim é que é, capitão ...

Quando a campainha da porta da rua tocou, foi esperá-lo à escada. Vi-o subir, olhar para cima e dizer: Olá, avó. Estava mais alto. E mais bonito, ainda.



Vamos para o meu quarto, queres? Poderia tê-lo encaminhado para outra divisão. Quase inconscientemente, escolhera o quarto onde, poucos dias antes da mudança dos pais ali tivera começado a ler-lhe " O Principezinho". Esperando talvez, que ele lhe pedisse para acabar a história.

Queres ver o que trago aqui? Foi o pai que me comprou. E abriu uma revista, de páginas cheias de carros, que expunham, orgulhosamente, o luxo das linhas e a excessiva comodidade do interior.

De qual gostas mais? Gosto de carros simples que não tenham ... e hesitou para não empregar a palavra ostentação, pouco perceptível para uma criança. E de roupa de marca, gostas? Insistiu o menino. Para mim, a roupa deve ser cómoda e bonita, mais nada.

O neto olhou-a com um certo espanto. Afinal de que é que gostas? Queria dizer-lhe: gosto de árvores, do mar, de estar com os amigos. Acabou por encolher simplesmente os ombros.

E só lhe apeteceu perguntar-lhe: que é feito de ti? Por que caminhos andas agora … 


in Escritos de Esferográfica

sexta-feira, 7 de novembro de 2014

Poema de Vladimir Maiakovski em homenagem a Lênin

7 de novembro de 2014 - 16h05 


O poeta Vladimir Maiakovski escreveu o poema Vladimir Ilitch Lênin em 1924, ainda sob o impacto da morte do revolucionário russo, em 21 de janeiro daquele ano. A obra é uma ode à Revolução Socialista de Outubro, ao legado de Lênin e ao Partido Comunista russo. Inédita no Brasil, a obra foi traduzida direto do Russo por Zoia Prestes e publicada pela editora Anita Garibaldi em parceria com a Fundação Maurício Grabois.


Divulgação
A obra completa pode ser conferida no livro<i> Vladimir Ilitch Lênin, </i>publicado no Brasil pela editora Anita Garibaldi
A obra completa pode ser conferida no livro Vladimir Ilitch Lênin, publicado no Brasil pela editora Anita Garibaldi

Confira trechos do poema:


 

"Não devemos / nos derramar / em poços de lágrimas, - / Lenin / ainda / está mais vivo do que os vivos / É nosso saber - / nossa força e arma

O Partido e Lenin - / são irmãos gêmeos - / quem é mais / valioso do que a mãe-história? / Dizemos Lenin - / subentendemos - / Partido, / Dizemos / Partido, / subentendemos - / Lenin

Não é a vassoura / a arma é o fuzil. / Mil vezes / a mesma coisa / ele prega / no ouvido surdo / e amanhã / cada um erguerá / as mãos / que entenderam as duas. / Ontem foram quatro, / hoje são quatrocentos. / Escondemo-nos, / mas amanhã / vamos de peito aberto, / e esses / quatrocentos / serão mil

Dessa bandeira / de cada dobra / novamente / vivo / Lenin conclama: / - Proletários, / formem-se / para a última batalha! / Escravos, / endireitem / as colunas e os joelhos! / Exército dos proletários, / levante-se esguio! / Viva a revolução, / radiante e veloz! / Essa - / é a única / grande guerra / de todas / que a história já viveu"


Da redação do Vermelho

quinta-feira, 6 de novembro de 2014

João de Deus - o dinheiro

* João de DeusO dinheiro é tão bonito, 
Tão bonito, o maganão! 
Tem tanta graça, o maldito, 
Tem tanto chiste, o ladrão! 
O falar, fala de um modo... 
Todo ele, aquele todo... 
E elas acham-no tão guapo! 
Velhinha ou moça que veja, 
Por mais esquiva que seja, 
                            Tlim! 
                            Papo. 

E a cegueira da justiça 
Como ele a tira num ai! 
Sem lhe tocar com a pinça; 
E só dizer-lhe: «Aí vai...» 
Operação melindrosa, 
Que não é lá qualquer coisa; 
Catarata, tome conta! 
Pois não faz mais do que isto, 
Diz-me um juiz que o tem visto: 
                            Tlim! 
                            Pronta. 

Nessas espécies de exames 
Que a gente faz em rapaz, 
São milagres aos enxames 
O que aquele demo faz! 
Sem saber nem patavina 
De gramática latina, 
Quer-se um rapaz dali fora? 
Vai ele com tais falinhas, 
Tais gaifonas, tais coisinhas... 
                            Tlim! 
                            Ora... 

Aquela fisionomia 
É lábia que o demo tem! 
Mas numa secretaria 
Aí é que é vê-lo bem! 
Quando ele de grande gala, 
Entra o ministro na sala, 
Aproveita a ocasião: 
«Conhece este amigo antigo?» 
— Oh, meu tão antigo amigo! 
                            (Tlim!) 
                            Pois não! 

João de Deus, in 'Campo de Flores'

segunda-feira, 3 de novembro de 2014

Augusto dos Anjos - VERSOS ÍNTIMOS

* Augsto dos Anjos

Vês?!  Ninguém assistiu ao formidável
Enterro de tua última quimera.
Somente a Ingratidão — esta pantera —
Foi tua companheira inseparável! 
Acostuma-te à lama que te espera!
O Homem, que, nesta terra miserável,
Mora, entre feras, sente inevitável
Necessidade de também ser fera. 
Toma um fósforo.  Acende teu cigarro!
O beijo, amigo, é a véspera do escarro,
A mão que afaga é a mesma que apedreja. 
Se a alguém causa inda pena a tua chaga,
Apedreja essa mão vil que te afaga,
Escarra nessa boca que te beija!

MAIS POEMAS EM 

http://www.jornaldepoesia.jor.br/augusto.html