segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

Araújo Jorge e Pereira, Pedro Sousa – Paralelo 75 ou O segredo de um coração traído




II

O senhor engenheiro embrenhou-se nas ruas da cidade, por uma vez não seguiu o caminho do costume, não apanhou o autocarro do costume, não se cruzou com as pessoas do costume. Preferiu caminhar sem destino, queria estar sozinho no meio da multidão, ser apenas mais um na romaria que àquela hora regressava a casa depois de mais um dia de trabalho.

Parecia que tinha um turbo na sola dos sapatos, por ruas e ruelas, por praças e travessas, foi a primeira vez que olhou para a cidade olhos nos olhos, era muito mais bonita do que imaginara. E continuou a andar, esta cidade afinal tem o seu encanto, pensou em voz baixa, deixou-se deslizar pelas colinas, pelas escadinhas, estava a ter um prazer enorme de a descobrir mesmo que as circunstâncias não fossem as ideais. E chegou finalmente ao rio. Nesta cidade todos os caminhos vão dar ao rio, confirmou, deixou-se entranhar na zona ribeirinha, era como desaguar no mar da tranquilidade.

(…) Chegou a um imponente edifício de traça colonial, enormes portas e janelas de ferro, o pé direito a rasgar os céus, as salas a perder de vista, candelabros de cristal a balouçar no tecto. Poderia viver mil anos, perder a memória, que nunca se esqueceria daquela imagem. A Doca da  Saudade foi a primeira coisa que viu quando atracou na Metrópole.

Nas memórias do senhor engenheiro, o ano de I975 foi ontem, nem parecia que tinham passado mais de trinta anos, o tempo passa sempre depressa quando deixa de contar, deixa de interessar, para ele deixou de contar no dia em que foi obrigado a abandonar a sua África natal.

O melhor daquela viagem foram mesmo os quinze dias em alto mar, foram, sem dúvida, os melhores dias destes últimos trinta anos. É verdade que o paquete Pátria era um verdadeiro luxo e nem o facto de vir a abarrotar de gente lhe retirava parte do seu esplendor. Parecia um hotel de cinco estrelas a deslizar pelo oceano, o pequeno-almoço servido em Vista Alegre, talheres de prata adormecidos sobre guardanapos de linho, o almoço à beira da piscina, a ceia de fato e gravata apesar do calor tórrido. Era um ambiente digno de um filme americano, não faltavam os concorridos bailes ao fim da noite onde bailarinos de méritos reconhecidos escreviam no chão cartas de amor com passos leves e delicados.                                         

(…)
-
- A Metrólope é aquilo? - gritou um miúdo enquanto apertava bem forte as mãos do avô.

Ele encolheu os ombros. Era mesmo. Aquilo não era apenas uma cidade diferente, era um país diferente, um mundo diferente. Um mundo que a maioria apenas conhecia de ter ouvido falar. Conhecia as cidades todas, as aldeias todas, os rios todos, os seus afluentes também, os apeadeiros de caminhos-de-ferro todos, os horários dos comboios também, conhecia tudo isso porque era matéria obrigatória nos manuais escolares. Mas não conhecia o essencial. Não conhecia as gentes e, sobretudo, não lhes conhecia a alma.

Assim, numa primeira impressão, o que os seus olhos viam não era um bom prenúncio. A multidão que enchia a varanda do edifício imponente tinha um ar desconfiado, pareciam espectadores tristes de um espectáculo de circo, os homens trajados com fatos de flanela cinzenta, as mulheres forradas de negro dos pés à cabeça, era a plateia de um enterro à beira-rio, faltava uma capulana para alegrar o ambiente. Apesar do sol celestial que a iluminava, a cidade tinha um ar sombrio.

À medida que o barco se aproximava do cais reparou em alguns braços que acenavam sem parar. Deveriam ser familiares dos passageiros que aguardavam impacientemente para abraçar os seus entes queridos. Não era nada que lhe dissesse respeito, certamente que não teria ninguém à espera, toda a sua família ficara na terra que acabara de abandonar. Na sua terra. Na sua África.

(…)

Em cima do cais havia caixotes por tudo quanto era canto. Havia grandes, médios e pequenos. Bonitos e feios. Havia caixotes humildes - restos de grades de cerveja costurados com pregos enferrujados -, caixotes remediados - esqueleto da mobília de sala jantar com direito a prego de aço -, caixotes supra-sumo - feitos com madeira de mogno, parafuso de meia polegada e cinta de alumínio. Era uma floresta de caixotes, retalhos de muitas vidas, pedaços de muitas memórias.

(…)

E partiu à procura do seu caixote. Do seu passado. Do que restava da sua vida. Como ele muitas outras pessoas também procuravam o seu bem mais precioso. Era tudo o que tinham conseguido trazer depois de uma vida de trabalho. Inconscientes, como sempre, as crianças brincavam à cabra-cega no meio do tesouro de muitas vidas.

- Já me roubaram o meu caixote - gritou uma mulher a transpirar  menopausa.

- Maria, o nosso está aqui - sossegou o marido com palavras empapadas de suor.

O  senhor engenheiro assistia ao rebuliço com um sorriso na berma dos lábios. Aquele espectáculo era um pouco da sua África que não se tinha extraviado na viagem de regresso. Mas deveria ser o único que não tinha um caixote para amostra - trouxera apenas uma mala que pesava que nem chumbo e um baú leve que nem uma pena -, deveria ser o único que não tinha memórias revestidas a madeira.

- Deixe comigo que eu trato das suas bagagens - não foi um pedido mas quase uma ordem.

O senhor engenheiro não respondeu porque ainda estava embriagado pela confusão. Mas nem precisava porque o carregador já tinha colocado a mala e o baú num carrinho de mão.

- As suas ordens, patrão – acrescentou com palavras revestidas de bajulação.

E ficou sentado sobre o baú à espera de novas instruções. E ele nada, não queria desperdiçar destroços de um mundo moribundo, pedaços de uma África que já só existia na sua cabeça. Por isso foi-se ficando, não tinha pressa nem lugar para onde ir, o carregador cada vez mais nervoso, cada vez mais falador.

- O patrão não acha que devíamos avançar para a alfândega?

E ele nada. Tinha mais olhos do que palavras. Por isso reparou num indiano de barriga avantajada e cabelos cor de açafrão numa roda viva de contactos com os passageiros recém- -chegados - estava a angariar clientes para a sua pensão. Certamente que é um retornado, pensou, mas como a palavra soou-lhe mal emendou a língua, deve ser mais um que veio de África. Foi por isso que simpatizou com a cara dele, bastou trocarem um olhar, nem foi preciso dois dedos de conversa.

- Diga-me o endereço - perguntou só por perguntar.

Ele estendeu-lhe um cartão-de-visita cheio de letras douradas.

- Pensão Bombaim, ao seu dispor - respondeu com banha de cobra a enfeitar cada uma das suas palavras.

O senhor engenheiro segurou o cartão-de-visita com a ponta dos dedos e dirigiu-se para a praça de táxis. O carregador, impaciente, salivava gorjeta nas suas pegadas.

- Isto chega? - perguntou ao mesmo tempo que lhe estendia uma nota novinha em folha.

- Sempre ao seu serviço, patrão - agradeceu o carregador à medida que endireitava as costas maltratadas pelo peso das bagagens.

O senhor engenheiro apanhou o primeiro táxi que se encontrava em fila de espera. Quando o motorista lhe perguntou em voz alta pelo destino da corrida, ele apenas respondeu:

- Praça da Alegria, por favor.

in Araújo Jorge e Pereira, Pedro Sousa – Paralelo 75 ou O segredo de um coração traído – Oficina do Livro – Cruz Quebrada 2006




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