quarta-feira, 25 de novembro de 2015

Carla Romualdo - O homem que mandou Deus passear

 
“Jonas e a baleia”, ilustração no “Jami’ al-tawarikh” (Pérsia, c. 1400)
Jonas era um tipo ponderado, reflexivo, avesso a que lhe desordenassem os dias e ainda mais a receber ordens. Deus embirrou logo com ele. Ou não fosse Ele hábil a identificar os problemáticos, os que insistiam em pensar e duvidar e ver além. Jonas tinha de ser domado. E por isso, estando o homem posto em sossego, Deus foi ter com ele e mandou-o ir a Nínive, a cidade assíria do culto a Ishtar, deusa da fertilidade, do amor e do sexo. Vai lá e avisa-os de que o fim está próximo, diz-lhes que destruirei a cidade e todos os seus habitantes, ordena.
Jonas, que esperava a divina visita e adivinhava o desfecho de tal incumbência, correu para o porto mais próximo e apanhou o primeiro barco que saía, que por acaso ia para Társis, mas, sobretudo, não ia para Nínive.
A viagem começou bem e Jonas adormeceu tranquilamente no porão, escondido, a salvo de Deus. Mas logo as ondas começaram a agitar-se, uma tempestade violenta irrompeu, sacudiu o barco que parecia a ponto de estrancilhar-se. A tripulação apavorada adivinhou que aquela súbita fúria dos elementos não podia ser coisa terrena, e foi despertar o viajante que lhes parecera suspeito. Jonas, que dormia o sono dos justos que escapam a Deus, percebeu tudo nada mais abrir os olhos e confessou que a tempestade a ele se devia. Disse à tripulação que o lançasse borda fora, que dessa forma as suas vidas seriam poupadas. Os marinheiros não hesitaram e num instante Jonas debatia-se com as ondas geladas. Deteve-se então a fúria dos ventos e das ondas, mas apareceu uma titânica criatura, uma baleia, que engoliu Jonas. No ventre do bicho passou ele três dias tormentosos, negros dias e negras noites que mal podemos imaginar, e acabou a pedir perdão a Deus e a aceitar o encargo, que remédio. Deus não brinca: coacção, chantagem, tortura. Arrancada a cedência a Jonas, ordenou Deus à baleia que cuspisse o desgraçado homem para terra.
Lá foi Jonas a Nínive, sabendo no que aquilo ia dar. Os habitantes ouviram-no, acreditaram nas suas palavras, arrependeram-se e converteram-se. Deus, apaziguado o orgulho ofendido, comunicou a Jonas que tinha desistido da destruição. Que ficavam sem efeito as catástrofes programadas. E Jonas indignou-se. Porque já sabia que aquilo haveria de acontecer. Porque raios tinha sido mandado ali se Deus nunca quis, de verdade, destruir Nínive? O que Ele queria era exibir a grandeza, demonstrar quão fácil seria reduzi-los a cinza e desfrutar depois da sua conversão resignada, do arrependimento alimentado pelo medo, do choro e ranger de dentes que apenas Ele podia deter. Porque havia Jonas de ser um fantoche a cumprir ordens inúteis? Porque não tinha ido o próprio Deus interpelar os nínivenses, enumerar os seus tantíssimos pecados, ameaçá-los com o fogo eterno, mostrar-lhes a Sua fúria tremenda, o Seu poder infinito?
Era sempre a mesma coisa. Tinha ele deixado tudo para trás, tinha arriscado a vida, três dias passara nas entranhas de um bicho medonho para satisfazer um capricho, nada mais que um capricho de Quem não sabia deixar de exercer o poder absoluto, a todas as horas, por toda a eternidade. Um dependente emotivo, um tipo infantil, no fundo, e pensar que a Ele tinham sido confiadas todas as chaves do universo, que lástima.
Tão enfadado estava que decidiu ficar nos arredores, numa precária cabana por si construída, onde pudesse observar, bem de longe, a cidade. Para protegê-lo do sol, Deus fez nascer uma aboboreira para que as folhas lançassem sombra sobre a sua cabeça. Jonas alegrou-se. Vá lá, um gesto de delicadeza, finalmente. Deus mandou então um verme que em pouco tempo secou a aboboreira. Quando Jonas se despertou pela manhã e viu as folhas mirradas, a pobre planta corroída, pontapeou a areia, ergueu os braços aos céus e anunciou que desistia. Podia Deus matá-lo, sem mais manigâncias, que ele desistia.
Deus, numa refinada manifestação de sonsice, perguntou-lhe, de lá de cima:
– Fazes bem que assim te ires por causa da aboboreira?
E Jonas, libertando-se, para todo o sempre, das grilhetas, respondeu, imenso:
– Faço bem que me revolte até à morte.
A história de Jonas termina com a pergunta de Deus: se tens tu compaixão da aboboreira, não deveria eu ter compaixão dos homens e mulheres de Nínive?
Da resposta de Jonas nada se diz nas Escrituras. Nem do que a seguir lhe aconteceu. Porventura porque a resposta tenha deixado Deus embasbacado com a audácia da miserável criatura, ou talvez Jonas nem se tenha dado ao incómodo de responder. Mandou o Senhor ir dar uma volta, mais os seus planos de destruição massiva, as suas aboboreiras, os bichos gigantes que sulcam os mares, tantos e tão desproporcionados recursos para fazer ceder a vontade de um homem. Jonas, herói renitente, perdera o medo e encontrara um sentido profundo na revolta. Recusava-se a consagrar a existência a ser marioneta. Jonas tinha mais que fazer, e o seu mais que fazer era viver, a seu modo, a vida que lhe tocara, sem ingerências, sem acatar ordens. Já não se calaria, nem seria instrumento de uma vontade que operasse através dele, que o reduzisse a ferramenta. Por tudo isto, Deus entendeu que a sua história deveria ser interrompida naquele instante, frente a Nínive. Afinal, Deus soube sempre aquilo que o Orson Welles nos contou não vai há muito: “Um final feliz depende, naturalmente, de onde é que se pára de contar a história.”
Jonas morreu, como todos, mas mais livre do que quase todos.
https://ergoressunt.wordpress.com/2015/11/25/o-efeito-boomerang-jornal-tornado/

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