quinta-feira, 12 de novembro de 2015

poesia de eduardo guerra carneiro

* Eduardo Guerra Carneiro

JAZES, POETA

Jazes, poeta, em teu discurso
pífio quando tentas poéticas
alheias. A meias vou tentar,
e a ti tentar dar melhor ar,
outra tristeza alegre. Jazes poeta,
mas vá lá!, vá lá!, ainda resolves
as palavras cruzadas desta vida.
Vidinha airada, como assim convém
a quem no campo tem um batatal.
Mas, olha lá bem!, bens ao luar
não tens, pois na voragem foram
eirôs, pinhais e bacelinhos. O canastro
vigilante — andor! — também se foi.
Trovas de uma história — tanto lastro!

In A Noiva das Astúrias, capa e vinte e oito desenhos de Carlos Ferreiro, &etc., Agosto de 2001, p. 45.

AUTO-RETRATO

Quantas horas não choras a pensar
em ti — quando ando, desando,
neste viver sem mim.
Quantos anos sem tino. De mim
este cantar desencantado — assim.
Embora os dias me afastem já de ti
procuro saber do teu espaço,
nas casas brancas onde o azul desmaia. Sinal
de outro tempo em que ainda rias,
espaço meu. Afinal alteras, aterras, ó desenterrado.
Finges, desarmas, com teu gosto azedo. Procuras,
já vives, nas verdes veredas. Mas não sabes,
nem queres, do teu ao meu, essa coisa
chamada amor.

In Contra a Corrente, com capa e desenhos de Carlos Ferreiro, & etc., Setembro de 1988, p. 37.

Na Ampla Praça há apenas Plátanos

Na ampla praça há apenas plátanos. 
Nem crianças a correm de tão fria, 
nem estátuas a comovem bronzeadas. 
Das margens secas, com ilhas e outras casas, 
janelas, se as há, são quase setas. 
O frio perfurou tábuas e latas. 
Um vento seco corta junto aos olhos. 

O espaço é recomposto agora mesmo: na praça 
estou na sombra dos plátanos 
e tudo vejo com vontade e amor. 
Mas não chega a presença ou a vontade. 
Outros não chegam, ou aparecem apressados. 
Nomes se referem. Desenha-se um olhar. 
Apenas gesto, memória, sombra rara. 

Envolvo-me na praça. Os plátanos cobrem-me. 
Das margens sempre vem algum calor. 
Renascem os olhos. Os plátanos movem-se. 
As casas iluminam-se. Um grito 
cobre a sombra e assim anima 
a ampla solidão de todos nós. 

Eduardo Guerra Carneiro, in 'Algumas Palavras' 

algumas palavras

Algumas palavras são mais que o som.
Soltam-se delas lâmpadas, por vezes gritos.
Palavras que demoram na boca
com o sabor da manhã de Outubro, o claro gosto
da terra húmida, castanha até doer.

E há noites em que se ouve, além das horas,
um chamar por nós, um apelo
comovido. Podemos afirmar: são irmãos,
são mães, são companheiras. Mas é outra a face
revelada. Todo um ruído quente
quase desanimado. Um ténue vento
queimando-se nos vidros. Posso dizer:
em noites assim algumas morrem, muito antes
de saberem o nome e a voz. De quem
esse clamor? Saber que na antiga casa
as portas se abriram, um ou outro quarto
vai iluminar-se e começa o dia!

Há palavras lança-chamas.
Conheço algumas que nos fazem viver,
por não serem simples som
mas estradas incendiadas por dentro,
duplos corações batendo com o calor
da certeza do dia que se segue.
Assim me apoio às palavras,
procuro a tudo dar um nome,
e em noites destas ─ salientes, defumadas,
com vozes que nos chamam ─ sou um corpo
novo. Quebrando o meu silêncio,
povoo alguns espaços de alegria.
Rasgo o papel. Irado, desejoso
de saber até onde, quando, como,
o corpo vai. Nas palavras me encontro.
Cansado, quase morto, à espera,
sempre à espera. Nas palavras vivo,
denuncio ou ataco. Há um grande sol
à nossa espera. Quantos somos?


  
algumas palavras
1969

Sem comentários: