sexta-feira, 27 de novembro de 2015

Cesário Verde - "Vaidosa"

* Cesário Verde

Dizem que tu és pura como um lírio 
E mais fria e insensível que o granito, 
E que eu que passo aí por favorito 
Vivo louco de dor e de martírio. 

Contam que tens um modo altivo e sério, 
Que és muito desdenhosa e presumida, 
E que o maior prazer da tua vida, 
Seria acompanhar-me ao cemitério. 

Chamam-te a bela imperatriz das fátuas, 
A déspota, a fatal, o figurino, 
E afirmam que és um molde alabastrino, 
E não tens coração, como as estátuas. 

E narram o cruel martirológio 
Dos que são teus, ó corpo sem defeito, 
E julgam que é monótono o teu peito 
Como o bater cadente dum relógio. 

Porém eu sei que tu, que como um ópio 
Me matas, me desvairas e adormeces, 
És tão loura e dourada como as messes 

E possuis muito amor... muito amor-próprio. 

Cesário Verde, in 'O Livro de Cesário Verde'

Miguel Urbano Rodrigues - O mundo impenetrável de Mia Couto

* Miguel Urbano Rodrigues
27.Nov.15 ::

Em duas notas de leitura separadas por três anos, a admiração por um “gigante da literatura” e, ao mesmo tempo, a sensação de mal-estar resultante de não ter penetrado no universo criado pela sua escrita.


Ontem e hoje li A Confissão da Leoa, de Mia Couto.

A opinião sobre o livro surge ligada a uma sensação de mal-estar.

De Mia Couto somente tinha lido, há alguns anos, outro livro cujo título esqueci. Recordo que, admirando o seu talento, esse romance deixou memória de um mundo impenetrável, onde se moviam pessoas para mim incompreensíveis.

Agora reencontrei um grande escritor, mas repetiu-se o sentimento do não entendido.

Desconheço Moçambique. Estive três vezes em Angola, meia dúzia de vezes em Cabo Verde, duas na África do Sul e visitei a Guiné-Bissau, São Tomé, a Guine Conakry, a Libéria, o Mali e o Senegal.

Não consigo inserir as personagens de Mia Couto na África subsaariana que conheci. Todas, neste livro, desde Mariamar ao caçador Arcanjo Baleeiro, me aparecem como seres impenetráveis. A minha companheira entende-as; eu não.

O realismo mágico de Mia Couto - se assim lhe posso chamar - não tem pontes a ligá-lo ao dos latino-americanos.

No Peru e na Bolívia, viajando pelas altas planuras andinas, reencontrava nos comuneros de aldeias misérrimas gente com quem podia falar. Pensava compreender neles atitudes, aspirações, lutas. Subia pelo tempo em esforço de imaginação e sentia nos comuneros quechuas ou aymarás do século XX a continuidade dos seus antepassados do incário do século XVI. Conversando com eles, escutando o seu castelhano tosco, tinha a sensação de uma intimidade ilusória, imaginava falar com personagens de José Maria Arguedas e Manuel Scorza.

Com Mia Couto, na aldeia moçambicana de Kulumani, esbarro, no final do século XX, com um muro inultrapassável ao escutar o discurso dos moradores, sejam eles do mundo arcaico ou forasteiros vindos do Maputo.

O romance de Mia Couto fez-me viajar até à Ásia Central. Revi-me entre pachtuns da Fronteira afegã. Uma longa viagem que principiou numa guerra moderna da qual fui espectador e terminou na época de Dario, há dois mil e quinhentos anos, quando o rei dos reis persa atravessou a cordilheira do Hindu Kush rumo à Índia.

Conclui que me sentia próximo daqueles montanheses afegãos que lutaram pelas estradas do tempo contra invasores persas, heftalitas, gregos, árabes, mongóis, turcos, ingleses, russos e americanos, muito longe no espaço e no tempo dos aldeões de Kulumani.

Os pachtuns que conheci há 30 anos, os intelectuais e os montanheses analfabetos, transmitiam, de modo diferente, a herança de uma cadeia de muitas culturas, antagónicas algumas, que se haviam interpenetrado em fusões dolorosas.

Na Kulumani de Mia Couto tudo é diferente, o hoje e ontem não se interpenetram e fundem. Naquela aldeia de Cabo Delgado caminho na escuridão. O amor, os feitiços, o medo, a felicidade, o ódio, os mecanismos da memória, o real e o imaginário, o onírico, o mítico empurram- me para um universo cujas portas me aparecem como inultrapassáveis.

O mal-estar desemboca, paradoxalmente, num sentimento de admiração. Sinto que Mia Couto é um gigante da literatura.

Vila Nova de Gaia, 10 de Julho de 2012

Em dois dias li Cinzas, romance histórico que é o primeiro de uma trilogia moçambicana: As Areias do Imperador.

Transcorreram mais de três anos desde o dia em que escrevi o texto sobre A Confissão da Leoa.

Invadiu-me outra vez, agora mais intensa, a sensação de mal-estar.

Lerei, se vivo estiver quando forem publicados, os outros dois tomos da trilogia. Mas o primeiro contribuiu para o reforço da convicção de que Mia Couto é um grande, um enorme escritor. E também para a certeza de que as portas do seu universo são para mim inultrapassáveis.

Cinzas é uma obra mais ambiciosa do que A Confissão da Leoa. O leitor caminha com dor pela História de Moçambique e as lutas dos seus povos no final do seculo XIX, através do sentir e do viver de camponeses de Inhambane. A relação dessa gente com o mundo é mágica, com frequência onírica, mas o estilo do autor não lembra, repito, o de Arguedas, ou Scorza. É uma relação mágica fascinante que me comove; mas não entendo as personagens, o discurso, as suas reações e comportamento. Permaneço de fora.

Cinzas é simultaneamente um libelo contra o colonialismo, mas diferente das condenações habituais dos seus crimes.
O livro levou-me a outro grande escritor africano de língua portuguesa.

Pepetela e Mia Couto são filhos de portugueses; ambos se assumem como africanos, um como angolano, o outro como moçambicano.

Mas na obra de Pepetela as personagens, com raras exceções, independentemente da sua origem étnica, pensam e falam quase como ocidentais. Nos livros de Mia Couto o quotidiano dos africanos está enraizado na mundividência milenar, nos mitos dos povos de Moçambique. Daí a dificuldade que sinto em me mover no seu mundo fechado.

Parece uma contradição admirar muito um escritor cuja obra me fascina sem conseguir «entender» o mundo que descreve. Mas não sinto essa contradição.

Caty, minha companheira, acha que Mia Couto criou já uma obra merecedora do Nobel de Literatura. Admito que a Academia Sueca não tarde em lho atribuir.

Vila Nova de Gaia, 28 de Outubro de 2015


http://www.odiario.info/?p=3842

quarta-feira, 25 de novembro de 2015

Carla Romualdo - O homem que mandou Deus passear

 
“Jonas e a baleia”, ilustração no “Jami’ al-tawarikh” (Pérsia, c. 1400)
Jonas era um tipo ponderado, reflexivo, avesso a que lhe desordenassem os dias e ainda mais a receber ordens. Deus embirrou logo com ele. Ou não fosse Ele hábil a identificar os problemáticos, os que insistiam em pensar e duvidar e ver além. Jonas tinha de ser domado. E por isso, estando o homem posto em sossego, Deus foi ter com ele e mandou-o ir a Nínive, a cidade assíria do culto a Ishtar, deusa da fertilidade, do amor e do sexo. Vai lá e avisa-os de que o fim está próximo, diz-lhes que destruirei a cidade e todos os seus habitantes, ordena.
Jonas, que esperava a divina visita e adivinhava o desfecho de tal incumbência, correu para o porto mais próximo e apanhou o primeiro barco que saía, que por acaso ia para Társis, mas, sobretudo, não ia para Nínive.
A viagem começou bem e Jonas adormeceu tranquilamente no porão, escondido, a salvo de Deus. Mas logo as ondas começaram a agitar-se, uma tempestade violenta irrompeu, sacudiu o barco que parecia a ponto de estrancilhar-se. A tripulação apavorada adivinhou que aquela súbita fúria dos elementos não podia ser coisa terrena, e foi despertar o viajante que lhes parecera suspeito. Jonas, que dormia o sono dos justos que escapam a Deus, percebeu tudo nada mais abrir os olhos e confessou que a tempestade a ele se devia. Disse à tripulação que o lançasse borda fora, que dessa forma as suas vidas seriam poupadas. Os marinheiros não hesitaram e num instante Jonas debatia-se com as ondas geladas. Deteve-se então a fúria dos ventos e das ondas, mas apareceu uma titânica criatura, uma baleia, que engoliu Jonas. No ventre do bicho passou ele três dias tormentosos, negros dias e negras noites que mal podemos imaginar, e acabou a pedir perdão a Deus e a aceitar o encargo, que remédio. Deus não brinca: coacção, chantagem, tortura. Arrancada a cedência a Jonas, ordenou Deus à baleia que cuspisse o desgraçado homem para terra.
Lá foi Jonas a Nínive, sabendo no que aquilo ia dar. Os habitantes ouviram-no, acreditaram nas suas palavras, arrependeram-se e converteram-se. Deus, apaziguado o orgulho ofendido, comunicou a Jonas que tinha desistido da destruição. Que ficavam sem efeito as catástrofes programadas. E Jonas indignou-se. Porque já sabia que aquilo haveria de acontecer. Porque raios tinha sido mandado ali se Deus nunca quis, de verdade, destruir Nínive? O que Ele queria era exibir a grandeza, demonstrar quão fácil seria reduzi-los a cinza e desfrutar depois da sua conversão resignada, do arrependimento alimentado pelo medo, do choro e ranger de dentes que apenas Ele podia deter. Porque havia Jonas de ser um fantoche a cumprir ordens inúteis? Porque não tinha ido o próprio Deus interpelar os nínivenses, enumerar os seus tantíssimos pecados, ameaçá-los com o fogo eterno, mostrar-lhes a Sua fúria tremenda, o Seu poder infinito?
Era sempre a mesma coisa. Tinha ele deixado tudo para trás, tinha arriscado a vida, três dias passara nas entranhas de um bicho medonho para satisfazer um capricho, nada mais que um capricho de Quem não sabia deixar de exercer o poder absoluto, a todas as horas, por toda a eternidade. Um dependente emotivo, um tipo infantil, no fundo, e pensar que a Ele tinham sido confiadas todas as chaves do universo, que lástima.
Tão enfadado estava que decidiu ficar nos arredores, numa precária cabana por si construída, onde pudesse observar, bem de longe, a cidade. Para protegê-lo do sol, Deus fez nascer uma aboboreira para que as folhas lançassem sombra sobre a sua cabeça. Jonas alegrou-se. Vá lá, um gesto de delicadeza, finalmente. Deus mandou então um verme que em pouco tempo secou a aboboreira. Quando Jonas se despertou pela manhã e viu as folhas mirradas, a pobre planta corroída, pontapeou a areia, ergueu os braços aos céus e anunciou que desistia. Podia Deus matá-lo, sem mais manigâncias, que ele desistia.
Deus, numa refinada manifestação de sonsice, perguntou-lhe, de lá de cima:
– Fazes bem que assim te ires por causa da aboboreira?
E Jonas, libertando-se, para todo o sempre, das grilhetas, respondeu, imenso:
– Faço bem que me revolte até à morte.
A história de Jonas termina com a pergunta de Deus: se tens tu compaixão da aboboreira, não deveria eu ter compaixão dos homens e mulheres de Nínive?
Da resposta de Jonas nada se diz nas Escrituras. Nem do que a seguir lhe aconteceu. Porventura porque a resposta tenha deixado Deus embasbacado com a audácia da miserável criatura, ou talvez Jonas nem se tenha dado ao incómodo de responder. Mandou o Senhor ir dar uma volta, mais os seus planos de destruição massiva, as suas aboboreiras, os bichos gigantes que sulcam os mares, tantos e tão desproporcionados recursos para fazer ceder a vontade de um homem. Jonas, herói renitente, perdera o medo e encontrara um sentido profundo na revolta. Recusava-se a consagrar a existência a ser marioneta. Jonas tinha mais que fazer, e o seu mais que fazer era viver, a seu modo, a vida que lhe tocara, sem ingerências, sem acatar ordens. Já não se calaria, nem seria instrumento de uma vontade que operasse através dele, que o reduzisse a ferramenta. Por tudo isto, Deus entendeu que a sua história deveria ser interrompida naquele instante, frente a Nínive. Afinal, Deus soube sempre aquilo que o Orson Welles nos contou não vai há muito: “Um final feliz depende, naturalmente, de onde é que se pára de contar a história.”
Jonas morreu, como todos, mas mais livre do que quase todos.
https://ergoressunt.wordpress.com/2015/11/25/o-efeito-boomerang-jornal-tornado/

terça-feira, 24 de novembro de 2015

Afonso Luz - As dez palavras que abalaram o mundo


24 DE NOVEMBRO DE 2015
PAULO ANJOS

Afonso Luz, da Comissão Executiva do Partido Ecologista Os Verdes e um dos membros da comissão negociadora que participou nas discussões que conduziram a um governo que nos poderá devolver alguma esperança, explica, no texto que se segue, a que a Praça do Bocage abre, com gosto, as suas portas, como podem apenas dez palavras mudar o (nosso) mundo.

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“O PARTIDO SOCIALISTA SÓ NÃO É GOVERNO SE NÃO QUISER” 

Foram estas dez palavras, proferidas por Jerónimo de Sousa, em nome do PCP, no rescaldo dos resultados das eleições legislativas de 04/10/2015, que abalaram o (nosso) mundo.

No mesmo momento em que, contados os votos, a direita gritava vitória e, no PS, uns se afirmavam em choque e outros viam chegada a oportunidade de avançarem para a liderança, as palavras de Jerónimo de Sousa, secundadas pelas posições logo assumidas por PEV e BE, tudo abalaram.

O PS perdedor, passou a vencedor.

O António Costa vencido, passou a possível primeiro-ministro.

Os socialistas chocados, tal como os putativos futuros líderes, ainda estrebucharam, mas acabaram por meter a viola no saco.

A direita, surpreendida, desorientada, sentiu-se perdida. Apelou a fantasmas. Como era possível? O mesmo PS que lhes tinha dado o colo na Fonte Luminosa e com quem sempre tinham contado, agora deixava-os cair. E logo juntando-se à esquerda! A esquerda radical. Os estalinistas, com os maoistas, mais os trotskistas e ainda os ecologistas. Todos juntos. Que medo!

O mundo deixou de ser o que era.

O Presidente da República, figura cuja falta de cultura e tato político só encontra paralelo em Américo Tomás, encurralado nas suas próprias decisões e depois de afirmar que sabia bem o que tinha de fazer, deu-lhe para “chutar para fora”, tentando ganhar tempo, na esperança de que alguma mãozinha milagrosa aparecesse e o acordasse do pesadelo.

Foi nomeando um governo de direita sem apoio parlamentar. Foi ouvindo tudo e todos de que se foi lembrando, especialmente aqueles de quem já conhecia os discursos. E ainda fez um intervalo par ir até à Madeira.

Completamente perdido, acabou a pedir esclarecimentos sobre o que estava, há muito, esclarecido.

Sem opção, a 24/11 (certamente para evitar o 25), “indicou” o Secretário Geral do PS como primeiro-ministro. Mais uma vez, mostrando desprezo pela Constituição que jurou cumprir e fazer cumprir, achou que devia “indicar” e não nomear o primeiro-ministro, como lhe compete nos termos do nº 1, do artº 187º, da Constituição Portuguesa.

Enquanto tudo isto se passava, PS, PCP, BE e PEV entendiam-se e o povo saiu à rua, concentrou-se junto ao Palácio de S. Bento, aguardou o derrube do governo de direita e celebrou a sua queda logo que anunciada.

Entre palmas e abraços, ouviu-se nessa concentração dizer, emotivamente, que “valeu a pena lutar”. Vale sempre a pena lutar.

O que aí vem não é nada fácil e estar atento é exigência para cada um de nós.

A luta não pode parar, “enquanto houver estrada para andar”.

A estrada que temos pela frente é estreita, mas é a da alternativa às políticas de austeridade, de empobrecimento do povo, dos privilégios só para os grandes grupos económicos e financeiros, da constante perda de soberania, dos crimes económicos, sociais e ambientais.

Estão agora criadas condições para melhorar a vida dos portugueses e voltar a colocar Portugal no caminho do desenvolvimento.

Vamos a isso!

https://pracadobocage.wordpress.com/2015/11/24/as-dez-palavras-que-abalaram-o-mundo/

domingo, 22 de novembro de 2015

Mariana em três poemas

21 de Novembro de 2015 - 0h01


Andocides Bezerra *

E agora, Mariana?, Mar em Mariana e Lira Itabirana


E agora, Mariana?
(Andocides Bezerra)

E agora, Mariana?
Tua barragem rompeu
Teu rio doce morreu
Ficou o amargo que escorre

E agora, Mariana?
Teu povo chora
as lágrimas não vêem
Teu povo clama: justiça!
Mas sua voz não ouvem

Mariana, e agora?
O rio não há mais
O pasto não há mais
O gado também não
Diziam que Minas não tinha mar
           o mar chegou
Um mar podre de estupidez e ganância
O mar que ninguém quer

E agora, Mariana?
Enquanto tu sofres
Alguém come quieto
Enquanto tu agonizas
Alguém esconde teu sofrimento
E já outro desastre veio
Outros gritos vieram
E estes sim foram ouvidos
Mesmo vindo de longe,
mesmo falados em outra língua

Mariana, teu mar caminha
Corre solto como um gado feroz
Com um leito de morte e desgraça
Avança sobre outras terras
Em um compasso sem graça
Destruindo tudo por onde passa
E até o Espírito Santo já ameça

O que podemos, Mariana?
Se estamos atolados até o pescoço
em um mar de lama
Que não é nosso
Que não criamos
Que não pedimos
Que não impedimos


Mar em Mariana

(Marcelo Adifa)

Nas Gerais, o mar não chega
Mariana se banha em sonhos
no luar de quem amou,
                                           foi onda
seus olhos fundos são azuis
da cor, em água um lago extenso

Nas Gerais, o mar é lenda
é apenas a lembrança de
quem tenta ser tão mais
das Gerais o mar aumenta

o desejo de deitar além do mar


Lira Itabirana

(Carlos Drummond de Andrade)


I

O Rio? É doce.
A Vale? Amarga.
Ai, antes fosse
Mais leve a carga.

II

Entre estatais
E multinacionais,
Quantos ais!

III

A dívida interna.
A dívida externa
A dívida eterna.

IV

Quantas toneladas exportamos
De ferro?
Quantas lágrimas disfarçamos
Sem berro?

 
* Publicitário, palmeirense, amante do samba, comunista, ateu, pai de três, marido de uma.

http://www.vermelho.org.br/coluna.php?id_coluna_texto=7348&id_coluna=127

noite e nevoeiro, de alain resnais





Noite e nevoeiro
Para Catarina, João, André, Sara e Pedro

Numa tarde de Novembro de 1955, numa sala um pouco sombria, um homem escreve, corrige, recria um texto que deve colar absolutamente às imagens atrozes que passam na mesa de montagem. Esse homem, é Jean Cayrol que numa espécie de sobressalto, decidiu fazer o comentário que deve acompanhar "Noite e Nevoeiro", uma curta metragem de Alain Resnais produzida por Anatole Dauman "Mesmo uma paisagem tranquila, mesmo uma planície com voos de corvos, de medas e feixes de ervas, mesmo uma estrada onde passam carros , camponeses, casais, mesmo uma aldeia para férias, com uma feira e um vagabundo podem conduzir simplesmente um campo de concentração". Foi Fredéric Towarnicki, um diplomata conhecedor de Heidegger, que pôs em contacto Resnais e Dauman. Para satisfazer a encomenda dum filme sobre campos de concentração, feita pelo Institut D'Histoire de la Seconde Guérre Mondiale, o produtor pensa imediatamente em Alain Resnais, já autor, de alguns ensaios famosos sobre pintura e de um filme proibido que punha em causa o colonialismo francês, "Les Statues Meurent Aussi", feito em colaboração com Chris Marker. À proposta responde primeiro que não. Era necessário, disse, que o filme fosse feito por alguém que tivesse vivido a experiência dos campos. Obstinado, Dauman voltou à carga. Finalmente, Resnais aceita mas com uma condição: que seja Jean Cayrol, escritor e antigo deportado, a escrever o comentário.

Durante o Verão de 1955, a difícil procura de documentos e uma rodagem não menos complicada concretizam uma empresa reputada de impossível, tanto no plano político como no artístico.

Apesar das dificuldades financeiras, o filme foi rodado a preto e branco e a cores. É assim, que Resnais aborda a montagem das imagens com as quais é necessário coexistir durante dias. Montagem e manipulação de imagens muitas vezes insustentáveis, que segundo palavras do próprio Resnais, "produzem uma forte impressão de irrealidade e dão uma sensação de vertigem àqueles que têm que fazer este trabalho. Uma primeira montagem de 40 minutos termina. Chegou o momento de a mostrar a Jean Cayrol que, aceita sustenta o olhar das imagens do futuro "Noite e Nevoeiro". A experiência é terrível. Cayrol adoece e não se resolve a rever o filme do princípio ao fim. Escreve uma primeira versão do texto, muito belo, segundo as palavras de Resnais, mas inutilizável porque está muito longe do encadeamento dos planos. É então que intervém Chris Marker. É ele que vai fazer o trabalho de adaptação ao filme, retocando o texto na sua estrutura e no ritmo para que ele entre em relação directa com as imagens. Esta versão retocada é submetida a Cayrol que aceite rever frase a frase o seu texto. Regressa então à sala de montagem, para o combate com as palavras mas sobretudo com as imagens. "Mesmo uma paisagem tranquila...".

Cada uma das imagens da fabricação de "Noite e Nevoeiro" põe assim concretamente, a cada uma dos protagonistas a questão do imostrável. Jean Cayrol, claro, mas também Hanns Eisler a quem Resnais, por sugestão de Marker, pediu para escrever a música que suporta dificilmente a coabitação com estas imagens. Michel Bouquet que regista a leitura do texto como um pesadelo, do qual diz guardar uma recordação terrível, a de Henri Colpi, um montador de som, Sacha Vierny um dos operadores de câmara, tentando regular os "travellings" nas ruínas dos campos. André Heinrich, o director de produção, todos os técnicos e Resnais, que se recorda de acordar aos gritos todas as noites que precediam o período de rodagem, e os pesadelos a desaparecer quando chegavam aos locais de rodagem.

"Noite e Nevoeiro" verá finalmente o dia da estreia. Mas terá de passar ainda por tentativas de censura, directa ou indirecta, ligadas tanto às autoridades francesas como alemãs, que contaram com a cumplicidade do historiador Philippe Erlanger, que o retirou do Festival de Cannes de 1956. Torna-se por fim no filme de referência sobre o tema, aquele que é, à sua maneira, uma trincheira inultrapassável para todas as formas de revisionismo e de apelo à violência racial.

A experiência de Jean Cayrol é, guardadas todas as proporções, um pouco a nossa, isto é a de cada espectador de "Noite e Nevoeiro", sempre próxima da dor física que procura estas imagens, e o imperativo, de as olhar até que elas se tornem inesquecíveis.

Paulo Teixeira de Sousa

http://www.apagina.pt/?aba=7&cat=1&doc=6996&mid=2

DOCUMENTÁRIO COMPLETO EM 
https://vimeo.com/45658881


Noite e nevoeiro: “Um alerta para as futuras gerações”. Entrevista especial com Marcus Mello

“A fortuna crítica do filme é imensa e majoritariamente positiva. Para François Truffaut, crítico da prestigiada revista Cahiers du Cinéma à época do lançamento de Noite e Nevoeiro, trata-se do maior filme da história do cinema, sendo impossível falar dele com as palavras da crítica cinematográfica, pois ele ultrapassa o documentário, a denúncia ou o poema para afirmar-se como uma meditação sobre o fenômeno mais importante do século XX”, pontua o crítico de cinema.
Foto: Herdeiro de Aécio
A polêmica obra cinematográfica do cineasta francês Alain ResnaisNoite e Nevoeiro, foi a primeira a tratar do Holocausto e a apresentar “imagens até então desconhecidas dos campos de concentração nazistas, nos quais seis milhões de judeus foram brutalmente exterminados”. Produzida dez anos depois da Guerra que chocou o mundo, Noite e Nevoeiro abordou “um acontecimento ainda recente, que permanecia como uma chaga incomodamente aberta, a ser necessariamente enfrentada”, afirma Marcus Mello em entrevista à IHU On-Line, por e-mail.

Por Márcia Junges e Patrícia Fachin
Quase 60 anos depois da primeira exibição, “Noite e Nevoeiro se impõe ainda hoje como um modelo ético de abordagem a um objeto tão delicado, colocando em xeque versões mais espetaculares do Holocausto”, avalia o crítico de cinema. Para Mello, o longa coloca o espectador em “uma posição de grande vulnerabilidade. A memória é um bem precioso, que define a existência de cada ser humano. Ao mesmo tempo, algumas experiências são tão traumáticas que o esquecimento é a única forma de seguir vivendo. Mas este esquecimento, claro, só é admissível no âmbito individual, já que em relação ao coletivo temos obrigação de não apagar os acontecimentos terríveis de nossa história”.
Marcus Mello estará no Instituto Humanitas Unisinos – IHU na noite desta terça-feira, 25-03-2014, comentando Noite e Nevoeiro, às 20h, na Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros.
O filme será exibido às 19h30min, na Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros.
O evento faz parte da 11ª edição da Programação de Páscoa do IHU, intitulada Ética, Memória, Esperança. Uma perspectiva de triunfo da Justiça e da Vida.
Marcus Mello é mestre em Literatura Brasileira pela Universidade do Rio Grande do Sul - UFRGS. Crítico de cinema, é editor da revista Teorema e colaborador das revistas Aplauso e Cinética. Em 2000, assumiu a função de programador daSala P. F. Gastal, na Usina do Gasômetro, em Porto Alegre, primeiro cinema municipal de Porto Alegre, mantido pela Secretaria Municipal da Cultura.
Também organizou os livros Cinema Falado – 5 Anos de seminários de cinema em Porto Alegre (Porto Alegre: Unidade Editorial, 2001)Sublime obsessão (Porto Alegre: Unidade Editorial, 2003), de Tuio Becker, e Trajetórias do cinema moderno e outros textos (Porto Alegre: Instituto Estadual do Livro; A Nação, 2007), de Enéas de Souza.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Quais foram os motivos de comoção e polêmica que Noite e Nevoeiro (Nuit et Brouillard) gerou entre o público?
Marcus Mello - A comoção se deu inicialmente pelo fato de Noite e Nevoeiro ser a primeira obra cinematográfica a abordar diretamente o Holocausto, trazendo a público imagens até então desconhecidas dos campos de concentração nazistas, nos quais seis milhões de judeus foram brutalmente exterminados. É importante notar que o filme foi lançado em 1955, apenas 10 anos após o final da Segunda Guerra Mundial e a consequente liberação dos sobreviventes desses campos pelas tropas aliadas. Ou seja, um acontecimento ainda recente, que permanecia como uma chaga incomodamente aberta, a ser necessariamente enfrentada. Outro motivo de polêmica está relacionado à nacionalidade do filme, uma produção francesa, país que após a invasão das tropas alemãs manteve um governo colaboracionista, apoiando os nazistas.
Resnais era então um jovem diretor, com apenas 33 anos de idade, conhecido por uma série de curtas bastante elogiados, como o libelo anticolonialista As Estátuas Também Morrem (1953), e ainda não havia realizado Hiroshima Meu Amor (1959) e O Ano Passado em Marienbad (1961), com os quais revolucionaria a narrativa cinematográfica. Noite e Nevoeiro era uma obra de encomenda, feita a pedido do Comitê de História da Segunda Guerra Mundial, com a intenção de ser um documento imagético sobre um dos episódios mais terríveis da história da humanidade. Mas a princípio o próprio Resnaisteve dúvidas em relação aos inúmeros impasses éticos envolvidos na produção do filme e só foi convencido a realizá-lo devido à adesão do roteirista Jean Cayrol, um sobrevivente dos campos de concentração.
IHU On-Line - Por que Noite e Nevoeiro é considerado um “dispositivo de alerta” contra o nazismo e todas as formas de extermínio?
Marcus Mello - Justamente pela forma que Resnais deu ao filme, o qual, embora seja classificado como um documentário, é na verdade um filme-ensaio. Em apenas 32 minutos, Resnais combina imagens de arquivo com filmagens com cenas do presente nos antigos campos, rodadas em cor. Por meio de um extraordinário trabalho de montagem, o jovem diretor intercala tempos históricos distintos — ainda que separados por apenas uma década — e sobrepõe a essas imagens um texto extremamente poético, assinado pelo escritor Jean Cayrol. É pela manipulação habilidosa desses elementos — imagem, texto, montagem — que Resnais transforma seu filme em um alerta para as futuras gerações, prevenindo-as sobre o fato de a barbárie estar sempre à espreita, e não apenas relegada a um passado remoto.
IHU On-Line - Qual é a importância desse documentário na narrativa sobre o Holocausto?
Marcus Mello - É enorme, não apenas por seu aspecto seminal, mas, sobretudo, pela influência que irá exercer em outros diretores que passarão a abordar o tema, como Marcel Ophuls em A Tristeza e a Piedade (1969) e Claude Lanzmann emShoah (1985). Noite e Nevoeiro se impõe ainda hoje como um modelo ético de abordagem a um objeto tão delicado, colocando em xeque versões mais espetaculares do Holocausto, como as da famosa minissérie televisiva Holocausto (1978) e as recriações hollywoodianas levadas a cabo por Alan J. Pakula em A Escolha de Sofia (1982) e Steven Spielberg em A Lista de Schindler (1993). A fortuna crítica do filme é imensa e majoritariamente positiva. Para François Truffaut, crítico da prestigiada revista Cahiers du Cinéma à época do lançamento de Noite e Nevoeiro, trata-se do maior filme da história do cinema, sendo impossível falar dele com as palavras da crítica cinematográfica, pois ele ultrapassa o documentário, a denúncia ou o poema para afirmar-se como uma meditação sobre o fenômeno mais importante do século XX.
IHU On-Line - Como analisa o recurso de mescla entre o passado e o presente nessa produção de Resnais?

Marcus Mello - Ela é fundamental para que o diretor atinja seu objetivo principal, que é justamente fazer um filme que sirva de alerta para impedir a repetição da barbárie no futuro. Este embaralhamento temporal, vale notar, será o pilar fundador da obra de Resnais, como logo confirmariam suas experiências ficcionais nos já citados Hiroshima Meu Amor e O Ano Passado em Marienbad, e ao longo de toda a sua filmografia, de Muriel (1963) a Eu Te Amo, Eu Te Amo (1968), passando por Providence (1977) e Meu Tio da América (1980), até chegar a produções recentes como Vocês Ainda Não Viram Nada! (2012).
IHU On-Line - Godard pensava que o cinema errou de modo inexpiável ao não filmar a construção dos campos de concentração. Em que sentido o documentário de Resnais “chega depois”, mas cumpre um papel importante junto à categoria da memória?
Marcus Mello - Godard, não esqueçamos, é um eterno provocador, um polemista nato, que adora lançar bombásticas frases de efeito. Provavelmente, se Resnais tivesse chegado antes e pudesse ter filmado a construção desses campos ou o próprio extermínio dos judeus, Godard teria chamado seu colega de imoral, por haver preferido registrar a barbárie ao invés de fazer algo para impedi-la. Vale lembrar que alguns dos ataques mais violentos contra Spielberg e seu A Lista de Schindler partiram de Godard. Acredito que Resnais chegou exatamente no momento em que deveria ter chegado, nem antes nem depois, e isto pode ser comprovado a cada nova revisão do filme, que, passados mais de 50 anos, mantém intacta a sua força. A propósito, Noite e Nevoeiro mostra imagens da construção dos campos, o que desde logo denuncia a fragilidade do discurso de Godard.
IHU On-Line - Em que medida o desespero de não lembrar ou de não poder esquecer são elementos importantes que aparecem nessa obra do cineasta francês?
Marcus Mello - Na medida em que a incapacidade de lembrar ou a impossibilidade de esquecer são experiências igualmente terríveis, por paradoxal que isso possa parecer. Ambas colocam o indivíduo e, por consequência, o espectador, em uma posição de grande vulnerabilidade. A memória é um bem precioso, que define a existência de cada ser humano.
Ao mesmo tempo, algumas experiências são tão traumáticas que o esquecimento é a única forma de seguir vivendo. Mas este esquecimento, claro, só é admissível no âmbito individual, já que em relação ao coletivo temos obrigação de não apagar os acontecimentos terríveis de nossa história. Essa contradição permeia o filme de Resnais do início ao fim, e faz dele uma obra que, embora se debruce sobre o passado, está dirigida ao futuro. Um futuro que esteja sempre alerta aos erros do passado, em constante vigilância para não repeti-los.
IHU On-Line - Como esse documentário dialoga com a pretensa invisibilidade que os campos tinham à época de seu funcionamento?
Marcus Mello - Por seu caráter revelatório, que mostra de forma pioneira o horror da experiência dos campos de concentração, até então conhecidos apenas através de fotografias e cinejornais. Também vale assinalar mais uma vez o fato de Noite e Nevoeiro ser uma produção francesa, país que tem uma relação bastante discutível com o regime nazista. Após o final da Segunda Guerra, muitos franceses tentaram apagar seu envolvimento com os nazistas, evitando falar sobre seu colaboracionismo com o regime de Hitler ou mesmo sobre a omissão da maior parte da sociedade diante daquele momento de exceção. Quando a guerra terminou, procurou-se dar a impressão de que todos os cidadãos franceses fizeram parte da Resistência, incluindo aí vários intelectuais de ponta, o que sabemos que não é verdade.
IHU On-Line - Em que aspectos Auschwitz e Hiroshima, outra temática de Resnais, são “possíveis” somente através da arte?
Marcus Mello - Trata-se de uma questão meramente retórica, pelo simples fato de que tanto Hiroshima quanto Auschwitzocorreram realmente, vitimaram milhões de seres humanos e não houve nada de arte ali. Pergunte a um sobrevivente deAuschwitz — são poucos, mas eles ainda existem — se aquilo só foi possível através de uma experiência artística. Certamente ele lhe dará uma resposta bastante dura.
IHU On-Line - Em que consiste o maior legado cinematográfico de Resnais, recentemente falecido?
Marcus Mello - Resnais foi um dos maiores renovadores da arte cinematográfica, ao explorar novas formas narrativas, a partir de seu interesse pelas questões envolvendo o tempo e a memória. Nesse sentido, sua contribuição à história do cinema é inestimável, fazendo esta arte atingir um outro patamar, capaz de dar conta da complexidade da experiência humana, e transformando em imagens estados de consciência até então não representados por seus antecessores.

http://www.ihu.unisinos.br/noticias/529565-noite-e-nevoeiro-um-alerta-para-as-futuras-geracoes-entrevista-especial-com-marcus-mello 

José Vilhena na colecção da Hemeroteca



 Foi o nosso humorista mais “picante” de todos os tempos e um dos mais versáteis, pois tanto fazia rir através do verbo, como da caricatura, do cartoon, da ilustração e de outras performances gráficas. Faleceu em Lisboa, no passado dia 3 de Outubro, com 88 anos de idade, e com este pequeno dossier digital pretendemos homenagear a sua criatividade fecunda e escaldante, bem como divulgar os títulos de Vilhena que integram a coleção de publicações periódicas da Hemeroteca Municipal de Lisboa. É inegável que José Vilhena foi uma figura, se associarmos ao conceito a capacidade de intervir no espaço público e de desencadear reações fortes. Ninguém ficava (nem fica) indiferente ao seu cocktail de humor, que combinava doses variáveis de ironia, sátira política e social e sexo.

José Alfredo de Vilhena Rodrigues nasceu a 7 de Julho de 1927, em Figueira de Castelo Rodrigo. Começou a publicar, em meados dos anos 50, em jornais como Diário de Lisboa e Diário Popular e nas revistas Cara Alegre e O Mundo Ri. Também traduzia, compilava e adaptava autores estrangeiros.

Nos anos sessenta, já era um humorista conhecido entre os apreciadores do género. Mas também pela PIDE. A polícia política mantinha-o sob vigilância constante e desconfiava do seu humor que desafiava a ordem moral e social e fazia alusões enviesadas à falta de liberdade, à repressão e a outras misérias. Mas Vilhena não se deixou intimidar, pelo contrário. Lançou-se numa produção frenética, assumindo ele a responsabilidade da edição, isto é fez-se editor. A iniciativa do “humor de bolso” foi um sucesso. Os dois primeiros livros que fez imprimir com a marca «Vilhena», ambos de 1960, foram logo apreendidos: Manual de Etiqueta e História Universal da Pulhice Humana. O próprio Vilhena esteve preso três vezes. Mas o ritmo de edição e as tiragens não pararam de crescer, acompanhando o mercúrio da contestação à ditadura. Em 20 anos (1954-1974), Vilhena redigiu, ilustrou, publicou e distribuiu mais de cinquenta livros, aos quais se somaram mais duas dezenas de traduções e compilações de humoristas estrangeiros.
Uma vez reconquistada a liberdade em Abril de 1974, a criatividade de Vilhena atingiu a sua máxima expressão por via das publicações que lançou. A primeira, a mais célebre e também mais duradoura, foi a revista quinzenal Gaiola Aberta, que apareceu logo em Maio daquele ano e que, durante o “Verão quente”, chegou a fazer tiragens de 150 mil exemplares; teve duas séries: a primeira, manteve-se até Maio de 1983; a segunda, foi ressuscitada em Maio de 2003 e manteve-se nos escaparates até 2006. No interlúdio, outros títulos foram dados à degustação dos leitores, na sua maioria revistas, como:Vida Lisboeta: revista mensal para homens adultos e mulheres emancipadas (1978-1979); A Paródia: comédia Portuguesa. Revista de humor e caricatura (1980); Fala Barato: jornal mensal de arte, cultura e mau humor (1987-1993); O Cavaco: revista do humor possível (1993-95); e O Moralista: revista de humor pagão (1996-2003).
Nesta fase, José Vilhena selecionava os seus modelos ou musas diretamente da passerelle pública, isto é, interessava-se por todas as personalidades, figuras, conhecidas do grande público e potenciais leitores. Descobre-se no seu trabalho alguma inspiração bordaliana, quer por via dos temas e objetos, quer por conta da abordagem burlesca e colorida. Os políticos foram, sem dúvida, a sua primeira preferência, mas Vilhena não menosprezava ninguém: muitos jornalistas, escritores, artistas, gente do jet set, empresários, etc. foram “engaiolados”, por assim dizer. Nem todos apreciaram a pose e a moldura em que se descobriram um dia, ao virar da página; os processos contra Vilhena multiplicaram-se e, com o tempo, começou também a revelar-se o cansaço do caricaturista e também dos leitores.
Era tempo para abordar a obra do humorista em retrospetiva. Em Maio de 1996, a Câmara de Lisboa organizou, no palácio das Galveias, a exposição ”Crónica de uma revolução”, Factos e figuras da revolução de Abril: desenho de José Vilhena, que ficou plasmada em um catálogo (acessível aqui). Mais tarde, em Janeiro de 2003, a Galeria Barata expôs mais de 100 obras de pintura e ilustração. Começaram também a publicar-se antologias, ensaios e estudos académicos centrados na sua obra.
O sítio web O incorrigível e manhoso Vilhena, da responsabilidade de Luís Vilhena, surgiu recentemente para divulgar e celebrar a arte polivalente do autor.
Rita Correia

FICHA TÉCNICAJosé Vilhena (1927-2015) na coleção da Hemeroteca | Investigação: João Carlos Oliveira e Rita Correia | Textos: Rita Correia |Digitalização e tratamento de imagem: Serviço de Digitalização e Imagem da Hemeroteca Municipal de Lisboa | Conceito e webdesign:João Carlos Oliveira

http://hemerotecadigital.cm-lisboa.pt/efemerides/vilhena/josevilhena.htm



Cara Alegre: revista de bom humor 
1 de janeiro de 1951 a 15 de outubro de 1958

Propriedade da empresa editora «Os Ridículos», era dirigida de Nelson Barros e totalizou 158 números. Tanto quanto foi possível apurar, a colaboração de José Vilhena terá tido início no ano de 1955.
   
 
Diário de Lisbo
7 de abril de 1921 a 30 de novembro de 1990

O humor esteve sempre presente neste jornal de informação genérica, dirigido por Joaquim Manso, que era também seu proprietário e editor. A colaboração de José Vilhena no D.L. terá tido início em 1955 (alternando com Stuart a ocupação de espaço próprio na edição, geralmente na página 15) e manteve-se até 1958, pelo que não participou no suplemento humorístico A mosca, de 1969. Nessa data, os voos de José Vilhena cruzavam outras páginas.

  
O Mundo Ri  
outubro de 1948 a 1968(?)

Revista mensal, de Lisboa, era propriedade de Nunes Simões, que também assumia a direção. José Vilhena associou-se ao projeto em finais da década de 50, assegurando muitas das capas desta pequena publicação, onde dominavam os autores estrangeiros.
   
 
Gaiola Aberta 
1.ª série, maio de 1975 a maio de 1983
2.ª série, maio de 2003 a maio de 2006

Foi a revista mais lida do seu tempo e aquela que rendeu o processo mais grave que José Vilhena enfrentou: o que resultou de uma fotomontagem envolvendo a princesa Carolina do Mónaco, publicada em novembro de 1981. Além do mal estar resultante do embaraço diplomático, Vilhena foi confrontado com uma queixa-crime apresentada pelo principado do Mónaco, que exigia uma indemnização graúda pelos danos causados. O processo arrastou-se por largos anos, mas a queixa acabou por ser retirada.
 
 
Vida Lisboeta: revista mensal para homens adultos e mulheres emancipadas 
setembro de 1978 a fevereiro de 1979(?)

Foi contemporânea da Gaiola Aberta, mas distingue-se dela por ignorar os políticos e outras figuras públicas. O objeto da sátira era a própria sociedade, a mentalidade, os costumes e as práticas mais comuns ou generalizadas na população urbana. Muito provavelmente causou escândalo, pois a primeira página do n.º 2 ironizava sobre o assunto, advertindo o público, em grande paragonas: «O interior desta revista contém desenhos e textos passíveis de chocar pessoas bem pensantes. Se pertence a esse número não a abra!»
   
 
A Paródia: comédia Portuguesa. Revista de humor e caricatura 
1 de setembro a 1 de outubro de 1980
Ressuscitou o título do jornal fundado por Rafael Bordalo Pinheiro, em 1900, e que em 1903 se fundiu com a revista Comédia Portuguesa, dirigida por Julião Machado e Marcelino Mesquita, dando origem à Paródia: comédia portuguesa, que se manteve alguns anos (1907). A Paródia de Vilhena não teve o mesmo sucesso: saíram apenas dois números. A capa do 1.º número revisita claramente a que inaugurou a publicação de Bordalo (ver aqui).  

Fala Barato: jornal mensal de arte, cultura e mau humor 
julho de 1987 a março de 1988
Nova série, abril de 1988 a 1994(?)

Foi lançado quatro anos depois do fim da 1.ª série da Gaiola Aberta, e de certa forma deu-lhe continuidade, quer na substancia, quer no formato. Embora tenha começado como jornal, em março de 1988 anunciou um «novo visual» e no mês seguinte apresentou-se num formato mais reduzido e “vestido” com capa. O então primeiro-ministro Cavaco Silva foi um alvos preferidos do Fala Barato, que chegou a assumir a contagem dos dias que lhe restavam para honrar a promessa de tirar o país da “cauda da europa” e, em novembro de 1991, após as eleições que renovaram a maioria absoluta, anunciou «A longa noite cavaquista».

 
O Cavaco: revista do humor possível 
outubro de 1994 a outubro de 1995

A ideia de usar o nome do chefe do governo para dar título a publicação humorística causou alguma perplexidade e indignação, mas não era propriamente uma novidade: Rafael Bordalo Pinheiro já o fizera, em 1879, quando lançou o António Maria, em “homenagem” ao líder do partido regenerador e ex-presidente do ministério, António Maria Fontes Pereira de Melo. Embora o país viva agora em regime democrático, estando salvaguardados os direitos, liberdades e garantias do cidadão, esta iniciativa de José Vilhena não deixa de revelar coragem e independência em relação ao poder.
   
 
O Moralista: revista de humor pagão 
abril de 1996 a abril de 2003

Foi a ultima revista produzida por José Vilhena, e não se desviou do receitário do riso já testado: caricaturas, cartoons, banda desenhada, fotomontagens e textos demolidores. Nas capas d’O Moralista, José Vilhena fez desfilar uma série de «estrelas de televisão», em trajes menores ou mesmo nuas, desencadeando a ira das visadas e uma “tempestade” contínua de processos. Mas Vilhena não se deixava intimidar. Para ele o humor era um bem essencial.

http://hemerotecadigital.cm-lisboa.pt/efemerides/vilhena/JoseVilhena_Obra.htm


Faleceu José Vilhena

O cartoonista, humorista, escritor e pintor José Vilhena faleceu, dia 3, aos 88 anos, vítima de prolongada doença.
Fundador da revista «O Mundo Ri», em 1955, iniciou nos anos 60 uma série de livros de bolso humorísticos, que o próprio distribuía clandestinamente pelas tabacarias. 
Não escapou à censura e à perseguição do fascismo. Foi preso três vezes pela PIDE.

Logo após a revolução de Abril, funda a revista quinzenal «Gaiola Aberta», e mais tarde as publicações «O Fala Barato», «O Cavaco», «O Moralista» e novamente a «Gaiola Aberta», numa segunda série

http://www.avante.pt/pt/2184/destaque/137343/?tpl=612.