quarta-feira, 9 de março de 2016

Adelino Torres ~ "Partida" e "Linguagem dos Pássaros"


Marc Chagall – The Blue Violinist


1 – Partida 

Para Angola

Quando morrer não quero carpideiras
frases compungidas, suspiros congelados,
nem conversa fiada sobre a minha serventia
se é que servi para alguma coisa
assunto de que tenho, aliás, dúvidas severas.
Basta-me o fogo que me devorará
e renascer depois em frias cinzas
sem carne, ossadas ou incómodos vermes,
lápides pensativas ou jazigos doentios.
Quero tudo concentrado numa macheia de pó
deitada borda-fora sem emoção inútil
embalada pelas ondas ao sabor da maresia
em dia solarengo como o antigamente
quando Luanda se mirava nas águas da baía
enquanto a criançada mergulhava dos barcos do pescado
atracados no cais da zona sul,
com um punhado de música a trepidar
ao ritmo tropical desenfreado.
Revejo agora a passagem oblíqua
entre o princípio e o fim que chega a passo
devagar ou talvez acelerado
no meio de recordações fugazes
que reviverei no último segundo
num lampejo breve que contém o mundo.
Relembrarei talvez, nem mesmo sei porquê,
paixões que tive e não cumpri
nos monótonos anos da adolescência,
os tempos mais estúpidos que vivi. 
Quero passar do ser ao mistério do não-ser
como a forca que abre no patíbulo o alçapão
com a naturalidade de uma luz que empalidece
ou de um astro que se esconde
por detrás do horizonte envergonhado
onde está, dissimulando-se agachado,
o ciclo sem remorso da repetição
cujos sonhos perseguem o vazio
do poder vacilante da ilusão.
Quando partir seguirei gaivotas
a voltejar entre terra e mar
à espera que venha o anoitecer
e com ele o silêncio ignóbil das vozes
que se calam com medo de dizer.
Dessa passagem pela vida, o que ficou
foi a sombra abandonada no caminho
da ave que passou com o sol às costas
direita ao rumo incerto do longínquo ninho…


87 - Linguagem de pássaros

O famoso político passou
voando sobre os telhados
com asas douradas abertas
como um astro esplendoroso
a cobrir céus estrelados
e a tapar vestes da lua
tão alto que não ouvia
os protestos revoltados
nem via punhos cerrados
agitados com furor
lá em baixo, lá no fundo
como formigas na rua.
Nas alturas onde pairava
não lhe chegavam os ecos
e mesmo que os sons se ouvissem
ele nunca os entenderia
porque há muito que deixara
de compreender palavras
para só monologar
na linguagem dos pássaros…


Adelino Torres

Cantos do crepúsculo
(Poesias - Livro III) 


http://www.adelinotorres.com/trabalhos/Adelino%20Torres_Cantos%20do%20crepusculo%20(poesia%20III).pdf

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