sexta-feira, 4 de março de 2016

Entre Dois Impérios. Viajantes Britânicos em Goa (1800 – 1940)

CRÍTICA

Isto não é guia para turistas nostálgicos

Entre Dois Impérios é uma reflexão sobre a ocupação do continente indiano.
Livros Entre Dois Impérios. Viajantes Britânicos em Goa (1800 – 1940) 

Pangim é agora uma pequena cidade pujante, fervilhando de comércio e turismo, com casas coloniais recuperadas e monumentos restaurados. A Velha Goa, a “Roma do Ocidente”, com a bela catedral, igrejas, colégios e conventos, abandonada durante séculos, oferece aos visitantes uma visão de esplendor sereno; mas não foi assim que a contemplaram os viajantes estrangeiros quando, depois de uma época de apogeu no século XVI, se tornou visível o colapso do império português, num longo estertor de séculos que Filipa Lowdes Vicente analisa na sua pesquisa em torno desse lugar mítico, através do olhar, impressões e reacções dos que aportaram aquelas paragens, desde finais do século XVIII até ao século XX. Entre Dois Impérios não é um guia para turistas nostálgicos; é uma profunda reflexão sobre a ocupação do continente indiano com todas as suas consequências sociais, políticas, religiosas e sociológicas. 

O livro está dividido em duas partes principais: a primeira que analisa o confronto entre dois tipos de colonialismo: o inglês, de cariz imperialista, orgulhoso, rico, organizado, segregacionista, prepotente, protestante; e o português, antigo de séculos, decadente, católico, desorganizado, pobre, mestiço, enxovalhado, cómico até, no seu laxismo e pretensiosismo.

Baseando-se em testemunhos, tanto de viajantes ocasionais como de figuras oficiais da hierarquia inglesa na Índia, a autora vai traçando um quadro (pouco lisonjeiro) das condições dos territórios sob o domínio da coroa e depois da República portuguesa. A segunda parte do livro é composta por testemunhos de viajantes britânicas por estas terras inóspitas e pouco acolhedoras, as quais, no entanto, fosse por curiosidade, fosse por dever – acompanhar os maridos – não fugiam às difíceis condições com que se deparavam.

A larga e rápida colonização do continente indiano no século XIX, por parte dos britânicos, deixou de fora os territórios portugueses de difícil acesso – só em 1888 é que Goa passou a estar ligada à Índia britânica pelo caminho-de-ferro que terminava em Mormugão, obrigando os visitantes a apanharem um barco até Pangim. No entanto, e apesar de todas as dificuldades, os territórios sob alçada portuguesa exerciam um fascínio peculiar, pelo seu património histórico e arqueológico. Com o orientalismo cada vez mais na moda, valia a pena o risco para se poder contemplar os vestígios de uma glória que os ingleses desejavam e emulavam. As provas do declínio serviam de ilustração de erros que os britânicos queriam evitar. E desses erros, os mais flagrantes, como ilustra a autora, seriam o catolicismo, com a acção da terrível Inquisição e a tendência para a mestiçagem. Uma vez que era voz comum que os indianos não conseguiam governar-se a si próprios e que os portugueses eram tão ou mais incapazes, os ingleses procuravam legitimar as suas aspirações à ocupação britânica, num processo em que os antigos colonizadores seriam, por sua vez, colonizados. Os ingleses achavam por bem tomar conta de Goa, Damão e Diu, territórios que consideravam como excrescências bizarras de uma glória fanada, entregues à sua triste sorte, nas mãos de um povo preguiçoso e lânguido, incapaz de insuflar uma nova dinâmica civilizacional. 

A segunda parte desta obra analisa com detalhe a posição das mulheres nas sociedades britânica, portuguesa e indiana, com especial incidência sobre os relatos de Isabel Burton, católica, inglesa, aristocrata, que se deslocou a Goa, por causa de S. Francisco Xavier e as suas relíquias. Isabel, mulher do explorador Richard Burton e co-autora da tradução para o inglês de Os Lusíadas, lança um olhar irónico sobre o modo de estar das portuguesas, espartilhadas em regras de conduta despropositadas e semelhantes às impostas às indianas. No entanto, e uma vez que o sistema de castas não era permitido por lei em território luso, a separação social era confusa e sujeita a uma intrincada teia de costumes que, para alguns, eram considerados laxistas e, para outros, ridículos e pomposos. O relato de Anne Bremner, protestante, mulher prática e mãe de filhos pequenos é bastante mais objectivo. Ao acompanhar o marido nas suas funções de cônsul em Goa tem a oportunidade de descrever o dia-a-dia na colónia. Refere a falta de electricidade e de saneamento básico, a ausência de política urbanística, o formalismo nas relações sociais e a segregação dos sexos. O ambiente em Goa é descrito “como se de uma lenda se tratasse, incluindo uma lição de história que todos sentiam obrigação de repetir” (pág. 179). 

A ocupação portuguesa na Índia é uma fonte inesgotável de ensinamentos. Filipa Vicente avança com este contributo, numa obra indispensável que junta o estudo do colonialismo com o estudo do género. Apenas peca pela repetição de detalhes e uma “arrumação” ligeiramente confusa das múltiplas informações, um resultado que se deve ao facto de os textos serem autónomos mas de indiscutível interesse.

http://www.publico.pt/culturaipsilon/noticia/isto-nao-e-guia-para-turistas-nostalgicos-1724779

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