sábado, 23 de abril de 2016

Carla Romualdo - Pó enamorado

Pó enamorado



© CR
Durante anos, o meu pai repetiu que, logo abaixo do proverbial “aqui jaz fulano”, a sua lápide haveria de ressalvar: “Contra a sua vontade”.
Acabaria por escolher a cremação, até porque detestava enterros, mas continuou a gostar de contar o que diria a lápide que sabia que não iria ter.
As suas cinzas foram depositadas no jardim do cemitério, numa manhã de Verão que nada teve de solene. Mesmo antes de sair de casa, decidi que queria que pelo menos uma pequena parte das cinzas fosse para um sítio de que ele gostava. Não sendo um sítio onde se possam depositar cinzas, não seria viável depor lá mais do que uma reduzida quantidade. Só tinha à mão um daqueles frascos para champô de levar em viagem e, como nunca tinha sido usado, achei que poderia servir.
Nessa manhã, o grande volume de cinzas foi despejado no jardim, e, apesar do cuidado que se pôs na operação, formou-se uma nuvem de pó que me fez espirrar. Quanto se teria rido o meu pai se soubesse que a última coisa que fiz com ele foi espirrá-lo. Foi, aliás, a primeira vez que senti a falta dele, ao pensar que faltava ele ali para rir comigo. No recipiente disponibilizado pela funerária, um vaso negro, solene, as cinzas são qualquer coisa de sagrado, um despojo nobre. Num frasco transparente, as cinzas são comezinhas e domésticas, quase se pode falar com elas, dizer-lhes “Para já, vão ficar aqui na estante, têm luz, à beira da janela, e depois a gente leva-vos para aquele sítio.” Mas não cheguei nunca a falar com elas, não se apoquentem.
Trouxe comigo, portanto, o frasquinho com uma pequena parte das cinzas e pousei-o na estante, atrás da mesa onde escrevo. Se espreitarem, agora, por detrás do meu ombro, talvez consigam vê-lo. Nunca tinha visto cinzas humanas e reconheço que fiquei desconcertada. Creio que imaginava algo que pudesse assemelhar-se ao “pó enamorado” de Quevedo e afinal tudo se reduz a uma matéria cinzenta, algo granulosa, e cuja origem é indecifrável. É certo que a matéria se transforma, mas que o meu pai, mais o seu fato favorito, a sua gravata azul, o seu cachecol do FCP, sejam este pó cinzento que restou parece-me difícil de acreditar.
Como não choveu pouco nos meses seguintes, fomos adiando levar as cinzas para o outro sítio, porque a ideia de que as cinzas se fizessem lama era-nos desagradável. E, assim, o frasco foi ficando na estante. Não tenho nenhum interesse mórbido nas cinzas, quando penso no meu pai não penso nas suas cinzas, passam-se muitos dias em que nem me lembro que estão ali, e só mexo no frasco quando ele está mesmo em frente ao livro que quero tirar da estante.
Tal como o meu pai, eu também gosto de dizer que já sei o que dirá a lápide que não vou ter. Como, apesar de tudo, sou menos rezingona do que ele, a minha dirá:
“Gostei muito deste bocadinho.”
Penso que ele seria a única pessoa no mundo a achar verdadeiramente graça a isto. Acreditávamos ambos que uma piada pode resistir pelo menos tanto como o mármore.
No outro dia, perguntaram-me se sempre vou levar as cinzas ou deixá-las ficar e espantei-me com a pergunta. O plano não mudou, as cinzas têm destino. Mas não estão mal onde estão, lá isso é verdade, e continuo à espera do dia em que um visitante inadvertido perguntará: “Ah, esta areia trouxeste de donde?” e eu vou gostar de observar a sua expressão quando lhe explicar de que se trata. O que estou disposta a mudar é de frasco, até porque consigo ouvir o protesto do meu pai: “Meteste-me num frasco de champô?! Tem algum jeito?”
Nenhum de nós teve, alguma vez, jeito para o solene, lá isso não.
https://aventar.eu/2016/04/23/po-enamorado/#more-1251706

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