terça-feira, 16 de agosto de 2016

Georges Simenon - A literatura no romance policial

 Miguel Urbano Rodrigues     16.Ago.16      

Perguntaram um dia a André Gide quem era para ele o maior escritor francês. A resposta surpreendeu e chocou muita gente: «Georges Simenon é um romancista genial».
Tenho relido com frequência romances de Simenon. E compreendo a opinião emitida pelo autor de Les Nourritures Terrestres».
Gide exagerou. Mas Simenon foi mesmo um grande escritor.
Reli páginas da sua autobiografia (21 tomos) e alguns ensaios sobre a sua obra e vida.
Foi uma personagem contraditória, imprevisível, enigmática e apaixonante.
Começou a escrever ficção ainda adolescente, na Bélgica onde nasceu, e produziu uma obra torrencial.
Publicou quase 200 romances e os seus livros foram traduzidos em 55 línguas. Mais de 600 milhões de exemplares vendidos até hoje. Na Europa e nos EUA produziram 190 filmes inspirados na sua obra, a maioria sobre o Comissario Maigret, um detetive diferente de qualquer outro, criado em 1929.
Tinha apenas 19 anos quando rompeu com a família e se instalou em Paris. A decisão foi decisiva para a sua carreira. O jovem jornalista despertou a atenção de Colette, então no auge da popularidade. A grande escritora aconselhou-o escrever estórias muito simples, abstendo-se de «fazer literatura»; e introduziu-o nos meios intelectuais.
Seguiu o conselho. Anos depois, já famoso, atribuiu à «adorável Colette», a popularidade do estilo que havia criado.
Uma imaginação prodigiosa, uma enorme capacidade de trabalho e uma sede de viver intensa, que o levou a dezenas de países, com prolongadas permanências nos Estados Unidos e no Canadá permitiram-lhe um conhecimento profundo do homem e da imprevisibilidade do seu comportamento.
Nos anos de maior produtividade levantava-se às 4 da madrugada e escrevia por vezes vinte páginas em poucas horas. Alguns dos romances da série Maigret foram redigidos em onze dias apenas.
Esse ritmo alucinante de trabalho refletiu-se na desigualdade da sua obra.
Simenon tinha adquirido uma grande intimidade com a língua francesa. Mas a facilidade da escrita e o domínio de um estilo irrepetível também o prejudicaram.
Um dos seus admiradores, o critico Robert Poulet, afirmou, com fundamento, que as primeiras cem páginas, na maioria dos seus romances, são magistrais. Na criação dos ambientes, na construção das personagens, na montagem do quadro, urbano ou rural, em que elas se movem, na iluminação do seu mundo interior, na capacidade de prender o leitor e transportá-lo aos cenários da estória. Na segunda parte o nível baixa geralmente muito.
A galeria dessas personagens é quase interminável. Por ela desfilam homens e mulheres diferentíssimos.
Situa alguns romances em países estrangeiros, na Bélgica, na Holanda, na Finlândia, na Inglaterra, nos Estados Unidos. Mas os heróis e os vilões são sobretudo franceses, gente do povo que conhecia bem.
Simenon era um conservador, com pendores reacionários. Durante o início da ocupação alemã foi acusado de colaboracionista, mas a Justiça francesa absolveu-o.
Não consegue ocultar aquilo que leva dentro, que é inseparável da sua mundivencia. Mas, paradoxalmente o seu Maigret, quando entra em contacto com aristocratas, altos funcionários, ou elementos da finança tem dificuldade em os compreender, em dialogar com eles. E, pelo contrario, sente – se à vontade entre les petits gens, o francês da pequena burguesia, as porteiras, os taberneiros, a criadagem dos hotéis e bares, os pescadores, os marinheiros, as prostitutas, os rufiões, os pequenos comerciantes.
Simenon conviveu com uma sexualidade atormentada, que mereceu atenção dos seus biógrafos. Não é de estranhar portanto que a temática do sexo seja identificável em muitos dos seus romances.
Foi amante de mulheres famosas, entre as quais Josephine Baker.
Uma fronteira transparente separa Simenon de muitos autores de romances policiais. O leitor percebe que Simenon não faz batota, ao contrário, por exemplo, de Agatha Christie, que impede o leitor de identificar o criminoso, escondendo ate às últimas páginas personagens e factos importantes. No desfecho, repetitivo, a inglesa reúne todos os suspeitos e mantem o suspense até aos instantes finais.
Com Simenon o responsável pelo crime ou pelo assalto ou roubo não é sempre punido. Maigret, com frequência, não o entrega à justiça.
Simenon explica-se na autobiografia: «interessei-me pelos homens, sobretudo pelo homem da rua, tentei compreendê-lo de uma maneira fraternal».
O escritor bebia muito. Maigret também. Não se embriagava. Mas Simenon apresenta-o como alguém que não podia prescindir diariamente de bebidas alcoólicas: cerveja, calvados, pastis, aguardentes variadas, e vinho branco em grandes doses.
Afirmei no inicio do artigo que Geoges Simenon foi um grande escritor.
Mas creio que teria sido um escritor ainda mais importante se tivesse escrito menos livros. Essa é a minha convicção, não partilhada pelos grandes da crítica literária.
Três ou quatro dos romances não policiais são verdadeiras obras-primas. Ignoro se terá tomado consciência dessa realidade.

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