segunda-feira, 12 de dezembro de 2016

O lápis já não é o que era

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2 de Dezembro de 2016, 08:26

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O lápis já não é o que era

homem empurra lápis pbV
olto ao excelente filme “Eu, Daniel Blake”. A propósito de um pormenor (será?) na cena final da despedida do carpinteiro. Lá estavam os fiéis amigos, os jovens vizinhos que representavam a nova geração com novos sonhos e novos pesadelos, a funcionária da Segurança Social que, ali, simbolizava a coragem e o afecto de ter coração e de se ser solidário, desafiando as normas e os regulamentos (e, por isso, é repreendida pela chefe). E a mãe solteira – com os seus dois filhos tão iguais e tão diferentes no modo de serem crianças – que acompanhara Daniel na sua última tentativa para ver o seu processo de invalidez deferido. É ela que abre um papel amarrotado escrito por Blake e no qual exprimiu a sua paradoxalmente serena e inconformada revolta diante do júri de reavaliação. O essencial está no que lá escreveu, o pormenor no modo como o manuscreveu. Com um singelo lápis.

O lápis, o velho companheiro de vida de tantas pessoas é o lado antigo e oposto da face superlativamente nova de vidas subordinadas à miríade de instrumentos tecnológicos. Não se trata aqui de uma visão reaccionária ou conservadora face ao progresso material e comunicacional. Haverá, por certo, alguma nostalgia no detalhe do lápis. Mas o que representa, essencialmente, é um dualismo funcional e geracional que pode conduzir uma insuportável exclusão de uns e a uma pretensa superioridade de outros, que, não raro, não sabem o que é um lápis ou essa “união de facto” do lápis encimado por uma borracha, nunca escreveram com uma caneta de tinta permanente, ignoram o que seja um compasso e quase erradicaram a prática (física e intelectual) de manuscrever.
Evidentemente que o progresso técnico é uma importante condição necessária para o desenvolvimento, mas nunca será, só por si, uma condição suficiente se, às tecnologias, não estiverem associados o bem comum, a justiça social e geracional, o respeito pelo outro.
Na era da “cidadania electrónica”, os “netizens” são, hoje, uma expressão eloquente do saber mais democratizado (embora, neste contexto, sempre me lembre do que escreveu Jean Guitton: “se o livro tivesse sido inventado depois do computador teria sido uma grande invenção”). Mas quantas vezes, ao lado desse progresso, vamos deparando com uma acrescida aridez relacional, em alguns casos mesmo com uma diferente expressão da solidão, senão mesmo de isolamento e abandono. Nas situações mais extremadas, de um lado um novo cárcere, do outro uma velha exclusão.
Com toda a tecnologia à nossa volta, acentuou-se a divisão entre os cidadãos “funcionalmente significantes” e os “funcionalmente supérfluos”. Ou, de outro modo, os que só têm passado, os que só têm presente e os que só têm futuro.
Escreveu Bento XVI na Caritas in Veritate: “Absolutizar ideologicamente o progresso técnico ou então afagar a utopia duma humanidade reconduzida ao estado originário da natureza são dois modos opostos de separar o progresso da sua apreciação moral e, consequentemente, da nossa responsabilidade”.
A técnica, em si mesma, é ambivalente. A tecnologia não tem rosto. É impessoal. Pode ser usada para o bem ou para o mal. A técnica existe para o homem, não o homem para a técnica. É um recurso indispensável, mas não se pode transformar num fim que domina ou aparta pessoas. Porque o fim somos nós mesmos, sujeitos do desenvolvimento (não é por acaso que o adjectivo que o acompanha é “humano”). Peter Ustinov dizia que “costumávamos fazer muitas perguntas para as quais não havia respostas. Agora, com os computadores, há muitas respostas para as quais ainda não encontrámos perguntas”.
E as respostas do lápis, agora fora do sistema, são desprezadas…

http://blogues.publico.pt/tudomenoseconomia/2016/12/12/o-lapis-ja-nao-e-o-que-era/

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