sexta-feira, 20 de janeiro de 2017

Como a BD nos contou o Holocausto

Maus (1980), a obra seminal de Art Spiegelman, é só a face mais visível de um enorme icebergue que uma exposição no Memorial da Shoah, em Paris, se propõe explorar exaustivamente

Uma exposição no Memorial da Shoah, em Paris, inventaria 75 anos de uma produção espantosamente prolixa – e aparentemente inesgotável.
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É preciso procurar muito para encontrar um tema sério da história do século XX que não tenha ainda sido vasculhado pela banda desenhada – do insanável conflito israelo-palestiniano (Palestina ou Gaza, de Joe Sacco) à condição árabe na era do terrorismo global (O Árabe do Futuro, de Riad Sattouf), passando pelo Irão da Revolução Islâmica (Persépolis, de Marjane Satrapi); da catástrofe individual e colectiva que foi a sida (Comprimidos Azuis, de Frederik Peeters) ao lento (e turbulento) coming out do Ocidente, com todo o seu historial de traumas familiares (Fun Home – Uma Tragicomédia Familiar, de Alison Bedchel); da nossa Guerra Colonial (Os Vampiros, de Filipe Melo e Juan Cavia) à má consciência da África do Sul que o apartheid ainda divide ao meio (Papá em África, de Anton Kannemeyer) e ao Brasil fatalmente segregado de ontem e de hoje (Morro da Favela, de André Diniz), só para mencionar títulos que tiveram edição em Portugal.


Também é preciso procurar muito para encontrar um tema sério da história do século XX que tenha sido mais vasculhado pela banda desenhada do que o Holocausto. Maus (1980), a obra seminal de Art Spiegelman, é só a face mais visível de um enorme icebergue que uma exposição no Memorial da Shoah, em Paris, se propõe agora explorar exaustivamente: “De 1942 até hoje, centenas de artistas desenharam a Shoah. À medida que as vítimas e as testemunhas deste crime único na história desaparecem inelutavelmente, a questão da sua representação torna-se cada vez mais central”, sublinham Marie-Édith Agostini, Joël Kotek e Didier Pasamonik, os comissários de Shoah et Bande Dessinée: de l’ombre à la lumière, esclarecendo as motivações deste “percurso histórico e artístico” que se propõe mostrar como ao longo dos últimos 75 anos a ficção mobilizou o Holocausto, dos comics americanos à produção franco-belga, onde o tema está presente desde 1944 (La Bête est morte!, de Calvo). É um inventário colossal, que vai da primeira obra a inscrever a Shoah no repertório da banda desenhada, cujo autor acabaria gazeado em Auschwitz (Mickey au camp de Gurs, de Horst Rosenthal, pequeno álbum composto de 15 aguarelas, com encadernação manual, “publicado sem autorização de Walt Disney”, como afixava a capa), às memórias de segunda e terceira geração activadas em livros mais recentes como I Was a Child of Holocaust Survivors (2006), da canadiana Bernice Eisenstein, Property (2013), da israelita Rutu Modan, ou Nous n’irons pas voir Auschwitz (2011), do francês Jérémie Dres – sem esquecer, claro, o trabalho a todos os títulos fundador de Will Eisner e o caso sem paralelo de Miriam Katin, a única sobrevivente do Holocausto que fixou o seu testemunho em BD.

Acompanhando esta exposição que ocupa o Memorial da Shoah de 19 de Janeiro até 30 de Outubro, um programa de conferências juntará autores e historiadores em mesas-redondas que discutirão, entre outros assuntos, Porque é que os super-heróis não libertaram Auschwitz? (22 de Janeiro), “Arte menor” e questões maiores (5 de Fevereiro) ou o lugar de Varsóvia na banda desenhada (5 de Março). Terminadas as mesas-redondas, encerrada a exposição, o Holocausto continuará a ser um dos assuntos mais inesgotáveis do nosso passado comum – e a aparentemente inesgotável livraria do Memorial da Shoah continuará a ser um dos melhores lugares do mundo para o aprofundar.

https://www.publico.pt/2017/01/19/culturaipsilon/noticia/como-a-bd-nos-contou-o-holocausto-1758634

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