quinta-feira, 15 de junho de 2017

José Afonso - Alípio de Freitas


 José Afonso - "Alípio de Freitas" do disco "Com as minhas tamanquinhas" (LP 1976)

Baía de Guanabara 
Santa Cruz na fortaleza 
Está preso Alípio de Freitas 
Homem de grande firmeza 

Em Maio de mil setenta 
Numa casa clandestina 
Com campanheira e a filha 
Caiu nas garras da CIA 

Diz Alípio à nossa gente: 
"Quero que saibam aí 
Que no Brasil já morreram 
Na tortura mais de mil 

Ao lado dos explorados 
No combate à opressão 
Não me importa que me matem 
Outros amigos virão" 

Lá no sertão nordestino 
Terra de tanta pobreza 
Com Francisco Julião 
Forma as ligas camponesas 

Na prisão de Tiradentes 
Depois da greve da fome 
Em mais de cinco masmorras 
Não há tortura que o dome 

Fascistas da mesma igualha 
(Ao tempo Carlos Lacerda) 
Sabei que o povo não falha 
Seja aqui ou outra terra 

Em Santa Cruz há um monstro 
(Só não vê quem não tem vista 
Deu sete voltas à terra 
Chamaram-lhe imperialista 

Baía da Guanabara 
Santa Cruz na fortaleza 
Está preso Alípio de Freitas 
Homem de grande firmeza 



Alípio de Freitas de Couple Coffee


José Afonso cantou Alípio de Freitas, agora Alípio canta José Afonso

O disco que os Couple Coffee dedicaram a José Afonso em 2007 é relançado com duas faixas extra e uma surpresa. Este domingo, no Musicbox, em Lisboa, pelas 21h30.
ªªª





Quando foi lançado Co’as Tamanquinhas do Zeca!, em Abril de 2007, contou-se a história improvável dessa ligação. José Afonso tinha feito, depois do 25 de Abril, uma canção dedicada a um padre transmontano que no Brasil se tornara guerrilheiro e ali fora preso. Dizia assim: “Baía da Guanabara/ Santa Cruz na fortaleza/ Está preso Alípio de Freitas/ Homem de grande firmeza// Em Maio de mil setenta/ Numa casa clandestina/ Co’a companheira e a filha/ Caiu nas garras da CIA.” Alípio ainda ficou preso durante quase dez anos, depois tornou-se amigo de José Afonso e seguiu-o de perto até à morte. E a filha citada na canção, de seu nome Luanda Cozetti, fez-se cantora e formou com Norton Daiello, seu companheiro na vida e na música, o duo Couple Coffe. Que em 2007 gravou um disco só com versões brasileiras de canções de Zeca Afonso. Ciclo fechado.

Ou quase. Luanda evitou gravar, por razões óbvias, a canção dedicada ao pai. Tal como não gravou, por exemplo, Traz outro amigo também, que para ela tinha ressonâncias bem diferentes daqueles que teve e tem em Portugal. Passados sete anos, já com o Couple Coffee bem instalado no meio musical português, resolveram relançar o disco. E arriscar essas duas canções, com uma curiosa abordagem. Traz outro amigo também conta com a voz do próprio Alípio de Freitas que, nascido em Vinhais, em 1929, deixa ali impresso o seu sotaque transmontano e altivo. Luanda conta, agora, como correu a experiência:

“Pôr o meu pai a cantar não foi nada difícil. Há uns dois anos que estávamos com essa ideia, mas fomos enrolando. Estas duas músicas tinham ficado de fora do disco. Alípio de Freitas por aqueles motivos todos e Traz outro amigo também porque foi uma música em que eu não queria mexer. Porque, para mim, ‘aqueles que ficaram’ são os que ficaram pelo caminho. Estou cercada de defuntos, enfim. Mas achei que agora era a hora dessa canção, propus ao meu pai e ele foi profissionalíssimo, 40 minutos de estúdio e gravou tudo, cantando, falando deu uma alegria, uma dignidade à canção. Quisemos deixar a forma como ele fala, o timbre muito transmontano, ficou muito lindo assim.”

Quanto à canção Alípio de Freitas, que José Afonso incluiu no seu disco Com as Minhas Tamanquinhas, em 1976, a carga emocional que trazia consigo era imensa. “Levei oito anos para entender o que essa canção significava em Portugal”, diz Luanda. “Eu tinha uma visão minha, dolorida, e não entendia porque é que aquele refrão, que falava de tortura, era tão p’ra cima, tão alegre. Mas à medida que vamos conhecendo o Zeca percebemos que ele era de uma eficiência impressionante e eu fui entendendo a canção. P’ra mim a canção significava ‘tirem meu pai daqui, que bom que alguém se lembrou’, enquanto para Portugal era uma exortação, era quase uma canção passionária!”

 Mesmo assim foi difícil, para ela, cantar. “Gravei de uma vez só, meti na cabeça que papai era o Zorro, e fui embora. O Júlio Pereira estava com medo que eu gravasse a coisa soturnamente, mas não. Cantei, só eu e o baixo (do Norton), depois o Júlio meteu o bouzouki e o cavaquinho. Ficou bonito, gostei. E acho que com isso fecho um ciclo.”

O disco Co’as Tamanquinhas do Zeca!, para além de Luanda Cozetti (voz) e Norton Daielllo (baixo eléctrico) conta ainda com os músicos Sérgio Zurawski (guitarra eléctrica) e Ruca Rebordão (percussões). Entre os dezasseis temas do disco original encontram-se temas como Tenho um primo convexo, Menino d’oiro, O avô cavernoso, Vampiros, Teresa Torga, Menino do bairro negro, Balada do Outono, Era um redondo vocábulo ou Utopia.

Nas duas faixas extra, agora acrescentadas, participaram Alípio de Freitas (voz) e Júlio Pereira (bouzouki e cavaquinho). O disco, que volta às lojas a partir de 31 de Março, será lançado este domingo com um espectáculo no Musicbox, em Lisboa, pelas 21h30. O preço da entrada (12,99 euros) dá direito a levar para casa o disco reeditado.


https://www.publico.pt/2014/03/30/culturaipsilon/noticia/jose-afonso-cantou-alipio-de-freitas-agora-alipio-canta-jose-afonso-1630333


OPINIÃO

Alípio de Freitas, o repouso do guerreiro

Alípio morreu esta semana e repousa agora no Alvito. Lembrá-lo não tem data, é coisa de hoje e do futuro.
Já aqui se falara dele, este ano, a propósito de uma homenagem e de um livro. Agora haverá outra homenagem, em forma de concerto, mas póstuma. Alípio de Freitas morreu. Fisicamente perdemo-lo, num final sereno, mais uma batalha por ele ganha aos males que por desumana tirania quase sempre infligem dor.



Alípio de Freitas no Alvito, em 2012  RUI GAUDÊNCIO

Quem é Alípio de Freitas? As notícias apresentaram-no como jornalista, mas isso é uma ínfima parte do seu trabalho. Porque, como escreveu anteontem a direcção da Associação José Afonso (de que foi um dos fundadores e à qual chegou a presidir), “entre muitas outras coisas [ele] foi padre, fundador das Ligas Camponesas no Brasil, militante político, cooperante em Moçambique, jornalista na Rádio Televisão Portuguesa, professor universitário. Foi, também co-fundador da Casa do Brasil em Lisboa, membro da Comissão Coordenadora do Tribunal Mundial sobre o Iraque (Audiência Portuguesa), Presidente da Direcção da Associação José Afonso.”

Nascido Alípio Cristiano de Freitas em Bragança, no dia 17 de Fevereiro de 1929, foi ordenado padre em 1952 e desde então manteve ligação estreita com as camadas mais pobres. Primeiro como pároco de Guadramil e Rio de Onor, depois no Brasil, no Maranhão, para onde foi exercer e leccionar a convite do arcebispo local. Iniciou-se na política brasileira, participando em protestos públicos e juntando-se às Ligas Camponesas, o que lhe valeu ser sequestrado pelo exército durante cinquenta dias e, mais tarde, já depois do golpe militar de 1964, preso e torturado (esses tempos recorda-os ele no livro Resistir é Preciso, com edição brasileira da Record, em 1981, e editado em Portugal este ano pela Âncora).

O acirrar da ditadura levou-o a exilar-se no México e a receber treino militar em Cuba, integrando depois movimentos guerrilheiros na América Latina e no Brasil, onde esteve preso de 1970 a 1979, período em que José Afonso, sem o conhecer pessoalmente, lhe dedicou uma canção que diz assim: “Baía da Guanabara/ Santa Cruz na fortaleza/ está preso Alípio de Freitas/ Homem de grande firmeza”. A canção, Alípio de Freitas, foi gravada em 1976 no disco Com as Minhas Tamanquinhas, mas só anos mais tarde os dois viriam a conhecer-se. Libertado no Brasil, no dia em que completou 50 anos, Alípio viria depois a trabalhar em Moçambique, em projectos agrícolas, só regressando a Portugal em 1984 (três anos antes de José Afonso morrer). Aqui foi jornalista na RTP (até 1994) e exerceu cargos em diversas associações, algumas já mencionadas, recebendo em 1996 a condecoração de Grande Oficial da Ordem da Liberdade da República Portuguesa.

Apesar do seu envolvimento em guerrilhas, no reverso de violências ditatoriais, Alípio foi sempre um humanista e o seu pensamento esteve e está (porque permanece, para lá da sua extinção física) nos antípodas das carnificinas dos terrorismos, antigos ou modernos. A sua firmeza, de que fala a canção, é a de um homem que acredita que a dignidade do ser humano pode resistir à mais bárbara das provações. No livro citado, ao descrever uma das sessões de tortura a que foi sujeito, Alípio escreveu (pág. 33): “Senti o meu fim próximo e alegrei-me. Uma alegria calma e serena de quem parte por vontade própria. A alegria do combatente que deixa o campo de batalha depois de, em luta desigual, ter derrotado a soberba dos inimigos. Assim eu partia.” Enganou-se, viveria ainda mais quase meio século. Partiu esta semana, serenamente, e os pensamentos que em 1970 dirigiu aos algozes poderia agora tê-los dirigido à doença.

No dia 17 há um concerto-homenagem no Fórum Lisboa, às 21h30, com nomes como Ariel Rodriguez, Luanda Cozetti (filha de Alípio), Filipe Raposo, Janita Salomé, Mauro Ciavattini, Nilson Dourado, Chullage, Selma Uamusse, Vitorino ou Uxia (a Galiza era outra paixão sua). Estava marcado e não foi desconvocado: ficará em sua memória. Alípio morreu no dia 13 e repousa agora no Alvito, terra à qual se dedicou e onde em vida procurou a paz. Lembrá-lo não tem data, é coisa de hoje e do futuro.

https://www.publico.pt/2017/06/15/.../alipio-de-freitas-o-repouso-do-guerreiro-1775569

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