sábado, 16 de novembro de 2024

Carlos Coutibho - [a receita do Leão de Loures e Ascenso Simão: praticar o fascismo para "combatê-lo"]

 

* Carlos Coutinho   

ASCENSO Simões, uma personagem vila-realense com futuro imprevisível, é um ex-deputado meu patrício que postou na sua página no Facebook a convicção íntima e profunda de que, para se evitar que André Ventura tome conta das autarquias da Área Metropolitana de Lisboa, é urgente haver aí muitos mais Ricardos Leão. Escreveu mesmo:

   “Eu não gosto do Chega, mas não fecho os olhos à sua existência e, principalmente, aos problemas que lhe dão razões.”

   Nas tintas para as famílias que o energúmeno de Loures mandaria dormir para debaixo da pontes e viadutos, o Ascenso transmutado em Descenso desatou a pregar que “Leão não é um autarca fora-da-lei, como alguns dos seus camaradas quiseram fazer acreditar nos últimos dias. Leão tem é a realidade do seu lado e, se nada fizer, um dia teremos Loures, Amadora e ouros concelhos governados pela extrema-direita.”

   Alguns notáveis do PS bem instalados na vida, vieram a terreiro apoiar o maronês meu conterrâneo, destacando-se em solidariedade David Amado, que sucedeu a Marta Temido na presidência da concelhia de Lisboa do PS, assim como o antigo secretário de Estado dos Desportos e atual deputado João Paulo Correia. 

   Outro impensável apoiante foi Carlos Pereira, vice-presidente do grupo parlamentar do PS, tal como o ex-deputado Pedro Cegonho que em tempos também foi presidente da Associação Nacional de Freguesias. Tudo abencerragens de alta estirpe, como se vê. Só faltou o brado do falecido espingardeiro Edmundo Pedro que levou as 79 G3 furtadas para o PS de Soares.

   As razões do Leão de Loures são tão cruciais para o PS que até o deputado e secretário-geral Pedro Nuno Santos se furtou a qualificá-las, não obstante o coro de discórdia escondida que também se levantou nas fileiras do PS, com a refilona deputada e comentadora política Alexandra Leitão à cabeça.

   A jornalista Ana Sá Lopes chamou um figo a este gague outonal e desenterrou a história Oswald Mosley, o presidente da União Britânica dos Fascistas, que foi fundar e comandar, depois de se pirar do Partido Trabalhista. 

   Mussolini fez o mesmo, de resto, ao se inverter como dirigente do Partido Socialista Italiano para fundar o Partido Nacional Fascista, o que levou Salazar a manter até ao fim da sua carreira, na mesa de trabalho, atravancada de telefones, carimbos, livros e dossiês, uma única fotografia, a do il duce, em moldura dourada e antografada.

   Ruge, Leão, ruge, que o teu rugir tem muito de história por trás. Para isto o grande poeta brasileiro Carlos Drumond de Andrade tinha um comentário cruel: 

   “As dificuldades são o osso estrutural que entra na construção do caráter.”

   Dão que pensar, tanto a descoberta do poeta como a voz visceral da fera saloia. 

   Embrenhado nesta ressurreição de frases com história, fui descobrir umas palavras confluentes com estas realidades num livro de Jean-François Steiner, “Treblinka”, prefaciado por Simone de Beauvo'r, um fragmento do discurso proferido pelo reichsführer SS Heinrich Himmler, mês e meio depois de eu nascer, no Congresso dos Generais, em Posen, Alemanha, no dia 4 de outubro de 1943:

   “Gostaria também de vos falar agora com a maior franqueza acerca de um assunto extremamente importante. Aqui, entre nós, vamos abordá-lo sem disfarces, mas nunca, nunca, deveremos falar dele em público. (…) Vós sabeis, todos vós sabeis o que se sente ao ver um monte de cem, de quinhentos, de mil cadáveres. Foi isso – suportar essa prova e continuar a ser um homem correto, descontando, claro, as exceções devidas à fragilidade da própria natureza humana –, foi isso o que nos tornou duros. É uma página gloriosa da nossa história que nunca foi escrita, nem jamais o será.”

   Netanyahu – e quem o sustenta – não dirá hoje algo diferente. É de reter que Simone de Beauvoir, no seu texto de preparação para a leitura de “Treblinka”, garante:

   “Em todos os tempos e em todos os países, com raras exceções, os notáveis colaboraram sempre com os vencedores: é um caso de classe. Mas em Treblinka – embora alguns judeus fossem menos maltratados do que outros –, não havia distinções de classe. Nem sequer entre os homens dos comandos e os que desembarcavam na estação para serem conduzidos às câmaras de gás.”

   E Jean-François Steiner regista: 

   “O domingo passou-se num turbilhão de festas.  Ninguém dormiu nessa noite. Na segunda-feira, os prisioneiros seguem para o trabalho quando se ouve o silvo doloroso da locomotiva. Galewski está no cais quando os deportados se apeiam. Muitos estão feridos, outros queimados. Os alemães e os ucranianos tratam-nos com uma selvageria terrível, acabando com s feridos à coronhada, mutilando os homens válidos. (…) Nesse dia, a selvajaria dos alemães e dos ucranianos manifesta-se livremente. No Caminho do Céu, Ivan, um enorme brutamontes de vinte anos, abre verticalmente o ventre das mulheres com um grande sabre. Outras são atiradas vivas para as fogueiras.  Primeiro lançam-lhes os filhos para as chamas, depois mandam-nas ir ter com eles. Umas precipitam-se imediatamente, outras hesitam. Dizem-lhes então que não têm instinto maternal e empurram-nas para fogo.”

   Como se estivessem agora na Faixa de Gaza, ou em Kursk, ou em Beirute, esteja na Casa Branca quem estiver.

          Tomem bem nota: segundo este ex-deputado do PS, são precisos mais Ricardos Leão…

2024 11 16

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Tiago Franco - SENSO E SENSIBILIDADE, CIRÚRGICOS |

 

https://www.nytimes.com/video/world/middleeast/100000009825987/israel-strike-gaza-mawasi.html?

* Tiago Franco

Tomo como boa a fonte (NY Times). Aconteceu ontem em Gaza, perto de um campo de refugiados e, como se vê na imagem, as defesas anti-aéreas resumem-se a um puto que vê o míssil antes dos outros e grita o mais que pode.

Não preciso de vos dizer que este bombardeamento, ali no meio daquele pessoal que circulava, foi "cirúrgico" e pretendia atingir um depósito de armas. Matou uns e feriu outros que tiveram o azar de estar ali. Ou noutro sítio qualquer da Faixa de Gaza. Estão presos, entre muros, não podem fugir nem procurar abrigo. 

O Hamas está derrotado, não é? Então bombardeiam diariamente o quê? Há algum pedaço de Gaza ainda por rebentar? Aquela população que vive em tendas e que está rodeada por torres de vigia, tem que aguentar esta merda até quando?

Já agora, para a reduzida, mas sonora, cambada de filhos da puta que se insurgem por aqui e no twitter (aí é mesmo esgoto a céu aberto), contra manifestações e ataques a judeus, em várias cidades da Europa, a pretexto de jogos de futebol ou outra coisa qualquer...o que é que esperavam?

Com um genocídio em marcha há cerca de 1 ano, em cima de uma população absolutamente massacrada por décadas de humilhações e mortes, que já vivia uma ocupação numa prisão aceite pelo Ocidente, quem é que pode, ao dia de hoje, ter qualquer simpatia por Israel? Um governo de assassinos , sem qualquer interesse na paz ou na solução dos dois estados. 

Matam diariamente INOCENTES. Crianças, mulheres, civis que já estavam presos dentro daqueles muros e que agora, sem hipótese de fuga, contam as horas de vida entre bombas.

Vendo isto - o genocídio mais documentado da história, com imagens em direto e sem qualquer sombra de dúvida do que ali se passa - quem é que pode ficar chateado por uns adeptos do Maccabi terem levado uns tabefes enquanto queimavam bandeiras ou glorificavam a morte de palestinianos?

Mas digo mais. Quem é que pode, estando minimamente são e com algum sentido de justiça, depois de 1 ano e 44000 mortos, ter a mínima simpatia por qualquer consequência que os actos do governo israelita tragam para o seu próprio povo?

Netanyahu continua no poder, portanto, é porque a oposição interna não é relevante na discordância e muito menos na sua dimensão. Assim sendo, quem apoia a chacina diária de uma população, não se pode vitimizar quando o azar bate à porta.

Aos palestinianos não foi dada qualquer ajuda para se defenderem. Mas pior do que isso, nem lhes foi dada a possibilidade de fuga. Os muros não abriram e eles ali ficaram, quais peixes num aquário em dia de pesca.

Tenham vergonha na cara, os poucos alucinados que ainda aparecem nas televisões a defender isto. Ouço disparates como "perseguição a judeus" e "nazismo está de volta".

Por acaso são os judeus que estão a ser assassinados todos os dias, suas bestas? Por mais ódio e racismo que essas cabeças de merda possam ter, não conseguem fechar os olhos à cor da pele e ouvir apenas aquela criança a gritar? Se fosse o vosso filho? O vosso primo? O vosso irmão? O vosso pai?

Que gente doente. Que asco. Trump nomeou um fanático apoiante de Israel para a embaixada local e, portanto, espera-se que o massacre continue.

É desta que a Europa se assume como uma potência formada por gente civilizada ou, até a América de Trump, nos vai continuar a grab by the pussy?

2024 11 15 

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sexta-feira, 15 de novembro de 2024

Mia Couto - Venenos de Deus, remédios do Diabo




 Mia Couto

 Capítulo doze

 

- De onde tu és? - perguntou Deolinda.

- Sou da Guarda.

Ingénua malícia no olhar, ela sussurrou no ouvido de Sidónio Rosa:

- Tu és o meu anjo da guarda.

O riso dela ganhou espessura, inundando-lhe o corpo. Depois, o corpo já não lhe bastava e ela se encostou nele. O português viu as suas defesas desmoronarem. Os braços dele envolveram-na, a medo. Quando deram conta, estavam enleados, sem saber que parte pertencia a um e a outro. A Praça do Rossio, em Lisboa, ficou, de repente, despovoada. Um homem e uma mulher trocavam beijos e o seu amor desalojava a cidade inteira.

- Tens medo de fazer amor comigo?

- Tenho - respondeu ele.

- Por eu ser preta?

- Tu não és preta.

- Aqui, sou.

- Não, não é por seres preta que eu tenho medo.

- Tens medo que eu esteja doente ...

- Sei prevenir-me.

- É porquê, então?

- Tenho medo de não regressar. Não regressar de ti.

Deolinda franziu o sobrolho. Empurrou o português de encontro à parede, colando-se a ele. Sidónio não mais regressaria desse abraço.

- Que olhar é meu nos olhos teus?

Nessa noite se solveram, mãos de oleiro, salvando o outro de ter peso. Nessa noite o corpo de um foi lençol do outro. E ambos foram pássaros porque o tempo deles foi antes de haver terra. E quando ela gritou de prazer o mundo ficou cego: um moinho de braços se desfez ao vento. E mais nenhum destino havia.

- Amar - disse ele - é estar sempre chegando.

Um ano depois, sentado sobre um banco de pedra, o português sente estar ainda chegando a Vila Cacimba enquanto convoca as memórias do encontro com a mulata Deolinda. O que faltava, agora, para que ele se sentisse já chegado?

Lembrou os versos que ele próprio rabiscara na ausência de Deolinda: «Eu sou o viajante do deserto que, no regresso, diz: viajei apenas para procurar as minhas próprias pegadas. Sim, eu sou aquele que viaja apenas para se cobrir de saudades. Eis o deserto, e nele me sonho; eis o oásis, e nele não sei viver.»

Na poesia, haveria oásis e desertos. Mas, em Vila Cacimba, havia apenas uma praça onde um médico estrangeiro se banhava nas lembranças de sua amada. É no meio dessa praça que esse médico aspira o ar fresco e sorri de satisfação: no seu país é outono e, àquela hora, ele estaria submerso entre o frio cinzento.

Esses são os pensamentos de Sidónio Rosa enquanto se dirige a casa dos Sozinhos. Desta vez, porém, não entra. Está um dia demasiado luminoso para ele se adentrar naquele escuro. Ronda a casa, em bicos de pés, e bate na janela do quarto de Bartolomeu. Ensonado, o rosto do velho, inquisitivo, enfrenta a claridade.

- Deixe a janela aberta que é para respirar este arzinho da manhã - convida o médico.

- É uma coisa boa desta nossa Vila: o ar aqui é muito abundante. Isto não é atmosfera. Isto aqui, caro Doutor, é artmosfera.

Passa por eles um grupo de mulheres que saúdam apenas o médico, evitando olhar para o velho sem camisa que se debruça sobre o parapeito da janela.

- Donas mal comidas - resmunga Bartolomeu.

As mulheres da Vila não gostam das manhãs. É o tempo em que os maridos saem de casa. Para Dona Munda sempre fora o oposto. Durante toda a vida aquela tinha sido a melhor parte do dia. A ausência de Bartolomeu só lhe trazia alívio. Agora, tudo se invertera. O marido era uma presença obsidiante, uma espécie de corcunda que pesava sem descanso sobre o seu dorso.

- Gosto de sentir a Vila, assim cedinho – disse  o português. - Gosto de ver como se vai cobrindo de gente.

- Odeio gente - rosnou Bartolomeu.  

- Não tarda que os passeios se encham de vendedeiras.

- Estes não são gente da Vila. Os que o senhor vê por aqui são os que ainda não saíram.

-Hoje está um dia límpido numa vila que se chama Cacimba. Porquê estragar esta luz, meu caro paciente?

- Eles não saíram da Vila. Eu não saí da Vida.

O médico olha o céu e abre os braços como se quisesse abraçar a imensidão. A intenção do gesto é clara: nada alterará o seu bom humor.

- Não quer mesmo entrar, Doutor?

O português argumenta que está de passagem, sem função profissional. O seu afazer, naquele dia, era apenas ser feliz.

- Eu tenho uma curiosidade muito impessoal diz Bartolomeu, após uma pausa.

- O que quer saber?

- Você não veio para A/rica apenas por causa de Deolinda.

- Então, foi porquê?

- Ninguém sai da sua terra só por causa de uma mulher. Você saiu por outro motivo.

- E porquê?

- Por exemplo, porque não era feliz.

Saímos para o estrangeiro quando a nossa terra já saiu de nós. Ele, Bartolomeu Sozinho, sabia disso, calejado que estava de remotos paradeiros.

- Eu não saí de Portugal. Apenas vim buscar uma mulher.

É assim que responde mas, de si para si, reconhece: na sua terra não era feliz. Mais grave ainda: ele não mais sabia o que era o desejo de ser feliz. Em Lisboa estava entre família, no meio de tanta gente conhecida. Quando saiu para África receou que passaria a sofrer de solidão. Todavia, agora sabia: há muito que estava só. Solitário entre parentes e conhecidos. Ou como diz Bartolomeu, há muito que Sidónio Rosa deixara de ter quem o abençoasse.

 -Mundinha disse que o seu pai morreu aqui, em Africa. E verdade?

- É verdade - admitiu o português -, não me vai dizer que venho visitar o espírito dele.

- Os espíritos não se visitam. Nós é que somos visitados.

- De qualquer modo, o corpo do meu velho não mora aqui. Transladaram-no para a terra dele.

O pai de Sidónio tinha-se exilado pouco tempo depois de ele ter nascido. Acreditava estar a fugir do fascismo. Mas a ditadura era apenas a máscara daquilo que ele fugia. Escapava do vazio que está para além dos regimes políticos. Desse mesmo vazio estava fugindo, quarenta anos depois, Sidónio Rosa.

- Pois eu lhe digo: dói mais termos que fugir da democracia ...

- Isso não sei, eu fujo apenas da minha mulher, e  já me chega por motivo.

Por outro lado, o reformado não se importava nada de fugir das Suacelências todas que pululavam no país. Desses, como ele diz, a quem o cu cresce mais que a cadeira.

- Noutro dia, você zangou-se comigo porque eu não o chamava pelo seu nome inteiro. Mas eu conheço o seu segredo.

- Não tenho segredos. Quem tem segredos são as mulheres.

- O seu nome é Tsotsi. Bartolomeu Tsotsi.

- Quem lhe contou isso? De certeza que foi o cabrão do Administrador.

Acabrunhado, Bartolomeu aceitou. Primeiro, foram os outros que lhe mudaram o nome, no batismo. Depois, quando pôde voltar a ser ele mesmo, já tinha aprendido a ter vergonha do seu nome original. Ele se colonizara a si mesmo. E Tsotsi dera origem a Sozinho.

- Eu sonhava ser mecânico, para consertar o mundo. Mas aqui para nós que ninguém nos ouve: um mecânico pode chamar-se Tsotsi?

- Ini nkabe dziua (1).

-Ah, o Doutor já anda a aprender a língua deles?

- Deles? Afinal, já não é a sua língua?

- Não sei, eu já nem sei. ; .

O português confessa sentir inveja de não ter duas línguas. E poder usar uma delas para perder o passado. E outra para ludibriar o presente.

- A propósito de língua, sabe uma coisa, Doutor Sidonho? Eu já me estou a desmulatar.

E exibe a língua, olhos cerrados, boca escancarada. O médico franze o sobrolho, confrangido: a mucosa está coberta de fungos, formando uma placa esbranquiçada.

- Quais fungos? - reage Bartolomeu. - Eu estou é a ficar branco de língua, deve ser porque só falo português ...

O riso degenera em tosse e o português se afasta, cauteloso, daquele foco contaminoso. Quase colide com Suacelência que acaba de cruzar a estrada. O Administrador vem esbaforido e cumprimenta, de forma esquiva, os presentes. Detém-se sob a janela, aproveita a sombra para enxugar meticulosamente o afogueado rosto.

- Então, Excelência - inquire o velho Sozinho - tão cedo e já anda a chatear as moscas?

- Que se passa, Suacelência? - pergunta o português, emendando a indelicadeza do seu paciente.

- A rapaziada da banda eleitoral - suspira, contendo uma emergente onda de fúria -, a rapaziada fugiu com os instrumentos.

- Mas isso é um bambúrrio de azar. Então os bandos roubaram-lhe a banda?

Ignorando o tom irónico da pergunta, o Administrador acena com gravidade. Não se tratava, segundo ele, de um simples furto. Aquilo era uma cabala política, manobra dos inimigos da Pátria.

- Um feiticeiro conhece todos os feiticeiros ... ironiza o velho Sozinho.

- Por que não me respeita, Bartolomeu? A mim que fiz tanto pelo país?

- O país preferia que o senhor não tivesse feito nada.

- Por que não gosta de mim?

- Eu gosto da minha terra, da minha gente. E o senhor gosta de quem?

Contudo, o Administrador já desandou, estrada fora, coxeando levemente. Bartolomeu e Sidónio ficam olhando a figura do dirigente desvanecer-se como se assistissem ao seu ocaso político.

- Sinto pena dele - admite o português.

- Pois eu estou-me merdando para o gajo - remata Bartolomeu.

Ri-se para reafirmar o desprezo. E logo lhe sobrevém um ataque de tosse que o deixa sem respirar.

- Puta de vida - diz -, não vivemos se não nos rimos e depois morremos por nos termos rido - e conclui, após recuperar fôlego: - O Doutor acha que sou uma anormalidade?

O médico olha para o parapeito e estremece de ver tão frágil, tão transitório aquele que é o seu único amigo em Vila Cacimba. O aro da janela surge como uma moldura da derradeira fotografia desse teimoso mecânico reformado.

- Posso fazer-lhe uma pergunta íntima?

- Depende - responde o português.

- O senhor já alguma vez desmaiou, Doutor?

-Sim.

- Eu gostava muito de desmaiar. Não queria morrer sem desmaiar.

O desmaio é uma morte preguiçosa, um falecimento de duração temporária. O português, que era um guarda-fronteira da Vida, que facilitasse uma escapadela dessas, uma breve perda de sentidos.

- Me receite um remédio para eu desmaiar.

O português ri-se. Também a ele lhe apetecia uma intermitente lucidez, uma pausa na obrigação de existir.

- Uma marretada na cabeça é a única coisa que me ocorre.

Riem-se. Rir junto é melhor que falar a mesma língua. Ou talvez o riso seja uma língua anterior que fomos perdendo à medida que o mundo foi deixando de ser nosso.

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[(') Ini nkabe dziua: expressão que significa «Eu não sei» (língua chisena]

 
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Se apreciaste Mia Couto, a seguir encontras - dele - "O Fio das Missangas"
 
http://srec.azores.gov.pt/dre/sd/115152010600/nova/biblioteca/contador/literatura/O%20Fio%20das%20Missangas.pdf
 
e "Terra Sonâmbula"
 
http://www.casadasafricas.org.br/wp/wp-content/uploads/2011/09/Livro-Terra-sonambula.pdf

quinta-feira, 14 de novembro de 2024

Carlos Matos Gomes - Uma eleição livre e justa é possível num regime de mentira e de canalhas, de pós-verdade?

 * Carlos Matos Gomes

Nós, a multidão, passámos estes últimos anos a ser bombardeados com um novo léxico político: “desinformação”, “fakenews”, “nova normalidade”, “intrusão”.

A relação dos seres gregários funda-se na confiança. É assim num formigueiro, numa colmeia, numa alcateia, numa tribo, numa formação militar, num gangue. Na constituição de equipas para operações especiais uma das perguntas aos candidatos era: quem escolhias para te acompanhar na travessia de um rio perigoso? Isto é, em quem confias.

A organização social e a organização política que dela decorre assenta na relação entre autoridade e fiabilidade. As notas de banco são credibilizadas pela assinatura do governador, os decretos reais continham um selo de chumbo e lacre com as armas do soberano. As mobilizações para uma guerra são assinadas pelo comandante-chefe. As grandes campanhas, as fatwa, as cruzadas, as descobertas dos europeus foram decretadas com base numa verdade que as tornava imperiosas. Acreditámos no segredo profissional de médicos e advogados. Na reserva da nossa correspondência. Acreditámos nos editais e nos calendários. Eram a verdade. Hoje a verdade é uma ratoeira. É um som transmitido por um karaoke, é uma mercadoria. As nossas doenças, as nossas confissões, as nossas escolhas são vendidas, na melhor das hipóteses. Na pior, matam, como os pagers que uma empresa de telecomunicações vendeu a Israel para assassinar eventuais inimigos.

Na Bíblia, Cristo, a figura de referência civilizacional do Ocidente, proclamou: Eu sou a verdade! Maquiavel, com os pés na terra e rodeado de semelhantes, adaptou um estado ideal que de facto nunca existiu e preferiu escrever sobre a realidade concreta, estabelecendo o conceito de verdade efetiva das coisas (veritá effetuale), fundamental para compreendermos o interesse pela realidade como ela é e não como uma projeção idealizada. A verdade efetiva serviu de padrão para aferir a correspondência entre o “discurso público” dos políticos e dos dirigentes e a necessidade de obter a adesão a uma realidade. Mas a palavra continha sempre uma intenção de verdade. Os membros da sociedade continuavam a jurar. A honra continuava a ser um valor e a desonra uma nódoa infamante.

A justificação da existência de armas de destruição em massa por parte do governo de Saddam Hussein para George Bush Jr decretar a invasão do Iraque terá sido o exemplo mais próximo e mais marcante da passagem da “verdade efetiva” para a pós-verdade. Pós verdade é um eufemismo para um tipo de mentira, que pode percorrer vários patamares, da pura invenção, por mais inverosímil que seja, à manipulação de factos que podem ser plausíveis e às promessas irrealizáveis de salvação. A pós verdade é o sinónimo do logro declinado nos vários significados, de burla, de engano com dolo, de fraude, de intrujice, ludíbrio, de trampolinice, de trapaça. Vivemos no reino do logro. Do tipo das barras batizadas de “delícias do mar” e que não são nem peixe, nem marisco e que nem passaram pelo mar.

A invasão do Iraque marca uma nova era no Ocidente na relação entre governantes e governados: a vitória dos grandes aparelhos de manipulação sobre a realidade, a transformação dos cidadãos em espetadores de espetáculos de efeitos especiais, a purificação dos canalhas e a sua transmutação em exemplos, como é o caso de Paulo Portas ou Durão Barroso, os videntes que viram as provas da mistificação que justificou a invasão do Iraque e que são hoje criaturas tidas por decentes e respeitáveis. A política passou a replicar os jogos da Marvel e os políticos surgiram como “transformers” e vendedores de delícias do mar como se fossem lagosta.

Do mesmo modo que a metralhadora alterou o modo de fazer a guerra na Grande Guerra, que a arma atómica alterou a a forma de as grandes potencias se relacionarem após a Segunda Guerra, a guerra da comunicação da era da informação proporcionada pelas novas tecnologias alterou de novo as táticas e acentuou a insídia na guerra. A pós-verdade são as imagens mais ou menos manipuladas que surgem nos ecrãs de televisão com paisagens e pontos assinalados por uma cruz-alvo, são atores-comentadores a arengar uma narrativa como antigamente os contadores de histórias faziam nas feiras, são um grande espetáculo de massas. Para os manipuladores da opinião, o genocídio de Gaza é um festival de efeitos especiais. A multidão mundial está tão anestesiada pela mentira que não reage. Estamos impermeabilizados. Os pilotos israelitas que bombardeiam Gaza marcam pontos no seu ecrã de videojogos. A pós verdade é a desumanização. Começa por ser a desumanização dos outros e acabará por ser a desumanização dos detentores das máquinas de jogos, sejam caças F35 ou drones.

Os europeus, com a velha arrogância, têm apresentado a nova arte de manipular as opiniões como uma especificidade americana, de que Trump é o mais exuberante talento. Pura mistificação. A utilização da mentira e do logro sob a designação de pós-verdade está tanto na ordem do dia na Torre Trump em Nova Iorque como no edifício Berlaymont em Bruxelas, sede da Comissão Europeia. Ursula Vaon Der Leyen e os seus comissários mentem, inventam e manipulam tanto quanto a nova administração Trump. E mentem sobre os mesmos grande temas, as guerras na Ucrânia e na Palestina, mentem quanto a promessas de uma nova era de leite e mel se continuarem a drenar fundos para essas guerras, mentem quanto aos objetivos de fazer a América Grande de Novo ou a Europa um continente de prosperidade, desde que derrotem os russos, os chineses, saqueiem África, dominem o Médio Oriente e determinem o preço do petróleo, rasguem os protocolos sobre as alterações climáticas, fechem as fronteiras aos imigrantes provocados pelas suas guerras.

Que diferenças, exceto de forma, existe entre o discurso pistoleiro de Úrsula Von Der Leyen, de Borrell e da sua sucessora Kallas como representante da política externa da U E, da neoliberal Albuquerque dos secretários da nova administração Trump? Que diferença existe entre os e as warmongers americanos e americanas dos e das warmongers da União Europeia? A diferença da relação entre a verdade e a realidade no discurso dos dirigentes americanos e dos dirigentes europeus é a mesma entre um carniceiro e um assassino de arma fina. Os painéis de pastores das TV portuguesas não diferem dos painéis dos pastores nos Estados Unidos. A norma é o televangelismo.

A percepção de que a Europa não é o folclore americano resulta da desinformação a que somos sujeitos através da “armamentização” da comunicação social. O filósofo Marshall McLuhan escreveu há anos que “o meio é a mensagem”. A diferença entre a mentira sob o eufemismo de pós-verdade americana e europeia é que nos Estados Unidos o meio é agora Elon Musk, o homem mais rico do mundo que comprou uma plataforma de comunicação global, o X, e é o chefe de estado sombra do que era a maior superpotência do mundo. Essa é a diferença. Uma diferença de armamento e de dimensão entre uma tromba de água e um regador. Os Estados Unidos com a sua rede de satélites e de empresas de dados e comunicações, da Starlink ao Google, podem fazer descarregar um dilúvio de mentiras, ou de pós-verdades sobre o mundo, uma “dana” como a de Valência à escala planetária e a Europa não consegue provocar mais que chuviscos, mesmo com as tentativas em curso de censura e domínio dos meios de comunicação que ainda restam no domínio público ou fora dos grandes conglomerados.

No essencial, a germinação e cultivo em estufa de dirigentes quer nos Estados Unidos quer na Europa obedece ao mesmo processo: um grande apoderado paga uma generosa bolsa de estudos para um seu pupilo vir a ocupar um lugar na administração do Estado que favoreça os seus negócios. Musk financiou Trump, mas Peter Thiel, o cofundador do PayPal, rastejando nas sombras, garantiu que o seu homem, JD Vance, entrasse no par presidencial como vice-presidente. Jeff Bezos, atrasado para a festa, entrou na onda falhando alguns dias, mas garantindo que o seu Washington Post não endossasse nenhum candidato. Aqui na Europa ninguém que coloque em causa as verdades únicas da guerra na Ucrânia e do aumento das despesas militares chegará a qualquer posto de relevo. Apenas têm lugar à manjedoura os que que puxam a carroça do dono.

Quer nos Estados Unidos quer na Europa existe uma oligarquia no poder que funde os negócios do Estado e os negócios privados e constitui uma elite governante. Os negócios renderão biliões, milhões de pessoas morrerão e incontáveis crimes serão cometidos. Como li em algum lugar: “Estamos além do espelho. Estamos todos a viajar pelos esgotos da informação. Trump é um bacilo, mas o problema são os canos.” E pelos canos escorrem muitos outros dejetos.

O essencial são os valores. O valor da palavra dada. A democracia assenta no caráter dos cidadãos e em particular dos que têm maiores responsabilidades. Quando não há caráter há canalhas. Temos um regime de canalhas. Quando se abicam dos valores criamos um mundo de faquistas e de trafulhas.

202411 14

https://cmatosgomes46.medium.com/entre-a-mentira-e-o-logro-8b1a7694566c

CARLOS MATOS GOMES – O QUE EU GOSTARIA DE SABER

* Carlos Matos Gomes

14 de Novembro de 2024 

O que eu gostaria de saber é o que leva um ser humano a praticar o mal. Toda a filosofia ocidental está marcada pelo problema da origem do mal. Mas sob a mesma designação de “mal” cabem muitos tipos de mal, o mal físico, o mal psíquico, o mal moral, mas o que eu gostaria de saber era o que leva um ser humano a destruir o outro, o seu semelhante, homem, mulher ou criança. O que leva um ser humano a destruir o seu habitat. E o que leva um ser a ter prazer ao praticar o mal. Não só do masoquismo, mas do prazer do funcionário público que antes de atender o cidadão lhe atira: A senha! E que depois de o ouvir expor a sua pretensão o informa que não é ali que se trata do assunto e que falta um documento, uma certidão, um carimbo e venha qualquer dia por que estamos a fechar.

Coisas mesquinhas, mas também gostava de saber o que sentiu o presidente americano Harry Truman ao dar ordem, em 1945, para os seus militares lançarem as bombas atómicas sobre Hiroshima e Nagasaki. Gostaria de saber o que pensa um piloto israelita aos comandos de um moderníssimo caça-bombardeiro quando carrega no botão que vai largar uma bomba sobre uma multidão indefesa em Gaza. E o que pensa um palestiniano quando é expulso à coronhada sua casa onde a sua família vive há séculos, ou quando vê os colonos judeus derrubarem uma oliveira milenar porque ela é um símbolo da posse da ligação á terra e quando, espoliado de tudo, ainda é acusado de terrorista!

Gostaria de saber o que pensa o multimilionário Elon Musk quando entrega os dados da vida privada de milhões de clientes das suas redes X (ex-Twitter) aos serviços secretos dos Estados Unidos, o que permite localizá-los e matá-los à distância, segundo as conveniências. E o que pensam os administradores das grandes farmacêuticas sobre o sistema de patentes e de preços de medicamentos que geram fabulosos lucros aos seus acionistas, vendendo-os aos ricos e deixando morrer os pobres.

Gostaria de saber o que pensam os bispos e cardeais inquisidores, os antigos e os atuais, que estabeleceram verdades absolutas e que condenam à fogueira os hereges que duvidam quando a evidência lhes revela que as verdades absolutas são criminosas e as dúvidas são virtuosas.

Gostaria de saber o que pensa do mal a senhora Lagarde, do BCE, do alto da sua pesporrência quando anuncia quanto vale um euro, depois de receber ordem dos cem acionistas privados da Reserva Federal Americana, o FED e desencadeia os despejos de pessoas das suas casas, as falências de pequenas e médias empresas.

Gostaria de saber o que passava pela cabeça do papa João Paulo II da Igreja Católica Romana quando canonizou José Maria Balaguer, o chefe da Opus Dei, autor de tiradas de ofensa aos seres humanos negando a igualdade: “Não achas que a igualdade, tal como a entendem, é sinónimo de injustiça?” ou, “ “Estejas pronto a desistir da tua honra pela tua alma!” A alma de um católico não integra a sua honra?

Gostaria de saber o que levou Napoleão a incendiar a Europa com a justificação de grandeza, “La Grandeur”, se depois de matar mais de um milhão de soldados e de incontáveis destruições por toda a Europa, a França tinha exatamente o mesmo tamanho de antes de ele se arvorar em imperador!

E o que pensam uns seres da espécie humana que por conta das grandes máquinas de alienação se reúnem em aldeias de macacos de zoos para exporem nos ecrãs de televisão as suas taras, naquilo que é habitualmente designado por Big Brother? Que pensam os seres que aceitam fazer parte daquelas pocilgas e aqueles que se aproveitam do que delas sai? 

O que pensa do mal um escravo trazido no século XXI de África ou da Ásia por uma máfia para carregar uma albarda paralelepipédica a dizer Uber, ou Glovo, e a pedalar atrelado a uma bicicleta para distribuir rações fabricadas por uma multinacional a clientes de olhos e polegares fixos nos telemóveis de que não se podem desligar para cozer uma batata ou um ovo?

Gostaria de saber o que pensam do mundo as múmias do Egito, os imperadores romanos, os santos de todas as igrejas eternizados em estátuas e mausoléus, obras imperecíveis espalhadas pelo planeta sobre a obra que ajudaram a construir.

Gostaria de saber o que pensam os seres representados na cidade dos Reis no Egito, na cidade proibida de Pequim, em toda a Roma, incluindo a praça de São Pedro, no Panteão de Paris, no Kremlin de Moscovo, na Casa Branca de Washington. Eu sei o que penso deles.

https://aviagemdosargonautas.net/2024/11/14/carlos-matos-gomes-o-que-eu-gostaria-de-saber/

terça-feira, 12 de novembro de 2024

José Eduardo Agualusa - Magníficos perdedores

José Eduardo Agualusa


15/08/2016 4:00

Não se trata de triunfar sobre o outro, trata-se de fazer triunfar a humanidade

Gosto de seguir a Olimpíada não tanto para me surpreender ou maravilhar com os resultados desportivos, muito menos para torcer por esta ou aquela bandeira, e sim devido às histórias de vidas que se dão a conhecer naquele imenso palco. Não me interessam apenas as histórias de superação e de vitória. Como crônico perdedor — no plano desportivo, e não só — sinto enorme empatia pelos derrotados. Não os que perdem por uma fração de segundo, os quase-vencedores, mas os que se deixam ultrapassar magnificamente — os que caem como quem se ergue; os que ficam para trás e transformam a derrota no maior dos triunfos.

O meu herói, o campeão dos perdedores, é, desde a Olimpíada de Sidney, em 2000, o grande Eric Moussambani. Moussambani, natural da Guiné-Equatorial, tinha então 22 anos. Aprendeu a nadar, com a ajuda de um pescador, apenas quatro meses antes da tarde histórica em que, pela primeira vez, saltou para uma piscina de 50 metros (até então nadara num rio e numa piscina de hotel, de 12 metros), completando os cem metros com o pior tempo jamais registrado: um minuto e 52 segundos.

O meu pai foi professor e treinador de natação, em Angola. Devo ter sido o seu pior aluno. Fui o pior nadador da história oficial da natação angolana. Ainda assim, nunca consegui um tempo tão ruim quanto o de Moussambani. Nunca gostei de linhas retas (sou da escola de Niemeyer), de forma que avançava às curvas, batendo de encontro às raias. A minha casa estava cheia de taças e medalhas, do meu pai, da minha mãe e da minha irmã. Finalmente, também eu ganhei uma medalha de segundo classificado em nado de peito. Detalhe: éramos apenas dois concorrentes.

A história de Eric: o rapaz varria a casa, naquele já distante início de milênio, quando escutou na rádio um convite do Comitê Olímpico da Guiné-Equatorial. Procuravam-se nadadores, num país no qual raros sabem nadar. Eric foi o único homem a voluntariar-se. Quatro meses mais tarde desembarcou em Sidney com umas bermudas floridas. O treinador da seleção sul-africana emprestou-lhe uma sunga, uns óculos de natação e ensinou-o a fazer a virada. Após a gloriosa derrota, que o tornou popular no mundo inteiro, Eric Moussambani poderia ter-se aposentado. Não o fez. Aproveitou um convite de Espanha e decidiu aprender a nadar. E aprendeu.

Quatro anos depois, Moussambani obteve os mínimos regulamentares para competir em Atenas (nadou os cem metros em 54 segundos), mas acabou não comparecendo devido a um erro administrativo. Hoje é o treinador da seleção de natação da Guiné-Equatorial.

Outros perdedores olímpicos famosos, tão famosos que a sua magnífica derrota inspirou um filme, foram os jamaicanos da equipe de bobsleigh — aquela corrida de trenó, com quatro pessoas dentro de cada um — dos Jogos Olímpicos de Inverno, em Calgary, no Canadá, em 1988. O caso deles é ainda mais extraordinário do que o de Moussambani, já que pelo menos existe água na Guiné-Equatorial. Na época até já havia uma piscina de 12 metros, num hotel, embora Moussambani só a pudesse utilizar de madrugada, durante uma hora, antes que os hóspedes acordassem. Na Jamaica não existe neve. Nunca. Os quatro bravos jamaicanos despistaram-se na prova inicial, mas conseguiram sobreviver ao desastre — e ao frio.

Neste ano, no Rio, duas perdedoras também fizeram História. As atletas egípcias de vôlei de praia, Doaa Elghobashy e Nada Meawad. Uma imagem de Doaa ao lado de uma atleta alemã correu o mundo — Doaa usando o tradicional hijab , calças legging e camiseta de manga comprida; a atleta alemã, Kira Walkenhorst, vestindo biquíni. Foi a primeira vez que o Egito disputou uma Olimpíada na modalidade. A fotografia serviu de pretexto para uma intensa discussão sobre diferenças de cultura, fanatismo religioso e liberdade da mulher. Curiosamente, poucos fotógrafos se interessaram em retratar Nada, a qual optou por se apresentar sem o véu islâmico. As duas mostraram grande coragem, mas provavelmente Nada mostrou mais. Assediada pela imprensa Doaa assegurou que o hijab não a incomoda enquanto joga. Não disse — mas suspeito — que a incomoda mais a curiosidade do público e dos jornalistas. 

Com véu ou sem véu, a alegria das duas mulheres por estarem ali, num evento tão importante, competindo com as melhores (ainda que elas mesmas não tivessem sequer noção de quem eram as melhores) representa o lado mais luminoso daquilo que se costuma chamar espírito olímpico — e do qual, quase sempre, nos esquecemos: não se trata de triunfar sobre o outro, trata-se de fazer triunfar a humanidade.

https://oglobo.globo.com/cultura/magnificos-perdedores-19921976