* António Rodrigues
4 ESQUINAS -
11 de Agosto de 2023 (Público)
O mundo que se
conta a partir do que se diz.
“Quando pedimos
trabalho, pedimos dignidade, porque o trabalho faz a dignidade da pessoa”,
bispo Oscar Ojea, presidente da Conferência Episcopal Argentina
“Guerra aos
pobres”
O Governo
italiano, liderado pela pós-fascista Giorgia Meloni, avisou, a 31 de Julho, 169
mil agregados familiares que vão deixar de receber o equivalente italiano do
rendimento social de inserção. Com uma simples mensagem do Instituto Nacional
de Previdência Social italiano, enviada por telemóvel no fim de Julho, ficaram
a saber que já não poder contar com os 780 euros mensais do “rendimento de
cidadania”, atribuídos desde 2019 e destinados sobretudo a pessoas no
desemprego.
O instituto
garante na mensagem que o corte não é generalizado, distinguindo aquilo que são
“as pessoas empregáveis e aquelas que o não são”, incluindo nesta última
categoria as famílias com pessoas portadoras de deficiência, com menores a seu
cargo ou de mais de 60 anos. Para estas haverá um subsídio de 500 euros
mensais. Os outros passam a receber 350 euros e apenas durante um ano.
Num país onde
não há salário mínimo, a mensagem do executivo é simples: o pobre que não
quiser morrer de fome terá de aceitar qualquer tipo de emprego, por mais mal
remunerado que este seja.
A oposição
apelidou a medida do Governo italiano como “uma guerra aos pobres”.
“Esta decisão
não irá fazer mais do que aumentar a pobreza e o desemprego em plena inflação”,
dizia esta semana o economista Henri Sterdyniak ao jornal francês l’Humanité. É o “triunfo da ideologia neoliberal,
com a ideia subjacente de que, se as pessoas são pobres, a culpa é delas.”
A medida do
Governo, prometida na campanha eleitoral de Outubro e anunciada com simbolismo
no Dia
do Trabalhador, agregada com a promoção de contratos de curta duração,
transforma-se num maná para as empresas que podem assim relativizar o valor do
trabalho nos seus custos fixos, ao mesmo tempo que a precariedade dos
trabalhadores lhes permite esmagar ainda mais o pagamento por esse trabalho.
O poderoso
cobarde de Peshawar
Em Peshawar, no
Leste do Paquistão, um líder político local galvanizava a multidão com um
discurso ultraconservador, agressivo, desafiador. Estávamos a poucos dias da
invasão do Afeganistão pelas forças aliadas com os Estados Unidos à cabeça, no
Outono de 2001, em resposta ao ataque terrorista contra o World Trade Center e
o Pentágono.
Quem o via de
longe no seu estrado, entusiasmado com o seu radicalismo de apoio aos taliban e
de ataque ao imperialismo corrupto, teria dele uma ideia de líder corajoso,
disposto a encabeçar uma multidão contra o demónio ocidental com a faca entre
os dentes.
Finda a
manifestação, a polícia interveio. As pessoas dispersaram, os oradores
dispersaram, a imprensa dispersou, até que um dos jornalistas se viu de repente
perante um agente da autoridade brandindo com raiva o pingalim e pensou que
iria sentir na pele os lanhos abertos por essa herança do Império Britânico. Só
quando sentiu nas costas uma mão se apercebeu de que, atrás de si, chorando,
dobrado de medo, balbuciando desculpas, estava o mesmo orador que, minutos, no
contrapicado do palco, parecia um gigante vociferador.
Cada vez que se
ouve a extrema-direita expelindo perdigotos contra os migrantes como os grandes
causadores de todos os males do mundo, é preciso recordar a imagem do poderoso
cobarde de Peshawar. Esta semana, veio-me à memória o episódio quando o
vice-presidente do Partido Conservador britânico, Lee Anderson, usou linguagem
colorida para dizer aos requerentes de asilo que se não gostam de ser metidos
na “prisão flutuante” que o Governo de Rishi Sunak lhes arranjou, “they
should fuck off back to France”.
Como escreve Andrew Stroehlein,
director dos media europeus da Human Rights Watch, estamos
perante “a mais preguiçosa forma de política”, praticada pelos “políticos sem
escrúpulos” que estão sempre prontos a aproveitar-se da fragilidade alheia para
ganho pessoal. Até porque “atacar os vulneráveis é simples; resolver problemas
é difícil”.
Mãe
migrante
A década de
1930 transformou a América. Foram anos duros. De pobreza extrema, fome,
exploração. Foram os anos de As Vinhas da Ira, de John Steinbeck
(prémio Pulitzer em 1940), das famílias de agricultores que perderam as terras,
por causa da seca e das tempestades de pó, e partiram em busca de trabalho à
jorna nas terras dos outros.
Foi também a
década do New Deal, de Roosevelt, ambicioso programa de projectos
públicos e reformas legislativas destinadas a aquecer a economia americana
depois do desastre da Grande Depressão. A agência encarregada de promover o
programa, a Farm Security Administration, contratou na altura 15 fotógrafos de
renome para documentar o êxodo dos agricultores em busca de trabalho nas
plantações.
Entre eles
estava Dorothea Lange, que já tinha fotografado as condições dos desempregados
e sem-tecto da Califórnia. Do trabalho comissionado a Lange saiu uma das
imagens mais icónicas dessa época e da história da fotografia, o retrato Mãe
Migrante, de 1936. Uma das imagens da série que a fotógrafa fez com
Florence Owens Thompson, num acampamento em Nipomo, Califórnia.
“Vi e
aproximei-me de uma mãe faminta e desesperada, como se tivesse sido atraída por
um íman. Não me lembro como lhe expliquei a minha presença ou a minha câmara,
mas lembro-me de que não me fez qualquer pergunta”, contou, anos mais tarde, a
fotógrafa, citada no site do MoMA.
Mãe Migrante e
as cinco outras imagens que fez de Florence e dos filhos são parte importante
da exposição que lhe é dedicada em Turim, Dorothea
Lange. Racconti di Vita e Lavoro, em exibição no
Camera – Centro Italiano para a Fotografia, até 8 de Outubro.
Um jornalista
localizou a mulher 40 anos depois, a viver num parque de atrelados em Modesto,
Califórnia. Sentia-se envergonhada por essa imagem que a transformara em ícone
de uma época de desesperança. Os filhos dela tinham outra perspectiva, viam na
imagem a dignidade de uma mulher em tempos de adversidade e angústia.
A angústia e
o aviso
São Caetano é o
padroeiro do pão e do trabalho. A cada 7 de Agosto, pobres e desempregados
passam pelas igrejas para pedir ao santo que lhes traga emprego e comida. Em
situações de profunda crise económica, como a que a Argentina hoje atravessa (a
inflação chegou, em Junho, a 115,6%), as filas de crentes multiplicam-se.
O trabalho “não
é um objecto de compra e venda, não é um objecto de consumo”, afirmava esta
semana o presidente da Conferência Episcopal Argentina, Oscar Ojea, ao diário Página/12. “Quem não trabalha sente que
sobra, que não vale nada; sente-se ferido na sua dignidade.”
Entre quem não
tem emprego, quem é explorado no trabalho ou não consegue chegar ao fim do mês,
a angústia generaliza-se. Com a existência cada vez mais fragilizada, o elo
mais fraco no mercado laboral torna-se presa fácil na luz maximizada dos faróis
empresariais: coelhos atordoados a que se pode oferecer até a ilusão de uma
cenoura em troca de trabalho.
“Quando falamos
de paz, falamos de justiça”, explicava o bispo. “Quando falamos do pão, falamos
de um direito universal de todos os seres humanos.” E deixava o aviso: “Quando
lutamos verdadeiramente para que todos possam ter trabalho e para que sejam
respeitados todos os trabalhadores, mesmo aqueles que não podem viver na
plenitude dos seus direitos”, estamos a trabalhar em prol da paz.
“Na verdade,
quando pedimos ao santo do pão e do trabalho pão e trabalho, estamos a pedir
paz”, porque a paz não é uma coisa abstracta, uma palavra com significado
teórico sem realização física. “A paz constrói-se no concreto, no amor do
concreto”, sublinhava o bispo. Não esqueçamos que 85% das pessoas que passam
fome hoje no mundo vivem em países afectados por guerras e conflitos.
https://www.publico.pt/2023/08/11/mundo/cronica/dignidade-estupido-2059877
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"O trabalho é mais importante e é independente do capital. O capital é apenas o fruto do trabalho, e não existiria sem ele. O trabalho é superior ao capital e merece a consideração mais elevada." (Lincoln, Presidente dos EUA)