* Manuel Loff
Até ontem, os países NATO, um após o outro, exortavam Israel a não invadir o Líbano e enviavam a este país aviões... para recolher o seu pessoal diplomático e os cidadãos que queiram e, num país onde um milhão de pessoas (uma em cada cinco) tiveram de fugir de casa, consigam sair. Mas não enviaram aviões de combate para reforçar as Forças Armadas libanesas contra o invasor israelita, como fizeram com a Ucrânia. O que vale para a Ucrânia não vale para o Líbano. Num ano inteiro não valeu para Gaza, a Cisjordânia, territórios invadidos não há dois, mas há 67 anos. Num ano morreram incomparavelmente mais civis em Gaza do que em mais de dois anos e meio na Ucrânia — e Biden e Von der Leyen pedem aos países árabes a mesma desescalada e diplomacia cujo oposto praticam intensamente há anos na Ucrânia.
É insólito este medo de uma guerra generalizada na boca de quem governa deste lado do mundo. Ontem mesmo, Biden deu as ordens necessárias para comprometer (mais ainda) os EUA nas guerras de agressão israelitas. Depois de terem justificado a chuva de mísseis sobre Beirute como uma merecida punição do Hezbollah, os EUA substituíram-se aos israelitas na interceção dos mísseis iranianos para proteger Netanyahu e os genocidas que o acompanham. E disponibilizam para a guerra os 43 mil soldados que, por vezes contra a vontade dos respetivos governos, têm na região. E assim se procura “evitar a guerra”...
A discussão da dualidade de critérios não é apenas moral. Ela tem implicações diretas nas vidas de milhões de pessoas. A dualidade mata. Em Gaza, na Cisjordânia, Israel comporta-se como um dos ocupantes mais sinistros da história, perpetrando represálias sobre a população civil em termos que reproduzem as represálias nazis sobre as populações dos países ocupados na II Guerra Mundial, ou as dos norte-americanos no Vietname, dos franceses na Argélia. Neste momento, com o fluxo imparável de material bélico ocidental, Israel dispara (e mata) em todas as direções: Irão, Síria, Iémen, e agora, sobretudo o Líbano. Por enquanto ordena deslocações de populações; depois passará diretamente às deportações, seguindo o exemplo de Gaza. Bombardeia cidades e campos de refugiados – dos milhões de palestinianos que na Nakba de 1948 expulsaram das suas casas, dos sírios que procuraram fugir da guerra que o Estado Islâmico e as guerrilhas que a Turquia (membro da NATO) e os EUA armaram em 2011.
Os EUA e Israel são há muito aquilo que no glossário imperial se tem chamado “Estados párias”: sequestros em prisões ilegais, tortura sistemática, assassinatos contrariando qualquer forma de direito, nacional ou internacional. Israel é o Estado do planeta que mais resoluções da ONU incumpre, o seu chefe de governo tem um mandado de captura internacional, ataca estruturas e instalações das agências da ONU e assassina os seus funcionários (e médicos, e jornalistas, e crianças...). E, contudo, aí estão os governos UE a proibir por “antissemitas” manifestações de solidariedade com as vítimas palestinianas e exigindo boicote e sanções a Israel.
Somos um mundo de impunidade e de desigualdade, lembrou há dias Guterres, onde muitos governos “podem invadir outro país, devastar sociedades inteiras ou ignorar totalmente o bem-estar do seu próprio povo” e passar por cima de “decisões dos tribunais internacionais”. Não vale a pena é imaginar que a impunidade imperial dos nossos dias é nova. O que é nova é a coerência desta “necropolítica”, deste exercício do poder de “ditar quem pode e não pode viver” como “expressão máxima de soberania” (Achille Mbembe), com esta narrativa tipicamente fascista e colonial que nos fazem das guerras expansionistas de Israel. Não somente tratando os povos árabes da região como “animais humanos”, mas contando tudo nos mesmos termos socialmilitaristas com que no Brasil se narra a entrada da polícia militar numa favela ou como na imprensa nazi se falava da “bestialidade” dos ciganos, dos judeus e dos eslavos que “ameaçavam a existência da Alemanha”.
As guerras israelitas, a sua necropolítica genocida, as décadas de ocupação impune, aplaudida, justificada, dizem tudo do que é hoje o Ocidente. A nossa posição perante elas diz tudo de cada um de nós.
2 de Outubro de 2020
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"O trabalho é mais importante e é independente do capital. O capital é apenas o fruto do trabalho, e não existiria sem ele. O trabalho é superior ao capital e merece a consideração mais elevada." (Lincoln, Presidente dos EUA)