José Eduardo Agualusa
15/08/2016 4:00
Não se trata de triunfar sobre o outro, trata-se de fazer triunfar a humanidade
Gosto de seguir a Olimpíada não tanto para me surpreender ou maravilhar com os resultados desportivos, muito menos para torcer por esta ou aquela bandeira, e sim devido às histórias de vidas que se dão a conhecer naquele imenso palco. Não me interessam apenas as histórias de superação e de vitória. Como crônico perdedor — no plano desportivo, e não só — sinto enorme empatia pelos derrotados. Não os que perdem por uma fração de segundo, os quase-vencedores, mas os que se deixam ultrapassar magnificamente — os que caem como quem se ergue; os que ficam para trás e transformam a derrota no maior dos triunfos.
O meu herói, o campeão dos perdedores, é, desde a Olimpíada de Sidney, em 2000, o grande Eric Moussambani. Moussambani, natural da Guiné-Equatorial, tinha então 22 anos. Aprendeu a nadar, com a ajuda de um pescador, apenas quatro meses antes da tarde histórica em que, pela primeira vez, saltou para uma piscina de 50 metros (até então nadara num rio e numa piscina de hotel, de 12 metros), completando os cem metros com o pior tempo jamais registrado: um minuto e 52 segundos.
O meu pai foi professor e treinador de natação, em Angola. Devo ter sido o seu pior aluno. Fui o pior nadador da história oficial da natação angolana. Ainda assim, nunca consegui um tempo tão ruim quanto o de Moussambani. Nunca gostei de linhas retas (sou da escola de Niemeyer), de forma que avançava às curvas, batendo de encontro às raias. A minha casa estava cheia de taças e medalhas, do meu pai, da minha mãe e da minha irmã. Finalmente, também eu ganhei uma medalha de segundo classificado em nado de peito. Detalhe: éramos apenas dois concorrentes.
A história de Eric: o rapaz varria a casa, naquele já distante início de milênio, quando escutou na rádio um convite do Comitê Olímpico da Guiné-Equatorial. Procuravam-se nadadores, num país no qual raros sabem nadar. Eric foi o único homem a voluntariar-se. Quatro meses mais tarde desembarcou em Sidney com umas bermudas floridas. O treinador da seleção sul-africana emprestou-lhe uma sunga, uns óculos de natação e ensinou-o a fazer a virada. Após a gloriosa derrota, que o tornou popular no mundo inteiro, Eric Moussambani poderia ter-se aposentado. Não o fez. Aproveitou um convite de Espanha e decidiu aprender a nadar. E aprendeu.
Quatro anos depois, Moussambani obteve os mínimos regulamentares para competir em Atenas (nadou os cem metros em 54 segundos), mas acabou não comparecendo devido a um erro administrativo. Hoje é o treinador da seleção de natação da Guiné-Equatorial.
Outros perdedores olímpicos famosos, tão famosos que a sua magnífica derrota inspirou um filme, foram os jamaicanos da equipe de bobsleigh — aquela corrida de trenó, com quatro pessoas dentro de cada um — dos Jogos Olímpicos de Inverno, em Calgary, no Canadá, em 1988. O caso deles é ainda mais extraordinário do que o de Moussambani, já que pelo menos existe água na Guiné-Equatorial. Na época até já havia uma piscina de 12 metros, num hotel, embora Moussambani só a pudesse utilizar de madrugada, durante uma hora, antes que os hóspedes acordassem. Na Jamaica não existe neve. Nunca. Os quatro bravos jamaicanos despistaram-se na prova inicial, mas conseguiram sobreviver ao desastre — e ao frio.
Neste ano, no Rio, duas perdedoras também fizeram História. As atletas egípcias de vôlei de praia, Doaa Elghobashy e Nada Meawad. Uma imagem de Doaa ao lado de uma atleta alemã correu o mundo — Doaa usando o tradicional hijab , calças legging e camiseta de manga comprida; a atleta alemã, Kira Walkenhorst, vestindo biquíni. Foi a primeira vez que o Egito disputou uma Olimpíada na modalidade. A fotografia serviu de pretexto para uma intensa discussão sobre diferenças de cultura, fanatismo religioso e liberdade da mulher. Curiosamente, poucos fotógrafos se interessaram em retratar Nada, a qual optou por se apresentar sem o véu islâmico. As duas mostraram grande coragem, mas provavelmente Nada mostrou mais. Assediada pela imprensa Doaa assegurou que o hijab não a incomoda enquanto joga. Não disse — mas suspeito — que a incomoda mais a curiosidade do público e dos jornalistas.
Com véu ou sem véu, a alegria das duas mulheres por estarem ali, num evento tão importante, competindo com as melhores (ainda que elas mesmas não tivessem sequer noção de quem eram as melhores) representa o lado mais luminoso daquilo que se costuma chamar espírito olímpico — e do qual, quase sempre, nos esquecemos: não se trata de triunfar sobre o outro, trata-se de fazer triunfar a humanidade.
https://oglobo.globo.com/cultura/magnificos-perdedores-19921976
Sem comentários:
Enviar um comentário
"O trabalho é mais importante e é independente do capital. O capital é apenas o fruto do trabalho, e não existiria sem ele. O trabalho é superior ao capital e merece a consideração mais elevada." (Lincoln, Presidente dos EUA)