sexta-feira, 12 de setembro de 2025

Gerardo Tecé - Morreu um leão

Talvez continuar a sentir empatia quando tipos como Charlie Kirk pedem que deixemos de o fazer seja uma arma muito melhor do que uma espingarda para combater esta gente.

* Gerardo Tecé


Charlie Kirk na uniersidade do Ohio em 2019, na sua tournée "Guerra Cultural" pelas universidades dos EUA. Foto Gage Skidmore

Um crime injustificável. Um ato terrível e desumano. A dor que sentimos hoje é imensa. Toda a nossa solidariedade para com os seus entes queridos. É monstruoso acabar com a vida de um jovem desta forma. Depois de ter sido baleado na garganta por um atirador furtivo durante um ato público numa universidade do Utah, a extrema-direita global chora a morte de Charlie Kirk, aos 31 anos. É um choro sincero. Uma demonstração de dor que surge de uma forma que pensávamos ter sido banida deste espectro ideológico. Quase proibida. Humanidade, solidariedade, empatia... São conceitos amplamente ridicularizados nos últimos tempos pela extrema-direita norte-americana, da qual Kirk, amigo e conselheiro de Donald Trump, era uma das grandes referências juvenis. Enquanto muitos começam a falar de mártir, ninguém se atreve, em pleno luto, a lembrar que a dor e a empatia que hoje surgem entre os admiradores deste jovem são, na verdade, lixo, pura ideologia esquerdista, como explicava o próprio Kirk num dos seus discursos mais bem sucedidos e aplaudidos. A empatia, a dor pelo outro, é uma armadilha, dizia ele. Uma invenção suja da esquerda para construir sociedades fracas. «É preciso fugir de tudo isso porque sentir-se mal pelos outros não nos faz avançar, não leva a nada».

Opiniões como esta tornaram Kirk um tipo livre, de acordo com a nova direita planetária que define liberdade como o exercício de procurar os seus objetivos políticos e ideológicos sem ter em conta as consequências que pode causar em outros, mais fracos. Firme defensor da venda de armas nos Estados Unidos, pouco depois do enésimo massacre, Kirk pediu num discurso público para não cair na armadilha de que a empatia pelas últimas vítimas e seus familiares fosse o que guiasse esse debate, porque isso não leva a nada. Em vez disso, o que devemos fazer, dizia Kirk, é aceitar que a liberdade de portar armas pode, ocasionalmente, causar algumas mortes. É um preço que vale a pena pagar, explicava ele, e a plateia, cheia de pessoas tão livres quanto ele, aplaudia freneticamente.

O preço a pagar de que Kirk falava sempre vale a pena para aqueles que hoje fazem uma pausa para chorar o seu assassinato com empatia. Em Israel, é claro, valeu a pena pagar o preço de dezenas de milhares de vítimas civis, porque mais importante do que tudo isso é defender a liberdade, afirmava o jovem e milionário comunicador. Em Israel, é claro, choram a morte de Charlie Kirk. Um amigo inabalável, diz hoje a imprensa conservadora do país judeu nos seus obituários. Benjamin Netanyahu, amigo pessoal do jovem assassinado, declarou estar horrorizado com tanta violência e revelou que recentemente tinham falado ao telefone. “Eu convidei-o para visitar Israel, ele era um amigo corajoso como um leão”. A precisão da comparação não é por acaso. Não há melhor animal para definir Kirk e a nova direita sem complexos do que o leão, rei da selva. Milei, presidente argentino e, como tantos outros líderes de extrema direita, amigo do falecido, escolheu o leão quando, pouco depois de assumir o cargo, subiu ao palco do Luna Park deixando claro o que estava por vir: “Eu sou o leão, rugiu a besta no meio da avenida e todos correram”, cantava ele, eufórico diante do terror dos fracos prestes a sofrer com a sua motosserra. Se o objetivo político é estabelecer uma selva sem outra regra além da lei do mais forte, é impossível que eles não se sintam leões.

O jovem comunicador não poderá ver realizado o seu sonho de ser um leão na selva que ele e tantos outros ideólogos da nova extrema-direita projetam como aposta para o futuro. No entanto, ele deixa boas bases ideológicas para que o projeto continue a crescer. Como militante ativo contra a empatia, na sua curta vida Kirk defendeu o genocídio em Gaza, os cortes sociais para os mais pobres na Argentina ou as prisões que violam os direitos humanos em El Salvador. A nível interno, Kirk defendeu aqueles que atacaram violentamente os seus rivais políticos durante o assalto ao Capitólio, opôs-se ao casamento homossexual, ao movimento feminista ou à luta da comunidade negra, de quem disse que cometiam mais crimes desde que deixaram de ser escravos. A bandeira norte-americana ondulará a meia haste na Casa Branca e no Capitólio durante os próximos dias porque morreu um tipo livre. Morreu um leão e a manada chora sem se questionar se a pontaria e o tiro que acabaram com a vida de Kirk não serão também consequência da lei do mais forte.

Nós, que temos como animal favorito a osga e tentamos contaminar a sociedade com armadilhas sujas como a empatia, não podemos deixar de pensar que, por mais que detestemos as opiniões de tipos como Kirk, o assassinato do jovem ultradireitista deixa para trás uma família destruída e duas crianças pequenas que sofrerão. Talvez continuar a sentir empatia quando tipos como Kirk pedem que deixemos de o fazer seja uma arma muito melhor do que uma espingarda para combater esta gente. Ao contrário de Kirk, muitos de nós continuamos a não aceitar que haja certos preços que valham a pena pagar.

12 de setembro 2025 - 12:04

Gerardo Tecé é cronista no CTXT. Artigo publicado no CTXT 

 https://www.esquerda.net/artigo/morreu-um-leao/95968

Sem comentários:

Enviar um comentário

"O trabalho é mais importante e é independente do capital. O capital é apenas o fruto do trabalho, e não existiria sem ele. O trabalho é superior ao capital e merece a consideração mais elevada." (Lincoln, Presidente dos EUA)