* José Pacheco Pereira
"Estamos em plena mistificação política associada às comemorações do 25 de Novembro, que o Governo entregou ao CDS, exactamente um partido que pouco teve a ver com o 25 de Novembro e se teve foi um dos derrotados dessa data ao não conseguir, por via dos sectores da direita militar, interditar o PCP.
A mistificação assenta no combate político dos nossos dias, na minimização do papel das eleições para a Constituinte, no apagar do papel do “Verão Quente” de Agosto de 1975, e na falsa atribuição de papéis e intenções ao PCP no 25 de Novembro. Essas interpretações não se sustentam em nenhuma base sólida com o carácter de fonte histórica e destinam-se a dar ao 25 de Novembro um papel de “segundo 25 de Abril”, na prática, mais relevante para a construção da democracia, o que não é verdade.
Que problemas defrontava o PCP na 2.ª metade de 1975?
Essencialmente quatro: a formulação de uma estratégia e uma táctica que conciliasse a situação portuguesa com a orientação internacional do movimento comunista ligado à URSS no período da distensão (détente); a perda da influência no interior do poder militar do MFA; o assalto anticomunista com destruição de sedes, perseguição a militantes conhecidos do PCP no Norte, atentados; e a “rua” dominada pelos esquerdistas com o apoio dos militares ligados ao Copcon.
1.º A posição do PC da URSS (PCUS)
O Departamento Internacional do PCUS era já, há mais de uma década, o substituto da Internacional. Era por aí que passava o controlo político dos partidos comunistas, os financiamentos e as operações de apoio clandestino. Em 1974-1975, antes e durante a “revolução portuguesa”, a estratégia soviética resultava de uma discussão interna sobre o golpe de Pinochet no Chile. Essa discussão era entre os que achavam que Allende devia ter ido mais longe, e os que achavam que tinha ido longe demais. A segunda posição era dominante e acompanhava a política externa da URSS ligada à Conferencia de Helsínquia. Suslov, de quem Cunhal era próximo, e Ponomariev, a última coisa que queriam era uma “Cuba na Europa” ou uma “comuna de Lisboa” e Cunhal sabia-o muito bem.
A preocupação com Angola e a sua independência e a guerra civil é outra dimensão, mas não altera a orientação soviética ao PCP.
2.º A perda de influência do PCP no MFA
Para o PCP, o mais grave da situação de 1975 era a perda de influência nas cúpulas do MFA, em particular depois dos fracos resultados das eleições para a Constituinte, da queda de Vasco Gonçalves e do ascenso do Grupo dos Nove. Cunhal, num discurso ao Comité Central do PCP em Agosto de 1975, que permaneceu secreto na sua integralidade — o que significa que temos de o tomar muito a sério —, manifestou essa preocupação maior e pretendia responder, não com a rua, mas com a “ronha”, termo que utilizou.
3.º O terrível mês de Agosto
O PCP foi o alvo principal (mas não único, com o MDP e a FSP) de uma sublevação a norte de Rio Maior que juntou as organizações clandestinas de extrema-direita, como o ELP, e a Igreja, mas que ia mais longe: era um movimento genuinamente popular, resultado de um anticomunismo alimentado pelos medos de perda da propriedade das terras no minifúndio, resultado entre outras coisas dos erros das campanhas de dinamização, e da defesa da Igreja.
O PCP sai desse mês acossado, e consciente de que os militares não lhe davam a protecção de que precisava. O resultado foi um “basta” interior, com o PCP disposto a ter uma defesa mais agressiva, em particular das sedes. A minimização do que aconteceu em Agosto é um dos aspectos da mistificação actual das “comemorações” do 25 de Novembro, ao negar essa parte do contexto.
4.º O PCP perdeu o controlo da “rua”
A partir de Agosto, em particular em Lisboa, o PCP perdeu o controlo da “rua” para os “esquerdistas”. Isto era, para Cunhal e para a direcção do PCP, um enorme problema, porque punha em causa a táctica da “ronha”, acelerava o processo político e acentuava uma radicalização que o PCP sabia ser imprudente. O PCP, como sempre, não podia abandonar a “rua”, e mantinha-se na sua habitual posição de ter um pé dentro e outro fora. Mas actuava com relutância, como aconteceu na entrada e saída da FUR, ou na participação incomodada em manifestações em que se gritava contra o “social-imperialismo soviético”. Este padrão de um pé dentro e outro fora foi seguido para o “cerco” da Assembleia e o 25 de Novembro.
Que "esquerdistas" são estes?
Podemos designar o esquerdismo de 1974-75 aquele que participa nas manifestações, aquele que cria comissões de moradores, comissões de trabalhadores, ocupações de empresas, organizações dentro dos quartéis, e que tem no topo militar o Copcon, como um neo-esquerdismo, diferente do que vinha de antes do 25 de Abril. As organizações dominantemente maoistas anteriores ao 25 de Abril eram, na sua maioria, constituídas por estudantes, e quase sem penetração nos meios operários. Todas estão presentes nos movimentos de 1975, mesmo no campo militar com os trotkistas nos SUV, mas tinham políticas diferenciadas, como o MRPP ou o PCP(ML)/Vilar, e estão longe de controlar as movimentações, em comparação, por exemplo, com as organizações das intercomissões dos trabalhadores.
Este neo-esquerdismo tem uma força de movimento popular muito mais significativa do que o antigo esquerdismo, e é um fruto do impacto da liberdade pós-25 de Abril. Em bom rigor, os dois movimentos com base popular são o contra-revolucionário a norte e o “popular” na zona de Lisboa e Setúbal, estendendo-se já, com influência do PCP, pelo Alentejo. Este neo-esquerdismo lida muito melhor com organizações não-leninistas, como o PRP-BR e a LUAR, e nalguns aspectos como o MES.
A comparação com a Revolução Russa de 1917
Uma das acusações da direita, que o PS também usou, apresenta alguns acontecimentos de 1975 como uma repetição por parte do PCP do modelo da revolução bolchevique.
O único aspecto que pode permitir a comparação é a existência de uma dualidade de poderes, como em 1917, entre os sovietes e o Governo menchevique. Em Portugal, há de facto em 1975 uma dualidade de poderes, entre o Governo fragilizado, mas com um apoio militar que se veio a perceber ser poderoso em 25 de Novembro de 1975, a legitimidade eleitoral da Assembleia Constituinte, e o “poder popular” esquerdista, que foi sempre a nível nacional fraco, embora mais forte na “comuna” de Lisboa, mas que estava a perder poder de forma acelerada.
Havia um plano de tomar o poder no 25 de Novembro?
Não. Não houve e não há qualquer prova de um plano de tomada de poder, quer por parte do PCP, quer por parte dos militares esquerdistas no 25 de Novembro.
Nenhum assalto ao poder nas movimentações militares dos pára-quedistas cujos objectivos eram corporativos e, quando muito, reforçar a componente “popular” da dualidade de poderes. Como aconteceu em várias manifestações de apoio ao Copcon, mesmo com chaimites, quando chegavam ao fim, apontavam as armas, gritavam frases revolucionárias e iam-se embora pacificamente. Não sabiam o que fazer.
Esteve o PCP presente no 25 de Novembro?
Sim, no princípio, mas não o iniciou nem participou nele para tomar o poder e instituir uma qualquer variante de ditadura do proletariado. Como referimos antes, o PCP em casos como este tem sempre um pé dentro e outro fora, e o pé dentro tem muito a ver com a decisão de não mais ficar passivamente a ver o que se tinha passado a norte de Rio Maior em Agosto. Tinha logística na rua, principalmente com os veículos pesados da construção civil que já tinham estado presentes no “cerco” à Constituinte, no aparelho de comunicações paralelo, e nos militantes armados nas sedes para as defender. Mas não só os sectores militares mais significativos ligados ao PCP como a Marinha desde cedo informaram Costa Gomes que aceitavam o seu comando, como todo este aparelho foi retirado quando o PCP se apercebeu de que a movimentação militar esquerdista ia falhar, logo, nem sequer valia ter um pé dentro. Mas nada disto significa iniciativa, plano, intenção de tomar o poder, comando dos acontecimentos.
Deve-se comemorar o 25 de Novembro?
Pode e deve-se, se for com rigor. Sem dúvida que o 25 de Novembro é um passo fundamental do caminho aberto pelo 25 de Abril. No dia 25 com a vitória militar contra o esquerdismo; e no dia 26 pela recusa da ilegalização do PCP.
Os heróis do 25 de Novembro são aqueles que se quer hoje apagar da história por serem inconvenientes para a visão da direita radical do que aconteceu: Costa Gomes, Presidente da República, o Grupo dos Nove do MFA, com relevo para Vasco Lourenço, Ernesto Melo Antunes, o general Ramalho Eanes como elemento do comando, e entre os comandados Jaime Neves e no plano civil Mário Soares e o PS.
Essa comemoração, se for séria, deve acompanhar os passos que vão da liberdade à democratização. Durou mais de dez anos, mas resultou."
in “Publico”, 22.11.25
Sem comentários:
Enviar um comentário
"O trabalho é mais importante e é independente do capital. O capital é apenas o fruto do trabalho, e não existiria sem ele. O trabalho é superior ao capital e merece a consideração mais elevada." (Lincoln, Presidente dos EUA)