quarta-feira, 26 de novembro de 2025

Margarida Davim - Os ciganos que fazem frente a Ventura

* Margarida Davim 

"Bruno Gonçalves e Paulo Domingos são dois dos seis ciganos que vão a tribunal exigir a retirada dos cartazes racistas. Olga Mariano é uma das oito testemunhas. As suas histórias desmontam ideias feitas e dão corpo a um povo perseguido que, mais de 500 anos depois de chegar a Portugal, ainda tem de reivindicar a sua portugalidade", escreve Margarida Davim na Visão.

Olga Mariano hesita em falar. “Não quero dar mais palha a André Ventura. Ele quer usar-nos como uma escada para subir.” Mas o seu testemunho é importante. Aos 75 anos, poeta publicada, Olga confunde os últimos 27 anos da sua vida com o associativismo cigano e com a defesa da igualdade de género “para ciganos e não ciganos”. E é também por isso que o seu nome está entre as oito testemunhas indicadas pelo advogado Ricardo Sá Fernandes, na ação especial de tutela de personalidade, interposta por seis ciganos que querem obrigar Ventura a retirar os cartazes em que diz que “os ciganos devem cumprir a lei”, deixando claro que a liberdade de expressão não serve para promover a discriminação. “Como portuguesa que sou, sinto-me vandalizada na minha portugalidade. Ser cigano é uma cultura. Não admito a ninguém que deite abaixo a minha nacionalidade. A minha bandeira é a portuguesa. Dou voz a milhares de portugueses com uma cultura chamada cigana”, concede finalmente Olga.

Na verdade, não há muitos ciganos em Portugal. Estima-se que sejam entre 50 e 70 mil, e quem pertence à etnia que chegou a Portugal por volta de 1462 garante que não se deve falar em “comunidade cigana”, mas sim em “povo cigano”. “Não somos uma comunidade. Somos diferentes comunidades que fazem parte de um povo. É preciso conhecer”, diz Paulo Domingos, um dos autores da ação e presidente da Plataforma Nacional para os Direitos dos Ciganos. Mas voltemos a Olga Mariano para perceber como dentro deste povo há percursos e vidas diferentes, ainda que com uma cultura em comum. “Eu posso ser tudo o que eu quiser sem deixar de ser quem sou”, diz Olga, que foi a primeira mulher cigana a ter carta de condução em Portugal, ainda nos anos 1960, com o País mergulhado em ditadura e os direitos das mulheres longe de estarem garantidos.

A primeira cigana a ter carta

Olga nasceu numa família que, por ter casa própria no Alentejo, conseguiu escapar ao nomadismo forçado, incentivado por uma lei que só deixou de estar em vigor em 1985 e que decretava que a GNR devia manter uma vigilância apertada aos nómadas, leia-se ciganos, que, apesar de terem obtido a cidadania portuguesa em 1822, foram perseguidos em Portugal ao longo dos séculos. Não ser nómada permitiu a Olga Mariano, às suas duas irmãs e ao seu irmão fazerem a quarta classe. “Os meus pais sempre lutaram para que os filhos tivessem o quarto ano.” Ir além disso era economicamente impossível, mas depois de o pai deixar o Alentejo, onde era tratador de equídeos, e rumar ao Fogueteiro em busca de trabalho, Olga deu por si a ser fundamental para a família. Como foi a primeira a concluir os estudos, era a única que podia ter a carta de condução e, por isso, aquela que podia guiar a carrinha da família até às feiras em Cascais, onde vendiam nessa altura.

“Sempre fui de trabalho”, diz a cigana que garante nunca ter visto o pai discriminar as filhas ou tratar mal a mulher. “A minha mãe, que nasceu em 1917, e o meu pai, que nasceu em 1912, nunca fizeram distinção entre homem e mulher. A minha mãe sempre acompanhou o meu pai em tudo.” Os pais casaram-se quando ambos tinham mais de 20 anos e Olga casou-se também já depois dessa idade. “Isso de que os ciganos se casam em crianças são ideias preconcebidas. Tenho um filho que se casou aos 19, outro aos 30, com uma noiva que tinha 29, e são os dois ciganos. E a minha filha casou-se com 30.” E os casamentos arranjados? “Existe aquela fábula de pedir os miúdos quando são jovens, como no tempo dos reis. Isso existe. Mas os miúdos só casam se quiserem. Casamentos arranjados não existem”, garante, dando o exemplo do neto que estava “prometido” a uma prima desde bebé, mas acabou por se casar com outra rapariga cigana, “que não tem nada a ver”.

O que a cultura condena é o namoro e Olga vê aí a explicação para muitos ciganos se juntarem ainda muito jovens. “Tenho duas tias solteiras e primas solteiras. Não somos obrigados a casar. Em 99,9%, esses casamentos jovens são porque as miúdas querem casar. Há muito choro e tristeza quando as filhas se casam mais jovens”, garante.

Enquanto esteve casada, Olga Mariano fez a vida nas feiras. “Uma vida dura, ao sol e à chuva, a montar a barraca.” E indigna-se com quem acha que essa é uma ocupação para quem foge a obrigações. “Sempre fiz os meus descontos e paguei as minhas contribuições e o espaço da banca e os artigos. Comprei a carrinha, aluguei a minha casa, depois comprei uma casa. Sempre paguei tudo, como todos os portugueses. Não é nada de mais. Diria que 50% dos ciganos têm tudo certinho. E que, entre os 50% que não têm, talvez 80% sejam crianças. Não cumprir não é coisa de ser cigano ou não cigano. É de bom ou mau carácter.”

A vida mudou há 30 anos quando o marido morreu. Na cultura cigana, a mulher, que tem direito a uma espécie de “última palavra” no casal e que – ao contrário do homem – pode pedir o divórcio por não se sentir feliz, perde estatuto social quando passa a viúva. Mas Olga não se resignou a isso. Começou aí uma vida de ativismo (é a presidente da Associação Letras Nómadas e da Agarrar Eventos) e voltou aos estudos para se formar como mediadora sociocultural e formadora. Trabalhou em escolas e na Câmara Municipal do Seixal, estudou em Estrasburgo, deu formação e é hoje trabalhadora da Junta de Freguesia da Ajuda e deputada municipal pelo PS em Almada. Diz que levou “muita pancada de todos os lados” para se afirmar, mas acredita que é hoje uma das vozes mais respeitadas no povo cigano, porque também não gosta que se diga que há uma comunidade cigana.

“Existem várias comunidades ciganas. São muito diversas, com vários meios socioeconómicos. Os ciganos só têm três pontos em comum: o luto, o casamento e as leis de apaziguamento, que servem para os homens mais velhos resolverem pequenos conflitos em comunidade.” Um dos grandes valores ciganos é o respeito pelos mais velhos, outro é a família. “Para o povo cigano, a idade é sabedoria, uma sabedoria que tem grande valor porque é vivida. E as mulheres têm um grande papel. Os maridos não fazem nada sem o aconselhamento da mulher.” Ainda assim, Olga Mariano fez da sua vida e de parte da sua poesia uma luta pela igualdade de género. “A viúva deixa de ter papel relevante na sociedade. Isso para mim não tinha lógica. Tive de me impor no meu direito de mulher. Passados estes anos, os homens já vêm pedir para eu fazer parte de projetos e reuniões. Conquistei isso para as minhas mulheres”, diz, orgulhosa.

“Andrezito tem de cumprir a lei”

Bruno Gonçalves, de 49 anos, tem sido um companheiro de luta de Olga Mariano na Associação Letras Nómadas, que se dedica a incentivar ciganos a prosseguir os estudos e já conseguiu, desde 2014, que 40 ciganos e ciganas – há sempre a preocupação da paridade – acabassem uma licenciatura e 12 fizessem o mestrado, através de um programa de bolsas. Quando começou com este projeto, Bruno só tinha o 12º ano, mas a mulher resolveu inscrevê-lo no exame de acesso ao Ensino Superior para maiores de 18 anos. Entrou no Politécnico de Coimbra e licenciou-se em Animação Socioeducativa, sem perder um ano, apesar de ter de trabalhar de dia e estudar à noite.

“Entretanto, já fiz uma pós-graduação e agora quero fazer um mestrado, mas ainda não apanhei coragem”, confessa, explicando que só as dificuldades económicas o fizeram adiar os estudos. “Sou filho de um pai analfabeto. A minha mãe estudou até ao 6º ano. O meu pai sentia muita tristeza por não poder ajudar-nos na escola. Fui voluntariamente à escola. Não havia cá RSI”, diz, notando que este ano se formou um cigano em Medicina, “com bolsa de mérito da Gulbenkian”, e que há ciganos atores – como Henrique Barbosa, protagonista do filme Entroncamento – e até “um jurista na Câmara Municipal de Coimbra, responsável pela contratação pública”. A vida das feiras é dura e “cada vez mais há famílias a apostar na escolarização como elevador social”. Mas o estigma ainda pesa.

“O anticiganismo é uma forma de racismo. Grande parte destes jovens está no mercado de trabalho, mas diria que uns 70% não podem dizer que são ciganos. Como grande parte já não tem os traços físicos, vivem numa clandestinidade étnica. Ainda ontem falei com um cigano com 40 e tal anos, que está no Exército, e só agora decidiu assumir a sua identidade”, conta Bruno, revelando que muitos jovens apagam as redes sociais quando querem encontrar um trabalho para evitar alguma publicação que os denuncie como ciganos, se o departamento de recursos humanos fizer uma pesquisa.

Segundo dados do INE de 2024, 72,6% dos ciganos fazem parte dos 20% da população com rendimentos mais baixos. A isso não deve ser alheia a discriminação no mercado de trabalho, que faz com que muitos façam vida da venda ambulante ou apenas consigam empregos através de protocolos com o IEFP, muitas vezes para Juntas de Freguesia. Bruno Gonçalves diz que o aparecimento de empresas de TVDE, como a Uber e a Bolt, veio dar outras oportunidades de trabalho, porque “o patrão é a plataforma e não discrimina”, mas há também relatos de ciganos portugueses a imigrar, por exemplo, para o Reino Unido, onde fazem trabalhos sazonais agropecuários ou ficam como trabalhadores em fábricas ou armazéns.

Bruno Gonçalves divide o País em dois quando fala do povo cigano. “No Sul as coisas são mais complicadas. Há guetos, criados por políticas de habitação horríveis. O Centro e o Norte são menos agrestes para as comunidades ciganas. Quando há guetos, as coisas são mais complicadas.” Mas, sobretudo, divide a história recente da discriminação num antes e num depois de André Ventura. “As coisas estão muito mais complicadas desde 2017.” E, para Gonçalves, isso só tem explicação no oportunismo político. “Somos perto de 70 mil. É uma comunidade muito pequenina. Espanha tem um milhão de ciganos e, por isso, o Vox não se mete muito com eles. Na Andaluzia são 8% da população, podem definir eleições”, analisa, assumindo que não teve uma hesitação em procurar a ajuda jurídica de Ricardo Sá Fernandes para interpor uma ação que obrigasse Ventura a retirar os cartazes, depois de dias a responder a chamadas e mensagens de ciganos indignados com o racismo da mensagem dos outdoors.

“O Andrezito tem de cumprir a lei. Por muito que haja um milhão e meio que votaram nele, isto não é a república das bananas. Ele tem de cumprir a lei”, afirma, indignado, consciente de que mesmo uma vitória nos tribunais não vai enterrar a discriminação nem diminuir o apoio ao Chega. “Ser anticigano vai continuar a ser popular. É o campeonato da pobreza. São os mais pobres que votam no Chega e 78% das comunidades ciganas vivem na extrema pobreza. Os ciganos vivem menos dez anos do que a média nacional. É uma competição entre pobres para ver quem não desce de divisão”, comenta.

Despertar para a política

“O Chega não é um problema nosso”, declara Paulo Domingos, 58 anos, presidente da Plataforma Nacional para os Direitos dos Ciganos e um dos seis autores da ação judicial para retirar os cartazes. “O que está em causa não é uma etnia, é a Humanidade. Hoje são os ciganos, mas amanhã podem ser as mulheres, os pobres, os judeus, os jornalistas. O que pretendemos é impor um limite moral. Não tenho nada contra André Ventura. Sou um cristão. Tenho é contra o que ele faz e diz, que é tirar a dignidade ao povo cigano”, afirma à VISÃO o homem que no dia 6 de novembro encheu um auditório em Carnide para o Primeiro Congresso do Povo Cigano em Portugal. Lá dentro havia 150 lugares sentados, mas muitos ficaram de pé e outros ainda tiveram de ficar à porta, por a lotação estar esgotada.

Paulo admite que a adesão o surpreendeu. “Achei que não ia encher a casa. Reunimo-nos em festas ou casamentos ou nas igrejas evangélicas, mas não para falar de temas políticos.” Falou durante duas horas, mas garante que no fim “falaram homens e mulheres”, num evento que tinha como propósito ajudar o povo cigano a tomar “consciência do seu papel social e político”. Apesar do objetivo, Paulo Domingos assegura que a sua plataforma não tem pretensões ligadas a partidos ou ideologias. “Não tenho uma ideologia política estruturada. A Plataforma não está agregada a nenhum partido nem pretende estar”, assegura, explicando que neste Congresso conheceu “ciganos que estão com cargos em empresas ou ligados ao Estado, com nível intelectual e formação” e que só esse encontro já pode servir de semente para uma maior intervenção social do povo cigano em Portugal no futuro. “O que nos falta é a união. Não estamos habituados culturalmente a ter esta união”, admite, defendendo uma “maior abertura à sociedade” para desconstruir mitos e ideias feitas.

Criado como “um nómada moderno, não daqueles de burro e carroça, mas que viajavam de avião e tinham os carros da moda”, passando por vários países na infância e sempre acarinhado pelos anciãos dos lugares por onde passava, Paulo Domingos não se sentou nos bancos da escola e só aprendeu a ler e a escrever já adolescente, numa altura em que lhe interessava aproximar-se de raparigas não ciganas da sua idade. “Comecei a perceber que tinha um atraso em relação a quem não era cigano, que era não saber ler. Depois, quis aprender a falar bonito. Li tudo e mais alguma coisa.” O seu percurso de vida foi atribulado, mas sempre guiado pelo valor mais importante para qualquer cigano: a liberdade.

O primeiro emprego foi como vendedor numa empresa de produtos químicos. O diretor do departamento que o contratou era o único que sabia da sua origem. O patrão, um judeu, só descobriu que Paulo era cigano quando o chamou por ser o melhor vendedor da empresa. “Aprendemos a vender no útero da mãe”, brincou. Era tão bom, que o departamento de encomendas não conseguia dar vazão às vendas angariadas por Paulo. Por isso, o patrão deu-lhe um carro para ser ele a fazer as entregas. Foi subindo na empresa, até se desinteressar. Procurava a novidade.

Quando se casou, tinha 24 anos, a mulher tinha 23 e já tinha carta de condução. Ela era de uma família de feirantes e Paulo quis experimentar essa vida. Passados uns tempos, voltou a mudar e dedicou-se à consultadoria de empresas. “O que mais gostei de fazer foi consultoria empresarial, a desenvolver produtos e serviços. Já fazia isso sem saber o nome. Era um craque na minha área. Mas também fui vendedor de automóveis e angariador de imobiliário.” A vida correu-lhe bem, fez muito dinheiro. Mas as coisas mudaram quando, há 12 anos, perdeu um filho. Entrou numa depressão profunda, não conseguia sair de casa. E a mulher teve de voltar às feiras. A forma como a comunidade cigana que o rodeava o ajudou e a conversão ao cristianismo fizeram-no começar a voltar à vida e perceber que tinha de lançar a Plataforma, na qual uma das suas filhas, Maiara Domingos (outra das autoras da queixa para a retirada dos cartazes), é vice-presidente.

“A Plataforma é um projeto nacional. Já tenho delegados regionais. E muita coisa vai mudar depois deste primeiro Congresso Cigano. Acredito verdadeiramente que este foi o princípio de algo novo. Mas este trabalho não pode ser feito só com ciganos”, argumenta. Uma das coisas que fizeram com que avançasse para a ação judicial foi, aliás, a forma como não se levantou um coro de indignação perante uma mensagem racista contra os ciganos. “Nem o poder político nem o poder judicial vieram defender a nossa honra. A liberdade de expressão não pode ser usada como arma de desumanização. O que me fez avançar foi a colocação dos cartazes e a falta de uma voz que nos defendesse.”

Ciganos que morreram por Portugal

A 1 de dezembro de 2022, Marcelo Rebelo de Sousa fez algo inédito: usou o Dia da Restauração da Independência de Portugal para fazer um agradecimento histórico aos ciganos.“Ao lembrar tantos portugueses, de tantas origens, que se envolveram no movimento revolucionário, o Presidente da República quer lembrar também os portugueses de etnia cigana que, como reconheceu então o próprio rei D. João IV, deram a vida pela nossa independência nacional”, escreveu no site da Presidência. Foi a primeira homenagem pública ao “cavaleiro fidalgo” Jerónimo da Costa e a “muitos dos duzentos e cinquenta outros ciganos que serviram nas fronteiras e tombaram por Portugal”.

Este ano, Marcelo usou o Dia do Cigano, 8 de abril, para reforçar a importância da integração deste povo. Mas o Governo de Luís Montenegro deixou na gaveta a nova Estratégia Nacional para a Integração das Comunidades Ciganas, que está para consulta pública há mais de um ano."

Texto de Margarida Davim na Revista Visão. Fotos de Luís Barra e Lucília Monteiro

https://visao.pt/.../2025-11-15-os-ciganos-que-fazem.../

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