* Margarida Davim
"Bruno Gonçalves e Paulo Domingos são dois dos seis ciganos que vão a tribunal exigir a retirada dos cartazes racistas. Olga Mariano é uma das oito testemunhas. As suas histórias desmontam ideias feitas e dão corpo a um povo perseguido que, mais de 500 anos depois de chegar a Portugal, ainda tem de reivindicar a sua portugalidade", escreve Margarida Davim na Visão.
Olga Mariano
hesita em falar. “Não quero dar mais palha a André Ventura. Ele quer usar-nos
como uma escada para subir.” Mas o seu testemunho é importante. Aos 75 anos,
poeta publicada, Olga confunde os últimos 27 anos da sua vida com o
associativismo cigano e com a defesa da igualdade de género “para ciganos e não
ciganos”. E é também por isso que o seu nome está entre as oito testemunhas
indicadas pelo advogado Ricardo Sá Fernandes, na ação especial de tutela de
personalidade, interposta por seis ciganos que querem obrigar Ventura a retirar
os cartazes em que diz que “os ciganos devem cumprir a lei”, deixando claro que
a liberdade de expressão não serve para promover a discriminação. “Como
portuguesa que sou, sinto-me vandalizada na minha portugalidade. Ser cigano é
uma cultura. Não admito a ninguém que deite abaixo a minha nacionalidade. A
minha bandeira é a portuguesa. Dou voz a milhares de portugueses com uma
cultura chamada cigana”, concede finalmente Olga.
Na verdade, não
há muitos ciganos em Portugal. Estima-se que sejam entre 50 e 70 mil, e quem
pertence à etnia que chegou a Portugal por volta de 1462 garante que não se
deve falar em “comunidade cigana”, mas sim em “povo cigano”. “Não somos uma
comunidade. Somos diferentes comunidades que fazem parte de um povo. É preciso
conhecer”, diz Paulo Domingos, um dos autores da ação e presidente da
Plataforma Nacional para os Direitos dos Ciganos. Mas voltemos a Olga Mariano
para perceber como dentro deste povo há percursos e vidas diferentes, ainda que
com uma cultura em comum. “Eu posso ser tudo o que eu quiser sem deixar de ser
quem sou”, diz Olga, que foi a primeira mulher cigana a ter carta de condução
em Portugal, ainda nos anos 1960, com o País mergulhado em ditadura e os
direitos das mulheres longe de estarem garantidos.
A primeira
cigana a ter carta
Olga nasceu
numa família que, por ter casa própria no Alentejo, conseguiu escapar ao
nomadismo forçado, incentivado por uma lei que só deixou de estar em vigor em
1985 e que decretava que a GNR devia manter uma vigilância apertada aos
nómadas, leia-se ciganos, que, apesar de terem obtido a cidadania portuguesa em
1822, foram perseguidos em Portugal ao longo dos séculos. Não ser nómada
permitiu a Olga Mariano, às suas duas irmãs e ao seu irmão fazerem a quarta
classe. “Os meus pais sempre lutaram para que os filhos tivessem o quarto ano.”
Ir além disso era economicamente impossível, mas depois de o pai deixar o
Alentejo, onde era tratador de equídeos, e rumar ao Fogueteiro em busca de
trabalho, Olga deu por si a ser fundamental para a família. Como foi a primeira
a concluir os estudos, era a única que podia ter a carta de condução e, por
isso, aquela que podia guiar a carrinha da família até às feiras em Cascais,
onde vendiam nessa altura.
“Sempre fui de
trabalho”, diz a cigana que garante nunca ter visto o pai discriminar as filhas
ou tratar mal a mulher. “A minha mãe, que nasceu em 1917, e o meu pai, que
nasceu em 1912, nunca fizeram distinção entre homem e mulher. A minha mãe
sempre acompanhou o meu pai em tudo.” Os pais casaram-se quando ambos tinham
mais de 20 anos e Olga casou-se também já depois dessa idade. “Isso de que os
ciganos se casam em crianças são ideias preconcebidas. Tenho um filho que se
casou aos 19, outro aos 30, com uma noiva que tinha 29, e são os dois ciganos.
E a minha filha casou-se com 30.” E os casamentos arranjados? “Existe aquela
fábula de pedir os miúdos quando são jovens, como no tempo dos reis. Isso
existe. Mas os miúdos só casam se quiserem. Casamentos arranjados não existem”,
garante, dando o exemplo do neto que estava “prometido” a uma prima desde bebé,
mas acabou por se casar com outra rapariga cigana, “que não tem nada a ver”.
O que a cultura
condena é o namoro e Olga vê aí a explicação para muitos ciganos se juntarem
ainda muito jovens. “Tenho duas tias solteiras e primas solteiras. Não somos
obrigados a casar. Em 99,9%, esses casamentos jovens são porque as miúdas
querem casar. Há muito choro e tristeza quando as filhas se casam mais jovens”,
garante.
Enquanto esteve
casada, Olga Mariano fez a vida nas feiras. “Uma vida dura, ao sol e à chuva, a
montar a barraca.” E indigna-se com quem acha que essa é uma ocupação para quem
foge a obrigações. “Sempre fiz os meus descontos e paguei as minhas contribuições
e o espaço da banca e os artigos. Comprei a carrinha, aluguei a minha casa,
depois comprei uma casa. Sempre paguei tudo, como todos os portugueses. Não é
nada de mais. Diria que 50% dos ciganos têm tudo certinho. E que, entre os 50%
que não têm, talvez 80% sejam crianças. Não cumprir não é coisa de ser cigano
ou não cigano. É de bom ou mau carácter.”
A vida mudou há
30 anos quando o marido morreu. Na cultura cigana, a mulher, que tem direito a
uma espécie de “última palavra” no casal e que – ao contrário do homem – pode
pedir o divórcio por não se sentir feliz, perde estatuto social quando passa a
viúva. Mas Olga não se resignou a isso. Começou aí uma vida de ativismo (é a
presidente da Associação Letras Nómadas e da Agarrar Eventos) e voltou aos
estudos para se formar como mediadora sociocultural e formadora. Trabalhou em
escolas e na Câmara Municipal do Seixal, estudou em Estrasburgo, deu formação e
é hoje trabalhadora da Junta de Freguesia da Ajuda e deputada municipal pelo PS
em Almada. Diz que levou “muita pancada de todos os lados” para se afirmar, mas
acredita que é hoje uma das vozes mais respeitadas no povo cigano, porque
também não gosta que se diga que há uma comunidade cigana.
“Existem várias
comunidades ciganas. São muito diversas, com vários meios socioeconómicos. Os
ciganos só têm três pontos em comum: o luto, o casamento e as leis de
apaziguamento, que servem para os homens mais velhos resolverem pequenos
conflitos em comunidade.” Um dos grandes valores ciganos é o respeito pelos
mais velhos, outro é a família. “Para o povo cigano, a idade é sabedoria, uma
sabedoria que tem grande valor porque é vivida. E as mulheres têm um grande
papel. Os maridos não fazem nada sem o aconselhamento da mulher.” Ainda assim,
Olga Mariano fez da sua vida e de parte da sua poesia uma luta pela igualdade
de género. “A viúva deixa de ter papel relevante na sociedade. Isso para mim
não tinha lógica. Tive de me impor no meu direito de mulher. Passados estes
anos, os homens já vêm pedir para eu fazer parte de projetos e reuniões.
Conquistei isso para as minhas mulheres”, diz, orgulhosa.
“Andrezito tem
de cumprir a lei”
Bruno
Gonçalves, de 49 anos, tem sido um companheiro de luta de Olga Mariano na
Associação Letras Nómadas, que se dedica a incentivar ciganos a prosseguir os
estudos e já conseguiu, desde 2014, que 40 ciganos e ciganas – há sempre a
preocupação da paridade – acabassem uma licenciatura e 12 fizessem o mestrado,
através de um programa de bolsas. Quando começou com este projeto, Bruno só
tinha o 12º ano, mas a mulher resolveu inscrevê-lo no exame de acesso ao Ensino
Superior para maiores de 18 anos. Entrou no Politécnico de Coimbra e
licenciou-se em Animação Socioeducativa, sem perder um ano, apesar de ter de
trabalhar de dia e estudar à noite.
“Entretanto, já
fiz uma pós-graduação e agora quero fazer um mestrado, mas ainda não apanhei
coragem”, confessa, explicando que só as dificuldades económicas o fizeram
adiar os estudos. “Sou filho de um pai analfabeto. A minha mãe estudou até ao
6º ano. O meu pai sentia muita tristeza por não poder ajudar-nos na escola. Fui
voluntariamente à escola. Não havia cá RSI”, diz, notando que este ano se
formou um cigano em Medicina, “com bolsa de mérito da Gulbenkian”, e que há
ciganos atores – como Henrique Barbosa, protagonista do filme Entroncamento – e
até “um jurista na Câmara Municipal de Coimbra, responsável pela contratação
pública”. A vida das feiras é dura e “cada vez mais há famílias a apostar na
escolarização como elevador social”. Mas o estigma ainda pesa.
“O
anticiganismo é uma forma de racismo. Grande parte destes jovens está no
mercado de trabalho, mas diria que uns 70% não podem dizer que são ciganos.
Como grande parte já não tem os traços físicos, vivem numa clandestinidade
étnica. Ainda ontem falei com um cigano com 40 e tal anos, que está no
Exército, e só agora decidiu assumir a sua identidade”, conta Bruno, revelando
que muitos jovens apagam as redes sociais quando querem encontrar um trabalho
para evitar alguma publicação que os denuncie como ciganos, se o departamento
de recursos humanos fizer uma pesquisa.
Segundo dados
do INE de 2024, 72,6% dos ciganos fazem parte dos 20% da população com
rendimentos mais baixos. A isso não deve ser alheia a discriminação no mercado
de trabalho, que faz com que muitos façam vida da venda ambulante ou apenas
consigam empregos através de protocolos com o IEFP, muitas vezes para Juntas de
Freguesia. Bruno Gonçalves diz que o aparecimento de empresas de TVDE, como a
Uber e a Bolt, veio dar outras oportunidades de trabalho, porque “o patrão é a
plataforma e não discrimina”, mas há também relatos de ciganos portugueses a
imigrar, por exemplo, para o Reino Unido, onde fazem trabalhos sazonais
agropecuários ou ficam como trabalhadores em fábricas ou armazéns.
Bruno Gonçalves
divide o País em dois quando fala do povo cigano. “No Sul as coisas são mais
complicadas. Há guetos, criados por políticas de habitação horríveis. O Centro
e o Norte são menos agrestes para as comunidades ciganas. Quando há guetos, as
coisas são mais complicadas.” Mas, sobretudo, divide a história recente da
discriminação num antes e num depois de André Ventura. “As coisas estão muito
mais complicadas desde 2017.” E, para Gonçalves, isso só tem explicação no
oportunismo político. “Somos perto de 70 mil. É uma comunidade muito pequenina.
Espanha tem um milhão de ciganos e, por isso, o Vox não se mete muito com eles.
Na Andaluzia são 8% da população, podem definir eleições”, analisa, assumindo
que não teve uma hesitação em procurar a ajuda jurídica de Ricardo Sá Fernandes
para interpor uma ação que obrigasse Ventura a retirar os cartazes, depois de
dias a responder a chamadas e mensagens de ciganos indignados com o racismo da
mensagem dos outdoors.
“O Andrezito
tem de cumprir a lei. Por muito que haja um milhão e meio que votaram nele,
isto não é a república das bananas. Ele tem de cumprir a lei”, afirma,
indignado, consciente de que mesmo uma vitória nos tribunais não vai enterrar a
discriminação nem diminuir o apoio ao Chega. “Ser anticigano vai continuar a
ser popular. É o campeonato da pobreza. São os mais pobres que votam no Chega e
78% das comunidades ciganas vivem na extrema pobreza. Os ciganos vivem menos
dez anos do que a média nacional. É uma competição entre pobres para ver quem
não desce de divisão”, comenta.
Despertar para
a política
“O Chega não é
um problema nosso”, declara Paulo Domingos, 58 anos, presidente da Plataforma
Nacional para os Direitos dos Ciganos e um dos seis autores da ação judicial
para retirar os cartazes. “O que está em causa não é uma etnia, é a Humanidade.
Hoje são os ciganos, mas amanhã podem ser as mulheres, os pobres, os judeus, os
jornalistas. O que pretendemos é impor um limite moral. Não tenho nada contra
André Ventura. Sou um cristão. Tenho é contra o que ele faz e diz, que é tirar
a dignidade ao povo cigano”, afirma à VISÃO o homem que no dia 6 de novembro
encheu um auditório em Carnide para o Primeiro Congresso do Povo Cigano em
Portugal. Lá dentro havia 150 lugares sentados, mas muitos ficaram de pé e
outros ainda tiveram de ficar à porta, por a lotação estar esgotada.
Paulo admite
que a adesão o surpreendeu. “Achei que não ia encher a casa. Reunimo-nos em
festas ou casamentos ou nas igrejas evangélicas, mas não para falar de temas
políticos.” Falou durante duas horas, mas garante que no fim “falaram homens e
mulheres”, num evento que tinha como propósito ajudar o povo cigano a tomar
“consciência do seu papel social e político”. Apesar do objetivo, Paulo
Domingos assegura que a sua plataforma não tem pretensões ligadas a partidos ou
ideologias. “Não tenho uma ideologia política estruturada. A Plataforma não
está agregada a nenhum partido nem pretende estar”, assegura, explicando que
neste Congresso conheceu “ciganos que estão com cargos em empresas ou ligados
ao Estado, com nível intelectual e formação” e que só esse encontro já pode
servir de semente para uma maior intervenção social do povo cigano em Portugal
no futuro. “O que nos falta é a união. Não estamos habituados culturalmente a
ter esta união”, admite, defendendo uma “maior abertura à sociedade” para
desconstruir mitos e ideias feitas.
Criado como “um
nómada moderno, não daqueles de burro e carroça, mas que viajavam de avião e
tinham os carros da moda”, passando por vários países na infância e sempre
acarinhado pelos anciãos dos lugares por onde passava, Paulo Domingos não se
sentou nos bancos da escola e só aprendeu a ler e a escrever já adolescente,
numa altura em que lhe interessava aproximar-se de raparigas não ciganas da sua
idade. “Comecei a perceber que tinha um atraso em relação a quem não era
cigano, que era não saber ler. Depois, quis aprender a falar bonito. Li tudo e
mais alguma coisa.” O seu percurso de vida foi atribulado, mas sempre guiado
pelo valor mais importante para qualquer cigano: a liberdade.
O primeiro
emprego foi como vendedor numa empresa de produtos químicos. O diretor do
departamento que o contratou era o único que sabia da sua origem. O patrão, um
judeu, só descobriu que Paulo era cigano quando o chamou por ser o melhor
vendedor da empresa. “Aprendemos a vender no útero da mãe”, brincou. Era tão
bom, que o departamento de encomendas não conseguia dar vazão às vendas
angariadas por Paulo. Por isso, o patrão deu-lhe um carro para ser ele a fazer
as entregas. Foi subindo na empresa, até se desinteressar. Procurava a
novidade.
Quando se
casou, tinha 24 anos, a mulher tinha 23 e já tinha carta de condução. Ela era
de uma família de feirantes e Paulo quis experimentar essa vida. Passados uns
tempos, voltou a mudar e dedicou-se à consultadoria de empresas. “O que mais
gostei de fazer foi consultoria empresarial, a desenvolver produtos e serviços.
Já fazia isso sem saber o nome. Era um craque na minha área. Mas também fui
vendedor de automóveis e angariador de imobiliário.” A vida correu-lhe bem, fez
muito dinheiro. Mas as coisas mudaram quando, há 12 anos, perdeu um filho.
Entrou numa depressão profunda, não conseguia sair de casa. E a mulher teve de
voltar às feiras. A forma como a comunidade cigana que o rodeava o ajudou e a
conversão ao cristianismo fizeram-no começar a voltar à vida e perceber que
tinha de lançar a Plataforma, na qual uma das suas filhas, Maiara Domingos
(outra das autoras da queixa para a retirada dos cartazes), é vice-presidente.
“A Plataforma é
um projeto nacional. Já tenho delegados regionais. E muita coisa vai mudar
depois deste primeiro Congresso Cigano. Acredito verdadeiramente que este foi o
princípio de algo novo. Mas este trabalho não pode ser feito só com ciganos”,
argumenta. Uma das coisas que fizeram com que avançasse para a ação judicial
foi, aliás, a forma como não se levantou um coro de indignação perante uma
mensagem racista contra os ciganos. “Nem o poder político nem o poder judicial
vieram defender a nossa honra. A liberdade de expressão não pode ser usada como
arma de desumanização. O que me fez avançar foi a colocação dos cartazes e a
falta de uma voz que nos defendesse.”
Ciganos que
morreram por Portugal
A 1 de dezembro
de 2022, Marcelo Rebelo de Sousa fez algo inédito: usou o Dia da Restauração da
Independência de Portugal para fazer um agradecimento histórico aos ciganos.“Ao
lembrar tantos portugueses, de tantas origens, que se envolveram no movimento revolucionário,
o Presidente da República quer lembrar também os portugueses de etnia cigana
que, como reconheceu então o próprio rei D. João IV, deram a vida pela nossa
independência nacional”, escreveu no site da Presidência. Foi a primeira
homenagem pública ao “cavaleiro fidalgo” Jerónimo da Costa e a “muitos dos
duzentos e cinquenta outros ciganos que serviram nas fronteiras e tombaram por
Portugal”.
Este ano,
Marcelo usou o Dia do Cigano, 8 de abril, para reforçar a importância da
integração deste povo. Mas o Governo de Luís Montenegro deixou na gaveta a nova
Estratégia Nacional para a Integração das Comunidades Ciganas, que está para
consulta pública há mais de um ano."
Texto de
Margarida Davim na Revista
Visão. Fotos de Luís Barra e Lucília Monteiro
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"O trabalho é mais importante e é independente do capital. O capital é apenas o fruto do trabalho, e não existiria sem ele. O trabalho é superior ao capital e merece a consideração mais elevada." (Lincoln, Presidente dos EUA)