Em 2024, o jornalista António Valdemar afirmou que a biografia de Camões escrita por Aquilino Ribeiro é um livro político, cujo significado terá de ser aferido em função das lutas contra o Estado Novo. A declaração veio reavivar o debate sobre a politização do poeta
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05 junho 2025
Diogo Ramada Curto
Historiador,
diretor da Biblioteca Nacional
Num fim de
tarde de uma sexta-feira de outono, na Biblioteca Nacional, António Valdemar
impressionou a pequena audiência ali reunida. O decano dos jornalistas
portugueses e homem de letras de evidentes dotes oratórios afirmou que a
biografia de Camões escrita por Aquilino Ribeiro é, acima de tudo, um livro
político, cujo significado terá de ser aferido em função das lutas contra o
Estado Novo. Ao pôr o dedo na ferida, Valdemar advertiu que o livro intitulado
“Camões: Fabuloso — Verdadeiro” (1950), tal como a coletânea “Camões, Camilo e
Eça e Alguns Mais: Ensaios de Crítica Histórico-Literária” (1949) precisam de
ser entendidos como gestos de oposição política a Salazar.
Proferidas de
modo perentório, no lançamento da nova edição, pela Bertrand, de “Camões:
Fabuloso — Verdadeiro”, as palavras de Valdemar resumiram o prefácio que ele
mesmo escreveu para esta reedição. Pela sua coragem, própria de quem não receia
ir contracorrente, mas também pela sua objetividade em saber articular
literatura e política, as palavras de Valdemar são importantes.
Será impossível
desligar a referida biografia de Camões, bem como a miscelânea de ensaios
críticos de Aquilino, desse momento constituído pela campanha eleitoral de
apoio ao general Norton de Matos. A esse quadro político pertencem as denúncias
de Aquilino em relação a um Camões que a cultura oficial queria reduzir a
símbolo de um culto patrioteiro, simbolizado no gosto e nas relações
aristocráticas ou palacianas. Tal como se o poeta pudesse ser membro da União
Nacional e servir de joguete às estratégias da propaganda desenhada por
António Ferro, as quais encontravam eco no Círculo Eça de Queirós, ali ao Largo
Bordalo Pinheiro. Foi o que Aquilino escreveu na introdução à sua biografia de
Camões.
Aquilino
considerava insuportáveis os “tocadores da marimba patriótica”. E contra o
Camões afidalgado disparou: se o poeta era mesmo da fina-flor da aristocracia,
como é que se justificava que, enquanto filho único, fosse pobre como Job?
Depois, cavalgando a onda da desmistificação nacional e da crítica ao
sebastianismo, que recuava pelo menos à polémica de meados da década de 1920
entre António Sérgio e Carlos Malheiro Dias, argumentou que a atribuição ao
poeta da nobreza de sangue era mais do que dispensável para o reconhecimento
literário de Camões. Dentro da mesma operação de desmistificação, Aquilino
também se mostrou contrário à ideia de que Camões se teria enamorado de
palacianas damas da nobreza. Com base numa particular atenção às cartas
atribuídas a Camões, Aquilino nele preferiu salientar o lado arruaceiro e
brigão.
Outro aspeto,
que para Aquilino tinha igualmente uma relação direta com o seu tempo, dizia
respeito ao modo como Fr. Bartolomeu Ferreira, o “revedor” dominicano,
interveio na publicação de “Os Lusíadas”. Contrariamente ao que em 1921 tinha
defendido o padre José Maria Rodrigues, para quem “nenhumas alterações foram
[ali] feitas pela Inquisição”, Aquilino admitia que a versão impressa do poema
trazia em si marcas censórias. De resto, acentuando divergências em face das
posições assumidas por Rodrigues, Aquilino, embora julgasse a questão
“sumamente bizantina”, não deixou de defender que a primeira edição do poema
épico era a que tinha, no frontispício do livro, o pelicano virado para a
direita.
Dois
problemas subsistem
Ao politizar,
de forma frontal, o que Aquilino escreveu acerca de Camões, António Valdemar
suscitou dois problemas que precisam de ser resolvidos ou, pelo menos,
enunciados. O primeiro, mais genérico, consiste em saber como é que todos os
escritores — com direito ou não a participar do cânone ou de uma comunidade que
se imagina em função de um conjunto de obras literárias — estão sujeitos a
idêntica politização. O simples facto de serem celebrados, panteonizados ou de
passarem a fazer parte dos manuais de ensino é em si mesmo um ato político que
muitas vezes supõe escolhas interpretativas, amputações e deturpações para
servir esta ou aquela bandeira ideológica. O Estado Novo e, já antes dele, o
Integralismo, procurou arregimentar em seu abono muitos autores do século XIX e
não só, pondo-os ao serviço de uma bandeira conservadora. Na contramão da
cultura oficial, Aquilino e outros estudiosos, tais como Óscar Lopes, Jorge de
Sena e António José Saraiva, procuraram salvar Camões desses usos políticos.
Mas fizeram-no recorrendo a uma dupla estratégia, que esconde o segundo
problema que se encontra por resolver.
Por um lado, ao
Camões nobre e aristocrático, cortesão e vivendo debaixo da proteção régia, os
estudiosos democratas e republicanos opuseram o carácter mais popular, boémio,
aventureiro, arruaceiro e até pobretana do poeta. Claro que a ideia tinha
raízes em representações anteriores, tal como me fez notar Isabel Almeida, a
pobreza de Camões foi melodramaticamente exacerbada no século XIX, além de
ensombrar desde cedo o seu retrato, doente e morrendo na miséria; obrigado a
viver de uma “tencinha”, como dissera Pedro de Mariz, ou desgraçado pela
fortuna, que o privava de seus bens, como escreveu Diogo do Couto.
De notar que,
nos meios da oposição, a denúncia da mania de atribuir fidalguia a homens
ilustres do passado estava generalizada, e o próprio Aquilino já a tinha feito
anteriormente, a propósito de Santo António de Lisboa, quando topou, e bem, que
deste princípio, aceite dogmaticamente entre nós, derivava “a canonização laica
de Camões” (“Por Obra e Graça”, 1940). Por outro lado, os mesmos estudiosos
recentraram a obra de Camões em relação à autonomia do discurso poético e
literário, justamente para não cair no topete da cultura oficial, que procurou
a todo o custo arregimentar Camões e a sua obra para o referido culto
patrioteiro. Ora, é precisamente a autonomia e historicidade do discurso
poético e literário que fica de fora quando se politiza a figura de Camões e se
politizam as obras que sobre ele (mais do que sobre o que escreveu) incidiram.
Aquilino
considerava insuportáveis os “tocadores da marimba patriótica”. E contra o
Camões afidalgado disparou: se o poeta era da fina-flor da aristocracia, como
se justificava que fosse pobre como Job?
Logo em 1951,
Jorge de Sena foi quem melhor denunciou a constante evocação do “cantor de ‘Os
Lusíadas’ para fins beneméritos de embófia cívica”. Camões era, então, posto ao
serviço de um “leitor patrioticamente interesseiro”, sendo por isso deplorável
“todo o patrioteirismo sebastianista com que o seu lídimo génio tem sido
enxovalhado”. Sena foi mais longe ao especificar que esse culto cívico e
patrioteiro procedia de “tantas e tão variadas comemorações, centenários,
cortejos e conferências”, nos quais “sempre se fala da Fé e do Império, da
Independência e da Raça, da glória e da sabedoria, do que de facto possuímos e
da árvore das patacas que ainda julgamos possuir”. Neste sentido, também para
Sena pareciam deploráveis estes usos (ou abusos) de Camões — posto ao serviço
dos projetos imperiais e de um nacionalismo oficial, num “país de notabilidades
às dúzias”, onde “tantas são as figuras e os factos comemorados
quotidianamente” —, que nos impediam de falar do poeta, do grande poeta que
Camões foi, votando ao desprezo a “leitura atenta dos seus versos, que são tudo
o que nos resta dele”.
É certo que
Sena não pretendeu escrever nenhuma biografia de Camões, e, tal como muitos
outros, considerou mesmo inútil investir a sua atenção nos aspetos biográficos.
O que estava em causa, na opinião de um dos maiores estudiosos de Camões do
século XX, era a perceção do ato poético, sobretudo, a criatividade do poeta.
Uma criatividade que, claro está, correspondia a quadros, linguagens,
estruturas e condições que transcendiam o próprio autor. Assim sucedia com os
usos do petrarquismo e do platonismo, com a inspiração nos trabalhos de
historiadores que o antecederam, com os posicionamentos e modos de inovação em
relação aos géneros literários, a começar pela épica, sem esquecer os registos
mais chocarreiros. A intuição poética nunca poderia transcender os limites
impostos por tais quadros, para além de manter uma relação, difícil de reduzir
a um sistema de causalidade, com a experiência de vida de Camões em Portugal,
no Norte de África ou na Ásia. De qualquer modo, o que para Sena era urgente
compreender na leitura da obra de Camões era a sua dimensão intuitiva e
criativa.
Por exemplo,
Sena considerou que o sucesso de “Os Lusíadas”, enquanto poema épico, nada
tinha que ver com a “cantoria que a retórica balofa se esforça para extrair”
dele. Para Sena, o mais importante e o que explicava até o sucesso dessa épica
é que se tratava de “um êxito por contradição”. A ponto de se poder dizer que o
que mais contou para sua popularidade foi “a narração amplificada e
amplificadora das glórias nacionais [...], por contraste, e porque, a cada
passo, surgem aqueles trechos candentes de juízo final”. Seria, pois, à luz de
tais contradições, que punham em causa as glórias do canto épico, numa espécie
de registo a várias vozes e rasgado por oposições, que importaria ler “Os
Lusíadas”.
No âmbito de um
novo ciclo comemorativo em torno de Camões, a questão de se saber ao certo como
se deve e pode ler a sua obra, a começar por “Os Lusíadas”, afigura-se crucial.
Antes de mais, há que reconhecer que estamos longe da necessidade de contrapor
a um Camões oficial e caracterizado pelos seus dotes nobres e aristocráticos,
um poeta conotado com aspetos mais baixos e populares, situado na oposição aos
poderes instituídos. Depois, se não temos de reproduzir, hoje, os sucessivos
falhanços da oposição ao Estado Novo, podemos finalmente distanciar-nos das
estratégias determinadas pelo controle, vigilância e propaganda do regime, as
quais foram construídas em função de um culto patrioteiro do poeta. É que foram
tais estratégias, mais ou menos falhadas, que levaram a uma espécie de
sublimação ou de transferência que encontraram na literatura uma esfera
autónoma de expressão de discursos livres, que não podiam ser submetidos às
lógicas do poder.
Quando António
Valdemar nos lembrou que a biografia de Camões escrita por Aquilino era um
livro essencialmente político e de oposição ao Estado Novo, fez bem. Ao fazer
essa denúncia, trouxe-nos à memória as esperanças e frustrações que muitos
escritores e intelectuais da oposição acalentaram no período posterior à
Segunda Guerra Mundial. No entanto, é de notar que a guerra cultural então
declarada não se limitava a Camões, e, entre outros escritores do passado,
também passava por Eça de Queirós.
A visita de
Salazar, em dezembro de 1945, à exposição queirosiana no Grémio Literário,
funcionou como uma resposta oficial ao que os colaboradores no “Livro
Comemorativo do Centenário de Eça de Queiroz”, publicado nesse mesmo ano,
pretenderam fazer crer. Para estes, impunha-se ler Eça de Queirós, libertando-o
das grelhas aristocráticas e conservadoras em que os representantes de uma
cultura oficial pretendiam encerrar o autor de “Os Maias”. Neste sentido, seria
necessário: atender aos processos propriamente literários, da ironia ou da
troça, a partir dos quais o escritor procurava a sua autonomia; apreciar
plenamente o sentido crítico e a liberdade queirosiana, em contraste com os
tempos persecutórios que caracterizaram o período posterior à Segunda Grande
Guerra; e, sobretudo no caso de Jaime Cortesão, mas também de Vieira de
Almeida, colocava-se com premência a questão social, cuja simples enunciação
irritava os mais afetos ao regime no poder.
Também a
Jorge de Sena pareciam deploráveis estes usos de Camões, que nos impediam de
falar do poeta, votando ao desprezo a “leitura dos seus versos, que são o que
nos resta dele”
As guerras
culturais e literárias no período posterior à Segunda Guerra Mundial incluem
muitos outros aspetos, a começar pelos que foram suscitados pela afirmação do
neorrealismo. Porém, no que respeita a Camões e à literatura quinhentista,
conviria ter em conta a existência de um tempo de intensidade exemplar
assinalado pelos ensaios de Aquilino sobre o poeta, publicados a partir de 1946
e reunidos em livro, em 1949. Quanto à biografia de Camões, não poderá ela ser
considerada uma resposta à figura idealizada por Leitão de Barros no filme que
lhe dedicou em 1946? E a representação da estátua no Largo de Camões, por Abel
Manta, em 1954 — representação na qual o poeta surge sempre de costas —, não
será um outro modo de oposição ao culto oficial de Camões? Uma espécie de
contraepopeia, como acabou por argumentar, em 1955-1956, António Sérgio, na sua
edição da “História Trágico-Marítima”, uma história de naufrágios pejada de
críticas à expansão e ao império português?
Na perspetiva
de Aquilino, tais guerras literárias eram contra o regime — no duplo sentido já
aqui exposto de oposição entre o alto e o baixo, socialmente falando, e de
defesa da autonomia do literário, enquanto espaço de autonomia criativa e de
liberdade. Por exemplo, não se esqueça o retrato que traçou das capacidades do
serrano ou montanhês: “na serra o homem estaria sempre mais a coberto do
beleguim, do homem da lei, do fidalgo, em suma da violência do forte e da
extorsão do rico”; só o vale era considerado “local pela sua natureza propício
à cilada, tornava-se o fojo dos escravos” (“O Homem da Nave”, 1954).
Mas tais
guerras culturais, incluindo aquelas que Aquilino travou em torno de Camões,
foram também travadas contra o mundo universitário, coimbrão e lisboeta. Só a
esta luz se podem compreender algumas das suas outras obras, nomeadamente,
“Abóboras no Telhado (Polémica e crítica)” e o conto ‘O Professor Intemerato e
a Gaitinha do Capador’ (“Casa do Escorpião”, 1963). Aliás, este último, uma
autêntica sátira à vida universitária, que Frederick Hesse Garcia entendeu ser
contra o padre José Maria Rodrigues, visava, na opinião de António Valdemar, um
outro estudioso de Camões e professor da Faculdade de Letras — Hernâni Cidade.
Não se estranhe, por isso, a posição intermédia que Jacinto do Prado Coelho
veio a assumir: aclamando o facto de Sena ter aderido à “veemente obra de
humanização de um ‘mito nacional’”, mas, ao mesmo tempo, considerando que “o
Camões boémio e pedinte” de Aquilino se constituíra no “exemplo mais completo
do ensaio psicológico construído fora da obra do biografado” (“A Letra e o
Leitor”, 1968).
Em suma, hoje
tal como no período que se seguiu à Segunda Guerra Mundial, existem razões de
sobra para celebrar pela leitura e perceção do génio criativo o nosso maior
poeta. Os inevitáveis riscos de politização da sua figura e da sua obra
continuam a estar presentes, tal como sabemos bem que existem modos de
autonomizar e preservar o seu carácter mais propriamente poético e literário.
No entanto, a reflexão sobre Aquilino — enquanto intérprete de Camões, ao lado
de outros críticos e estudiosos do seu tempo, situados dentro e fora da
academia e da vida universitária — deverá servir para nos lembrarmos de que o
nosso tempo não se pode confundir com o de Aquilino.
Não nos
compete, por isso, repetir apenas o que Aquilino ou Jorge de Sena, com a sua
capacidade para ler e interpretar Camões, propuseram. Não nos cabe, também,
repetir as lutas em que estiveram envolvidos. A nossa obrigação é a de saber e
conseguir situar a leitura de Camões em função dos problemas do nosso tempo —
sem nunca perder a consciência de que falamos de um poeta que viveu no século
XVI —, a começar pelos que se encontram afetos à nossa situação pós-colonial.
Da mesma forma que nos compete reconhecer que as condições de investigação em
que trabalhamos são, em boa medida, dominadas por conflitos internos à própria
academia, uma vez que a universidade ocupa, hoje, um lugar de muito maior
destaque no campo da produção cultural.
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