sábado, 7 de junho de 2025

António Valdemar - Camões, o poeta que o Estado Novo afidalgou

Em 2024, o jornalista António Valdemar afirmou que a biografia de Camões escrita por Aquilino Ribeiro é um livro político, cujo significado terá de ser aferido em função das lutas contra o Estado Novo. A declaração veio reavivar o debate sobre a politização do poeta

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05 junho 2025  

Diogo Ramada Curto

Historiador, diretor da Biblioteca Nacional

Num fim de tarde de uma sexta-feira de outono, na Biblioteca Nacional, António Valdemar impressionou a pequena audiência ali reunida. O decano dos jornalistas portugueses e homem de letras de evidentes dotes oratórios afirmou que a biografia de Camões escrita por Aquilino Ribeiro é, acima de tudo, um livro político, cujo significado terá de ser aferido em função das lutas contra o Estado Novo. Ao pôr o dedo na ferida, Valdemar advertiu que o livro intitulado “Camões: Fabuloso — Verdadeiro” (1950), tal como a coletânea “Camões, Camilo e Eça e Alguns Mais: Ensaios de Crítica Histórico-Literária” (1949) precisam de ser entendidos como gestos de oposição política a Salazar.

Proferidas de modo perentório, no lançamento da nova edição, pela Bertrand, de “Camões: Fabuloso — Verdadeiro”, as palavras de Valdemar resumiram o prefácio que ele mesmo escreveu para esta reedição. Pela sua coragem, própria de quem não receia ir contracorrente, mas também pela sua objetividade em saber articular literatura e política, as palavras de Valdemar são importantes.

Será impossível desligar a referida biografia de Camões, bem como a miscelânea de ensaios críticos de Aquilino, desse momento constituído pela campanha eleitoral de apoio ao general Norton de Matos. A esse quadro político pertencem as denúncias de Aquilino em relação a um Camões que a cultura oficial queria reduzir a símbolo de um culto patrioteiro, simbolizado no gosto e nas relações aristocráticas ou palacianas. Tal como se o poeta pudesse ser membro da União Nacio­nal e servir de joguete às estratégias da propaganda desenhada por António Ferro, as quais encontravam eco no Círculo Eça de Queirós, ali ao Largo Bordalo Pinheiro. Foi o que Aquilino escreveu na introdução à sua biografia de Camões.

 

Aquilino considerava insuportáveis os “tocadores da marimba patriótica”. E contra o Camões afidalgado disparou: se o poeta era mesmo da fina-flor da aristocracia, como é que se justificava que, enquanto filho único, fosse pobre como Job? Depois, cavalgando a onda da desmistificação nacional e da crítica ao sebastianismo, que recuava pelo menos à polémica de meados da década de 1920 entre António Sérgio e Carlos Malheiro Dias, argumentou que a atribuição ao poeta da nobreza de sangue era mais do que dispensável para o reconhecimento literário de Camões. Dentro da mesma operação de desmistificação, Aquilino também se mostrou contrário à ideia de que Camões se teria enamorado de palacianas damas da nobreza. Com base numa particular atenção às cartas atribuídas a Camões, Aquilino nele preferiu salientar o lado arruaceiro e brigão.

Outro aspeto, que para Aquilino tinha igualmente uma relação direta com o seu tempo, dizia respeito ao modo como Fr. Bartolomeu Ferreira, o “revedor” dominicano, interveio na publicação de “Os Lusíadas”. Contrariamente ao que em 1921 tinha defendido o padre José Maria Rodrigues, para quem “nenhumas alterações foram [ali] feitas pela Inquisição”, Aquilino admitia que a versão impressa do poema trazia em si marcas censórias. De resto, acentuando divergências em face das posições assumidas por Rodrigues, Aquilino, embora julgasse a questão “sumamente bizantina”, não deixou de defender que a primeira edição do poema épico era a que tinha, no frontispício do livro, o pelicano virado para a direita.

Dois problemas subsistem

Ao politizar, de forma frontal, o que Aquilino escreveu acerca de Camões, António Valdemar suscitou dois problemas que precisam de ser resolvidos ou, pelo menos, enunciados. O primeiro, mais genérico, consiste em saber como é que todos os escritores — com direito ou não a participar do cânone ou de uma comunidade que se imagina em função de um conjunto de obras literárias — estão sujeitos a idêntica politização. O simples facto de serem celebrados, panteonizados ou de passarem a fazer parte dos manuais de ensino é em si mesmo um ato político que muitas vezes supõe escolhas interpretativas, amputações e deturpações para servir esta ou aquela bandeira ideológica. O Estado Novo e, já antes dele, o Integralismo, procurou arregimentar em seu abono muitos autores do século XIX e não só, pondo-os ao serviço de uma bandeira conservadora. Na contramão da cultura oficial, Aquilino e outros estudiosos, tais como Óscar Lopes, Jorge de Sena e António José Saraiva, procuraram salvar Camões desses usos políticos. Mas fizeram-no recorrendo a uma dupla estratégia, que esconde o segundo problema que se encontra por resolver.

Por um lado, ao Camões nobre e aristocrático, cortesão e vivendo debaixo da proteção régia, os estudio­sos democratas e republicanos opuseram o carácter mais popular, boémio, aventureiro, arruaceiro e até pobretana do poeta. Claro que a ideia tinha raízes em representações anteriores, tal como me fez notar Isabel Almeida, a pobreza de Camões foi melodramaticamente exacerbada no século XIX, além de ensombrar desde cedo o seu retrato, doente e morrendo na miséria; obrigado a viver de uma “tencinha”, como dissera Pedro de Mariz, ou desgraçado pela fortuna, que o privava de seus bens, como escreveu Diogo do Couto.

De notar que, nos meios da oposição, a denúncia da mania de atribuir fidalguia a homens ilustres do passado estava generalizada, e o próprio Aquilino já a tinha feito anteriormente, a propósito de Santo António de Lisboa, quando topou, e bem, que deste princípio, aceite dogmaticamente entre nós, derivava “a canonização laica de Camões” (“Por Obra e Graça”, 1940). Por outro lado, os mesmos estudiosos recentraram a obra de Camões em relação à autonomia do discurso poético e literário, justamente para não cair no topete da cultura oficial, que procurou a todo o custo arregimentar Camões e a sua obra para o referido culto patrioteiro. Ora, é precisamente a autonomia e historicidade do discurso poético e literário que fica de fora quando se politiza a figura de Camões e se politizam as obras que sobre ele (mais do que sobre o que escreveu) incidiram.

Aquilino considerava insuportáveis os “tocadores da marimba patriótica”. E contra o Camões afidalgado disparou: se o poeta era da fina-flor da aristocracia, como se justificava que fosse pobre como Job?

Logo em 1951, Jorge de Sena foi quem melhor denunciou a constante evocação do “cantor de ‘Os Lusíadas’ para fins beneméritos de embófia cívica”. Camões era, então, posto ao serviço de um “leitor patrio­ticamente interesseiro”, sendo por isso deplorável “todo o patrioteirismo sebastianista com que o seu lídimo génio tem sido enxovalhado”. Sena foi mais longe ao especificar que esse culto cívico e patrioteiro procedia de “tantas e tão variadas comemorações, centenários, cortejos e conferências”, nos quais “sempre se fala da Fé e do Império, da Independência e da Raça, da glória e da sabedoria, do que de facto possuímos e da árvore das patacas que ainda julgamos possuir”. Neste sentido, também para Sena pareciam deploráveis estes usos (ou abusos) de Camões — posto ao serviço dos projetos imperiais e de um nacionalismo oficial, num “país de notabilidades às dúzias”, onde “tantas são as figuras e os factos comemorados quotidianamente” —, que nos impediam de falar do poeta, do grande poeta que Camões foi, votando ao desprezo a “leitura atenta dos seus versos, que são tudo o que nos resta dele”.

É certo que Sena não pretendeu escrever nenhuma biografia de Camões, e, tal como muitos outros, considerou mesmo inútil investir a sua atenção nos aspetos biográficos. O que estava em causa, na opinião de um dos maiores estudiosos de Camões do século XX, era a perceção do ato poético, sobretudo, a criatividade do poeta. Uma criatividade que, claro está, correspondia a quadros, linguagens, estruturas e condições que transcendiam o próprio autor. Assim sucedia com os usos do petrarquismo e do platonismo, com a inspiração nos trabalhos de historiadores que o antecederam, com os posicionamentos e modos de inovação em relação aos géneros literários, a começar pela épica, sem esquecer os registos mais chocarreiros. A intuição poética nunca poderia transcender os limites impostos por tais quadros, para além de manter uma relação, difícil de reduzir a um sistema de causalidade, com a experiência de vida de Camões em Portugal, no Norte de África ou na Ásia. De qualquer modo, o que para Sena era urgente compreender na leitura da obra de Camões era a sua dimensão intuitiva e criativa.

Por exemplo, Sena considerou que o sucesso de “Os Lusíadas”, enquanto poema épico, nada tinha que ver com a “cantoria que a retórica balofa se esforça para extrair” dele. Para Sena, o mais importante e o que explicava até o sucesso dessa épica é que se tratava de “um êxito por contradição”. A ponto de se poder dizer que o que mais contou para sua popularidade foi “a narração amplificada e amplificadora das glórias nacionais [...], por contraste, e porque, a cada passo, surgem aqueles trechos candentes de juízo final”. Seria, pois, à luz de tais contradições, que punham em causa as glórias do canto épico, numa espécie de registo a várias vozes e rasgado por oposições, que importaria ler “Os Lusíadas”.

 

No âmbito de um novo ciclo comemorativo em torno de Camões, a questão de se saber ao certo como se deve e pode ler a sua obra, a começar por “Os Lusíadas”, afigura-se crucial. Antes de mais, há que reconhecer que estamos longe da necessidade de contrapor a um Camões oficial e caracterizado pelos seus dotes nobres e aristocráticos, um poeta conotado com aspetos mais baixos e populares, situado na oposição aos poderes instituídos. Depois, se não temos de reproduzir, hoje, os sucessivos falhanços da oposição ao Estado Novo, podemos finalmente distanciar-nos das estratégias determinadas pelo controle, vigilância e propaganda do regime, as quais foram construídas em função de um culto patrioteiro do poeta. É que foram tais estratégias, mais ou menos falhadas, que levaram a uma espécie de sublimação ou de transferência que encontraram na literatura uma esfera autónoma de expressão de discursos livres, que não podiam ser submetidos às lógicas do poder.

Quando António Valdemar nos lembrou que a bio­grafia de Camões escrita por Aquilino era um livro essencialmente político e de oposição ao Estado Novo, fez bem. Ao fazer essa denúncia, trouxe-nos à memória as esperanças e frustrações que muitos escritores e intelectuais da oposição acalentaram no período posterior à Segunda Guerra Mundial. No entanto, é de notar que a guerra cultural então declarada não se limitava a Camões, e, entre outros escritores do passado, também passava por Eça de Queirós.

A visita de Salazar, em dezembro de 1945, à exposição queirosiana no Grémio Literário, funcionou como uma resposta oficial ao que os colaboradores no “Livro Comemorativo do Centenário de Eça de Queiroz”, publicado nesse mesmo ano, pretenderam fazer crer. Para estes, impunha-se ler Eça de Queirós, libertando-o das grelhas aristocráticas e conservadoras em que os representantes de uma cultura oficial pretendiam encerrar o autor de “Os Maias”. Neste sentido, seria necessário: atender aos processos propriamente literários, da ironia ou da troça, a partir dos quais o escritor procurava a sua autonomia; apreciar plenamente o sentido crítico e a liberdade queirosiana, em contraste com os tempos persecutórios que caracterizaram o período posterior à Segunda Grande Guerra; e, sobretudo no caso de Jaime Cortesão, mas também de Vieira de Almeida, colocava-se com premência a questão social, cuja simples enunciação irritava os mais afetos ao regime no poder.

Também a Jorge de Sena pareciam deploráveis estes usos de Camões, que nos impediam de falar do poeta, votando ao desprezo a “leitura dos seus versos, que são o que nos resta dele”

As guerras culturais e literárias no período posterior à Segunda Guerra Mundial incluem muitos outros aspetos, a começar pelos que foram suscitados pela afirmação do neorrealismo. Porém, no que respeita a Camões e à literatura quinhentista, conviria ter em conta a existência de um tempo de intensidade exemplar assinalado pelos ensaios de Aquilino sobre o poeta, publicados a partir de 1946 e reunidos em livro, em 1949. Quanto à biografia de Camões, não poderá ela ser considerada uma resposta à figura idealizada por Leitão de Barros no filme que lhe dedicou em 1946? E a representação da estátua no Largo de Camões, por Abel Manta, em 1954 — representação na qual o poeta surge sempre de costas —, não será um outro modo de oposição ao culto oficial de Camões? Uma espécie de contraepopeia, como acabou por argumentar, em 1955-1956, António Sérgio, na sua edição da “História Trágico-Marítima”, uma história de naufrágios pejada de críticas à expansão e ao império português?

Na perspetiva de Aquilino, tais guerras literárias eram contra o regime — no duplo sentido já aqui exposto de oposição entre o alto e o baixo, socialmente falando, e de defesa da autonomia do literário, enquanto espaço de autonomia criativa e de liberdade. Por exemplo, não se esqueça o retrato que traçou das capacidades do serrano ou montanhês: “na serra o homem estaria sempre mais a coberto do beleguim, do homem da lei, do fidalgo, em suma da violência do forte e da extorsão do rico”; só o vale era considerado “local pela sua natureza propício à cilada, tornava-se o fojo dos escravos” (“O Homem da Nave”, 1954).

Mas tais guerras culturais, incluindo aquelas que Aquilino travou em torno de Camões, foram também travadas contra o mundo universitário, coimbrão e lisboeta. Só a esta luz se podem compreender algumas das suas outras obras, nomeadamente, “Abóboras no Telhado (Polémica e crítica)” e o conto ‘O Professor Intemerato e a Gaitinha do Capador’ (“Casa do Escorpião”, 1963). Aliás, este último, uma autêntica sátira à vida universitária, que Frederick Hesse Garcia entendeu ser contra o padre José Maria Rodrigues, visava, na opinião de António Valdemar, um outro estudioso de Camões e professor da Faculdade de Letras — Hernâni Cidade. Não se estranhe, por isso, a posição intermédia que Jacinto do Prado Coelho veio a assumir: aclamando o facto de Sena ter aderido à “veemente obra de humanização de um ‘mito nacio­nal’”, mas, ao mesmo tempo, considerando que “o Camões boémio e pedinte” de Aquilino se constituíra no “exemplo mais completo do ensaio psicológico construído fora da obra do biografado” (“A Letra e o Leitor”, 1968).

Em suma, hoje tal como no período que se seguiu à Segunda Guerra Mundial, existem razões de sobra para celebrar pela leitura e perceção do génio criativo o nosso maior poeta. Os inevitáveis riscos de politização da sua figura e da sua obra continuam a estar presentes, tal como sabemos bem que existem modos de autonomizar e preservar o seu carácter mais propriamente poético e literário. No entanto, a reflexão sobre Aquilino — enquanto intérprete de Camões, ao lado de outros críticos e estudiosos do seu tempo, situados dentro e fora da academia e da vida universitária — deverá servir para nos lembrarmos de que o nosso tempo não se pode confundir com o de Aquilino.

Não nos compete, por isso, repetir apenas o que Aquilino ou Jorge de Sena, com a sua capacidade para ler e interpretar Camões, propuseram. Não nos cabe, também, repetir as lutas em que estiveram envolvidos. A nossa obrigação é a de saber e conseguir situar a leitura de Camões em função dos problemas do nosso tempo — sem nunca perder a consciência de que falamos de um poeta que viveu no século XVI —, a começar pelos que se encontram afetos à nossa situação pós-colonial. Da mesma forma que nos compete reconhecer que as condições de investigação em que trabalhamos são, em boa medida, dominadas por conflitos internos à própria academia, uma vez que a universidade ocupa, hoje, um lugar de muito maior destaque no campo da produção cultural.

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