terça-feira, 12 de fevereiro de 2019

Natália Correia e Marcelo de Sousa





MARCELO E AS TÁGIDES (1) (3)

Marcelo, em cupidez municipal
de coroar-se com louros alfacinhas,
atira-se valoroso – ó bacanal! –
ao leito húmido das Tágides daninhas.

Para conquistar as Musas de Camões
lança a este, Marcelo, um desafio:
Jogou-se ao verso o épico? Ilusões!…
Bate-o Marcelo que se joga ao rio.

E em eleitorais estrofes destemidas,
do autárquico sonho, o nadador
diz que curara as ninfas poluídas
com o milagre do seu corpo em flor.

Outros prodígios – dizem – congemina:
ir aos bairros da lata e ali, sem medo,
dormir para os limpar da vil vérmina
e triunfal ficar cheio de pulguedo.

Por fim, rumo ao céu, novo Gusmão
de asa delta a fazer de passarola,
sobrevoa Lisboa o passarão
e perde a pena que é de galinhola.”

O FADO DO COVEIRO (2)

Das artes mágicas campeão audaz
tira Marcelo da manga a outra faceta:
por su dama Lisboa, o Galaaz
faz à viela e ginga à lisboeta.

Calça à boca de sino de sino e cachené
ao marialva senil metendo inveja,
fidalgo edil que canta para a ralé
o faduncho finório gargareja.

Estremece Aníbal com o pardal fadista
que aquilo é treino para o último regalo:
escaqueirar o reinado cavaquista
e sobre a tumba, por fim, cantar de galo.



(1) https://observador.pt/2019/02/05/o-poema-de-natalia-correia-que-arrasou-marcelo-por-visitar-bairros-de-lata/
(2) http://folhadepoesia.blogspot.com/2013/09/o-fado-do-coveiro-natalia-correia.html
(3) https://ponteeuropa.blogspot.com/2019/02/de-como-natalia-previu-ida-de-marcelo.html

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2019

Nuno Pacheco - Não escreveu, não disse, mas ...

* Nuno Pacheco

OPINIÃO

Não escreveu, não disse, mas teimam em atribuir-lhe a autoria. Porquê?

Circulam na Internet milhares de textos apócrifos atribuídos a autores célebres. Um triunfo da mediocridade, num crime imune a castigos.

7 de Fevereiro de 2019, 7:30

É um jogo pérfido e nem sequer é novo. Mas a Internet, que também já não é nova, deu-lhe o adubo ideal e o cenário perfeito. Já leram este lindo texto de fulano? E este poema de sicrano? E esta citação, tão bela, de beltrano? Leram? Pois não são deles. Os vivos ainda se revoltam, furiosos, quando reparam. Como Gabriel García Márquez, quando insistentemente lhe atribuíam a autoria de uma “carta de despedida” que muito circulou na net e provocou comentários emocionados e tristes. O escritor estaria a morrer, coitado, e a despedir-se do mundo. Só que o texto era tão bizarro que ele (hospitalizado nesse ano de 1999 em que surgiu tal texto, por complicações que viriam a revelar um cancro linfático que mais tarde superou, morrendo 15 anos depois, em 2014) afirmou que “mais valia morrer com um cancro linfático do que ter escrito aquilo”. Soube-se depois que o texto, intitulado La Marioneta, foi na verdade escrito mesmo para uma marioneta pelo humorista e ventríloquo mexicano Johnny Welch, para o espectáculo El Mofles.

Como foi, então, parar a pretensa autoria a García Márquez? Do mesmo modo que, às centenas ou até aos milhares, surgem na Internet textos apócrifos atribuídos a autores célebres, obrigando (quem se dá a tal trabalho) a um complicado processo de busca e confirmação, para evitar o logro. Sophia de Mello Breyner, como o PÚBLICO noticiou há dias, é uma das vítimas de tais enganos. Há um poema medíocre chamado O mar dos meus olhos que, usando palavras e imagens de outros escritos por ela, se tornou viral na rede como se fosse de Sophia. Está em portais com marca de fiabilidade e já foi traduzido para alemão. Há até um site, Nanoterapia, que o coloca à cabeça na lista dos 15 melhores poemas de Sophia!

Um desvario sem barreiras, tal como o seu hóspede sem fronteira ou limite (excepto nas ditaduras, mas essa é outra conversa), a Internet. Como se resolve isto, na era do “copia e cola”? Com sabedoria. Um leitor de García Márquez não o vê autor de La Marioneta, tal como quem leia habitualmente Sophia passará ao lado das lamechices que povoam o tal Mar onde ela jamais mergulhou. Porque há, nestes textos apócrifos, uma bitola comum: o uso do choradinho, da frase enfática, do gongorismo despropositado; quem os escreve quer atingir um alvo fácil, o gosto popular mais básico, sem lhe interessar particularmente o autor ou autora vítima da fraude. Mas se assinassem com os seus nomes, desconhecidos, quem os leria? É mais fácil assinar Sophia, Pessoa, Drummond, Neruda.

Sim, porque todos eles já “escreveram” coisas que jamais imaginaram ou viram. Andam por aí, pela Internet, com o falso “carimbo” da sua identidade. Um jornalista brasileiro, Emílio Pacheco, dedica-se a descobrir textos apócrifos. Em 2006, escreveu: “Os textos apócrifos da Internet é um dos temas recorrentes neste blog. No entanto, nunca publiquei aqui a lista de ‘falsos Quintanas’ que sempre divulgo no Orkut, tanto na comunidade ‘O verdadeiro Mário Quintana’ como em qualquer outra em que o assunto vier à baila. Como aqui não existe a limitação de tamanho de mensagem do Orkut, terei espaço para fazer mais comentários. Atenção: os textos que serão citados abaixo não são de Mário Quintana! Não importa onde você os tenha visto com a autoria atribuída ao poeta.” E vinha, a seguir, uma longa lista. Mas há mais, para citar o exemplo do Brasil. Um outro site, no capítulo “Falsas autorias”, publica uma longa lista onde se incluem textos “bastantes disseminados” erradamente atribuídos: de Bruna Lombardi atribuído a Clarice Lispector, de Artur da Távola atribuído a Carlos Drummond de Andrade, de Fernando Sabino atribuído a Fernando Pessoa, de Eduardo Alves da Costa atribuído a Maiakovski, de Martha Medeiros atribuído a Pablo Neruda ou de Helenita Scherma atribuído a Cecília Meireles. Há mais, muitos mais. E idêntico fenómeno existirá noutros idiomas.

Os mortos não podem defender-se, os vivos indignam-se (Eduardo Prado Coelho lutou, durante muito tempo, contra um texto publicado online que insistiam em atribuir-lhe). Em 2009, a Folha de São Paulo publicou um texto reflectindo reacções de repúdio de “escritores consagrados” contra textos falsos a circular na rede. Luís Fernando Veríssimo (hoje com 82 anos) recebeu até um telefonema de uma senhora a dizer-lhe que odiava tudo o que lia dele até ver, na net, “um texto que adorara”. “Agradeci, modestamente. Admiradora nova a gente não rejeita, mesmo quando não merece.” Ora o tal poema “dele” era Quase, escrito por uma estudante de Florianópolis, e, segundo a Folha, chegou até a ser traduzido e publicado em França numa colectânea de escritores brasileiros.

Já o humorista Millôr Fernandes (1923-2012), à data ainda bem vivo, comentou: “É isso que pensam de mim?! Quer dizer que acham que eu escreveria uma babaquice dessas?!” O problema é mesmo esse: acham. E até ficam tristes quando percebem que não escreve tão mal. Assim vai triunfando a mediocridade, à custa de um crime imune a castigos.




terça-feira, 5 de fevereiro de 2019

Ricardo Reis - Prefiro rosas, meu amor, à pátria

* Ricardo Reis

Prefiro rosas, meu amor, à pátria,
E antes magnólias amo
Que a glória e a virtude.

Logo que a vida me não canse, deixo
Que a vida por mim passe
Logo que eu fique o mesmo.

Que importa àquele a quem já nada importa
Que um perca e outro vença,
Se a aurora raia sempre,

Se cada ano com a primavera
As folhas aparecem
E com o outono cessam?

E o resto, as outras coisas que os humanos
Acrescentam à vida,
Que me aumentam na alma?

Nada, salvo o desejo de indiferença
E a confiança mole
Na hora fugitiva.

Ricardo Reis, in "Odes"

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2019

Victor Jara - El arado



* Victor Jara


Aprieto firme mi mano
Y hundo el arado en la tierra
Haré años que llevo en ella
¿Cómo no estar agotado?
Aprieto firme mi mano
Y hundo el arado en la tierra
Haré años que llevo en ella
¿Cómo no estar agotado?
Vuelan mariposas, cantan grillos
La piel se me pone negra
Y el sol brilla, brilla, brilla
El sudor me haré surcos
Yo hago surcos a la tierra
Sin parar
Vuelan mariposas, cantan grillos
La piel se me pone negra
Y el sol brilla, brilla, brilla
El sudor me haré surcos
Yo hago surcos a la tierra
Sin parar
Afirmo bien la esperanza
Cuando pienso en la otra estrella
Nunca es tarde me dice ella
La paloma volará
Afirmo bien la esperanza
Cuando pienso en la otra estrella
Nunca es tarde me dice ella
La paloma volará
Vuelan mariposas, cantan grillos
La piel se me pone negra
Y el sol brilla, brilla, brilla
Y en la tarde cuando vuelvo
En el cielo apareciendo
Una estrella
Nunca es tarde, me dice ella,
La paloma volará, volará, volará
Como el yugo de apretado
Tengo el puño esperanzado
Porque todo cambiará

domingo, 3 de fevereiro de 2019

Adriano Miranda - A casa grande




CRÓNICA

Rodar as chaves do portão de ferro é quase penoso. Já não há vénia. Agora é lento. Pelo pó e pela ferrugem. Abre-se a custo e a medo. O que estará no pátio?

3 de Fevereiro de 2019, 8:00 

JOÃO MIRANDA
Não é fácil lá passar. Quando o sol é forte os azulejos cor de vermelho desmaiado ainda brilham. A casa até fica imponente dentro da decadência. Agora, quando o cinzento domina o céu, aqueles azulejos só me dizem tristeza. Uma tristeza angustiante. Sufocante. Evito lá passar. Já lá vão muitos anos em que não queria de lá sair. Com sol, chuva, frio ou calor, era lá que eu gostava de estar. Sentia-me bem. Feliz. Não existe melhor jeito de estar na vida que não seja amantizado com a felicidade. Que bom. Difícil, mas bom.

Sempre o mesmo ritual. Buzina aguda, dois minutos de espera, que por vezes pareciam anos. Dependia da ansiedade. E o enorme portão de ferro trabalhado dividia-se em dois. Como uma vénia. E o automóvel entrava para o grande pátio. Vinha o cão a dar ao rabo. Felicidade. Vinha o cheiro das uvas americanas. Vinha a liberdade do abraço. Aquela casa era grande. Na volumetria e no afecto. O tempo voava. Existia sempre ocupação. Coisas de adultos. Teimosos. Resilientes. E eu, que lhes dava pela cintura, estava sempre presente. Na rega do milho ou na sementeira da batata. Na apanha das pêras ou no lagar a dar à roda no esmagador. No machado a rachar lenha ou a pregar pregos no novo poleiro do galinheiro. A amassar o pão ou a tirar o galo do forno do fogão de lenha. A ver na Radiola o Tarzan ou a sonhar que um dia subiria a gigante palmeira. A ver o sábio mecânico a desmanchar o motor do carro ou a construir cidades imaginadas em pequenas peças de lego. Ouvir as gargalhadas dos adultos ou acordar em Dezembro para descobrir os presentes no sapatinho da chaminé. Era tão grande aquela casa. Tinha vida. Uma vida temperada no trabalho.

O quintal com as laranjeiras, as macieiras, as pereiras, o diospireiro, o limoeiro, as parreiras. A eira e o tanque  rega. O pátio com a adega, a casa do azeite, a casa das batatas, a oficina, o galinheiro. A casota do cão feita por mim. A cozinha de mesa longa. A sala, os quartos frescos de verão e frios de inverno. Os livros de Jorge Amado, Fernando Namora e Ferreira de Castro. A família e os amigos. Todos os dias aquele chão era pisado ao sabor da amizade. Todos eram bem-vindos. Todos se sentiam ali bem. Na casa do João e da Rosa. Estranhas eram as visitas pela noite escura. Falavam baixo. Trocavam papéis. Bebiam café ou vinho. Depois iam embora. Cautelosos. Numa primavera as visitas nocturnas acabaram. E nunca mais se falou baixinho. A caixa do milho também deixou de ter papéis enterrados no alimento das galinhas.

Tenho saudades. E elas aumentam à mesma velocidade que vou envelhecendo. Porque a casa grande está todos os dias em pensamento. Gosto disso. É um regresso reconfortante, numa espécie de máquina do tempo. Ou pelo cheiro. Pelo sabor. Pelas letras. Pelas imagens. Tudo me liga à casa grande. Porque ainda tenho futuro para desbravar. E promissor é o futuro quando se afirma pelo passado. Não encontrarei bolos de bacalhau iguais. Nem beberei um copo de mosto na adega. Mas posso continuar a martelar como ele me ensinou. A ser resistente como ela sempre quis que eu fosse. Posso e devo.

Rodar as chaves do portão de ferro é quase penoso. Já não há vénia. Agora é lento. Pelo pó e pela ferrugem. Abre-se a custo e a medo. O que estará no pátio? Um vaso caído. Uma telha partida. Um rato esticado. Os passos são lentos, sempre à espera de serem surpreendidos. Os móveis que restaram das partilhas estão cheios de cotão. As paredes escuras. O chão sujo. Silêncio. Um silêncio louco. Ninguém chama o meu nome. Já não existem vozes nem palavras. Muito menos sorrisos. Na terra onde desenhava os meus pés, as ervas tomaram-na como sua. As laranjeiras estão a secar. A pereira espera pelo vento forte para tombar. Só o diospireiro brota vida de esperança.

Fico ali a olhar com vontade de os ver. E consigo falar com eles. E a Venezuela? E o Trump? E o bairro da Jamaica? E o racismo? E a pobreza? E a guerra? E a fome? Ainda oiço, o que tantas vezes ouvi, “temos que continuar a lutar por um mundo melhor. Já não é para nós, mas será para os nossos netos.”

Na casa grande, só o diospireiro brota vida de esperança. Só vos posso prometer, João e Rosa, que os vossos bisnetos gostarão de dióspiros.

https://www.publico.pt/2019/02/03/opiniao/cronica/casa-1860318

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2019

Lúcia Gomes - O outro lado da cortiça




O OUTRO LADO DA CORTIÇA
SEXTA-FEIRA, 1 DE FEVEREIRO DE 2019
PUBLICADO POR LÚCIA GOMES

Nasci, cresci e vivi grande parte da minha vida em Santa Maria da Feira. Ainda vivo espartilhada entre cidades, sendo que é ali o meu lar. No meu Partido, toda a vida, estive lado a lado com corticeiros. Era fácil saber quem eram mesmo sem lhes falar porque grande parte deles tinha marcado no corpo o seu saber. Literalmente. Uns tinham perdido um dedo na broca, outros parte de dedos.

Desde muito cedo, com eles, estive à porta das muitas corticeiras do nosso concelho. Hoje contam-se as que sobraram porque a maioria foi asfixiada pelo poder do Grupo Amorim. Não é raro ouvir que um pequeno empresário se suicidou por não poder pagar as dívidas. Mais uma família que fecha a sua pequena fábrica, estrangulada com os créditos dos amigos do BES (lembram-se daquela linha de crédito a micro, pequenas e médias empresas liderada pelo BES e apoiada pelo governo Sócrates?).

Foi à porta dessas empresas, onde todos os meses estávamos, que cedo tomei nota em primeira mão da discriminação salarial brutal entre mulheres e homens no sector corticeiro. Eram mais de cem euros para tarefas iguais. Ali, à porta, havia trabalhadores que timidamente aceitavam o papel do PCP e o escondiam para que não fossem vistos. Também muitos nos diziam que nunca iríamos ganhar nada porque o país precisa é dos engenheiros e doutores do CDS e do PSD, que os operários nunca chegariam a lado nenhum.

Eram locais difíceis onde, não raras vezes, os seguranças estavam muito atentos a quem queria receber um papel ou falar connosco.

Fazíamos, contudo, questão de parar os carros de alta cilindrada à saída para lhes entregar os documentos e fazer saber que ali estávamos e ali iríamos voltar.

Foram milhares de distribuições. Foram também milhares de vigílias junto à APCOR de cada vez que uma empresa fechava, deixando trabalhadores meses e meses sem salários e roubando as máquinas do interior da empresa. Marchas à chuva, concentrações ao sol, as ruas de Santa Maria de Lamas iam sempre dar aos patrões da cortiça.

Foi ali também que ouvi as histórias das mulheres que cuidavam dos pais e dos filhos, que trabalhavam desde os 10 ou 12, que não sabiam como iam cuidar da família: nenhuma falava de si. Foi ali que vi os natais (sempre os natais) que lhes anunciavam o desemprego.

Foi ali que conheci o Sindicato dos Operários Corticeiros, o Alírio, o Mota, o Germano (e tantos outros) e que vi como o Sindicato foi crescendo, sempre do lado certo. Como orgulhosamente tornou a igualdade salarial na sua prioridade apesar de, no parlamento, o Bloco de Esquerda insistir em culpar o sindicato acusando-o de assinar um acordo colectivo de trabalho ou a UMAR publicamente atacar estes (e estas!) trabalhadores, incluindo na queixa que apresentaram tendo por base o acordo colectivo. E lembro-me bem do que, à data senti: nunca os tinha visto em nenhuma destas concentrações ou vigílias, em reuniões, à porta de fábricas e, ainda assim, culpavam os próprios trabalhadores por uma desigualdade imposta pelos patrões com total alheamento de como funciona uma negociação colectiva de um acordo. Sem sequer entender porque é que tinham assinado o acordo e ignorado, deliberadamente, a luta de anos que vinham a desenvolver para acabar com as discriminações salariais.

Elas, eventualmente, acabaram no papel, por via do acordo tripartido e faseado celebrado com o Ministério do Trabalho e, escusado será dizer, já sabemos quem chama a si a vitória.

Mais uma vez, os corticeiros caíram no esquecimento porque já não saíam nos jornais.

Mas continuam a trabalhar ao dia, à semana, a perder partes das suas mãos nas brocas, a receber o salário mínimo, a ver empresas a fechar, a concentrarem-se à porta das empresas e da APCOR. O Alírio, o Armando, o Germano, lá continuam. E reencontrei-me com eles, na semana passada, em frente à Câmara Municipal da Feira, onde dezenas e dezenas de trabalhadores estavam em solidariedade com Cristina Tavares, a Cristina que para muitos de nós é a única Cristina de que falamos. A mesma que foi encontrar forças, ninguém sabe bem onde, para ultrapassar os actos violentos, humilhantes e degradantes que lhe infligiram porque insiste, insiste e insiste em manter o seu posto de trabalho.

Já conheço bem a sua história porque não há camarada que não ma conte, não há dirigente sindical que não a saiba, não há um sindicalista que não tenha estado numa acção promovida pela CGTP, não há uma mulher do MDM que não tenha já manifestado a sua solidariedade.

E não, não conheço Cristina pessoalmente nem faço gáudio disso para poder escrever um artigo de jornal apenas para dizer isso mesmo. Não preciso de conhecer porque cresci no meio de muitas Cristinas. Mas admiro-a. Profundamente. Não sei como se resiste a tamanha violência.

Naquela concentração ouvi Arménio Carlos dizer que já lhe ofereceram milhares de euros para que desistisse dos processos e se afastasse. Mas Cristina respondeu sempre a mesma coisa: não quero o vosso dinheiro, quero o meu posto de trabalho.

E sei bem como é difícil esta postura até ao fim. Muitos foram já os que vi não o conseguir fazer e de nenhuma forma critico quem ao fim de anos a ser violentado (há muitas formas de assédio), não aguente mais. Num só dia, já assisti à assinatura de 24 rescisões e despedi-me de um a um com lágrimas nos olhos. Já passaram três anos sobre esse dia e apenas um encontrou trabalho.

Esta postura de Cristina devia ser um exemplo para os governantes. Despedida uma e outra vez, não desiste. Mas o governo não quer saber. Os deputados do PS, do PSD, do CDS, do PAN não querem saber. Nestas concentrações, vejo sempre os «mesmos»: PCP, Bloco de Esquerda, Os Verdes. Sempre.
São os únicos que sabem quem é a Cristina. Ou que querem saber. Cristina não inspira as fotos das deputadas na assembleia da república. Não se juntam para lhe prestar homenagem. Não inspira as associações «feministas» a fazerem concentrações, vídeos para o instagram, posts para as redes sociais. Não inspira o entretainer Marcelo. Como nunca inspiraram as trabalhadoras da Triumph. Para esta gente, as operárias são talvez menores.

Há pouco tempo vi um filme sobre um advogado, activista, que sempre lutou contra o racismo,  pelos direitos civis dos negros. Um desajeitado, mal vestido que andava de autocarro. Não falava a linguagem da modernidade, ainda ouvia cassetes, não se ajeitou numa palestra da nova geração de activistas que rapidamente o descartou. E alguém diz «We stand on his shoulders. We stand on their shoulders».

E é isso que sinto de cada vez que revejo os meus camaradas corticeiros, de cada vez que leio notícias sobre a Cristina. Nós andamos sobre os ombros deles. São eles e a sua luta que nos sustentam, que sustentam a nossa luta. São eles que nos carregam. Eles e tantos outros. Invisíveis aos olhos do governo e da propaganda (sim, propaganda) feminista liberal.

Mas como dizia Big Jim Larkin, sindicalista irlandês, the great only appear great because we are on our knees, Let us rise. E quando o povo se levanta é sempre cedo.

*A 9 de Fevereiro a CGTP convocou nova concentração de solidariedade com Cristina Tavares, em Lourosa, Santa Maria da Feira.

PUBLICADO POR LÚCIA GOMES