sexta-feira, 16 de novembro de 2007

Zeca Afonso: conjugar o verbo ser

Zeca Afonso Hoje, entrevista


Amanhã, dia 23 de Fevereiro [2007], passam 20 anos sobre a morte de Zeca Afonso. Publicamos hoje uma entrevista sua concedida ao jornalista e escritor José Amaro Dionísio a 15 de Junho de 1985. Retirámo-la do Fanzine Coice de Mula nº 7 (2005) e assim a publicamos, tal qual a encontrámos: os cortes à sua versão integral não são nossos.

Mais do que uma homenagem saudosista aos bons velhos tempos que já lá vão, encontramos nesta conversa uma série de motivos de interesse sobre os quais nos importa hoje reflectir e sobre os quais nos interessa, no mínimo, accionar o debate. Que democracia é esta? Qual o papel o papel do artista na sociedade? Qual é o poder real da criação artística? Que fazer numa sociedade dominada pelo lucrismo onde o trabalho dos criadores (artistas e demais trabalhadores) é cada vez mais esmagado, manipulado, cercado e isolado pela lógica do poder comercial?

Zeca Afonso fala-nos do ano de 1985, época em que a contra revolução avança já a passos firmes, sem subtilezas: foi este o primeiro ano de uma Década de governos Cavaco Silva, 8 dos quais em regime de maioria absoluta. Isto explica uma certa amargura que por vezes se sente nas palavras de Zeca. Nada de mais, quem sente é filho de boa gente, mas a nós o que importa é o relato da sua experiência, as dificuldades que ele foi encontrando, como artista, em passar a sua mensagem, em conseguir chegar ao povo. É uma lição nesse ponto de vista. As gerações que hoje estão activas na luta têm a aprender com esta e outras experiências que muito abriram caminho: depois de Zeca e tantos outros não podemos dizer que “começamos do zero”.

Também gostaríamos de referir que a determinada altura o jornalista cita um documento da Comissão de Extinção da PIDE em que se diz que, afinal, não foram mais do que 3 mil, em 48 anos de fascismo, os processos levados a tribunal por actividade política contra o regime. Quanto a nós é assim que se cai na rede dos falsos argumentos que hoje estão em voga e que tendem a desvalorizar a opressão operada pelo Estado Novo: os torcionários na maioria dos casos não precisam da ajuda dos tribunais: simplesmente ameaçam, prendem, torturam. Por isso, avaliar a resistência ao fascismo em Portugal pela contabilização de processos por actividade política levados a tribunal naquela época, não é fiável. Dando um exemplo dos dias de hoje, ninguém sabe quantos presos políticos estão a ser encarcerados e torturados pelos Estados Unidos e seus Aliados: mas se formos fazer a contabilidade pelos processos levados a tribunal descobriríamos que não serão mais de meia dúzia.

Passemos então à entrevista. Mas antes uma sugestão: visitem o sítio da Associação José Afonso.


Jorge Feliciano



Zeca Afonso: conjugar o verbo ser

(Coice de Mula, nº7 - 2005)

É belo, talentoso e honesto – e declinar esta adjectivação em português conduz facilmente a esse estado de orgulho e humildade que a história cultural do país tem rematado demasiadas vezes pela tragédia e quase sempre pela excomunhão. Aqui como em qualquer parte do mundo tirar-se-ia maior proveito do ser canhestro, medíocre e torpe, a trindade gloriosa dos winners que nesta viragem dos dias os media de bom senso e gosto corrente à falta de ideais um pouco menos fossilizados voltam a identificar com a trafulhice da política e dos negócios. Contra tal maré José Afonso fez claramente questão de cultivar duas ou três ideias sem cotação na bolsa: convicções, a palavra dada, a abjecção ao parasitismo ideológico e institucional. Hoje como ontem, aqui como não importa onde, há poucas pessoas assim em cada geração. A sublinhá-lo não deixa de ser curiosa a comédia que num país socialmente aviltado e politicamente traficado, onde os princípios sofrem sorrateiro escárnio no dicionário do lucro, José Afonso tenha sido uma referência ética para essa geração de esquerda que hoje está no poder, nos vários poderes, para aí cultivar a mistificação intelectual, a desonestidade moral e uma repugnante falta de escrúpulos a troco das migalhas da “democracia burguesa” que nos tempo áureos do seu esquerdismo tal esquerda acusava o intérprete de Cantigas de Maio de defender. E acusava-o porquê? Porque em pleno fascismo ele participava em reuniões e espectáculos de agitação ao lado de pessoas ou integrando organizações que para os puros da revolução e do marxismo-leninismo-maoísmo não estavam à altura dos horizontes vermelhos que profetizavam. Activista de “uma festa colaborante”, bateu-se por ela. Terno e agressivo, sarcástico e sensual, cantor de raízes populares e de Edmundo Bettencourt, credor de um trabalho fortemente personalizado mas sempre aberto à criação colectiva, sentimental irónico, andarilho dos grandes espaços, implacável quando confrontado com a hipocrisia, humilde, precário, contraditório e teimoso mas nunca sectário, atrevido frente à doença, José Afonso vive como só os melhores sabem viver: solitário e solidário, intransigente e dialéctico, leal nos ódios e nas paixões. O resultado ele sabe qual é:

Tudo está vazio e morto
Na abalada dos caminhos
E os homens estão sozinhos.

E di-lo à sua maneira nesta entrevista. A biografia deste país excessivas vezes subalterno é flagrante na persistência de um Portugal dos Pequeninos, feito de episódios a submissões estrangeiras, impérios castrados, fugas reais, governos humilhantes, obediências servis, uma congénita incapacidade de revolta colectiva e individual. Mas há também um Portugal dos grandes, habitado por essas resistências discretas que ao indecoro do salve-se quem puder tem preferido ao longo da história o desenlace da solidão moral e física, do exílio interior e exterior, muitas vezes do suicídio. José Afonso é uma criatura desse Portugal dos grandes. Sê-lo-á para sempre, porque homens assim nunca morrem. (…) Fisicamente debilitado aos 55 anos, ergue no entanto a mesma cabeça altiva que pequenas e grandes multidões conhecem de três décadas de cantorias e confrontos, dezena e meia de álbuns, centenas de milhar de discos, espectáculos sem conta, várias vezes cantor do ano e vários discos de ouro, bandeira enfim do 25 de Abril. Pessoalmente lembro-me dele de calças arregaçadas a apanhar caranguejos na Ria de Faro em certos fins de tarde mais soalheiros, era então professor numa escola da cidade e eu seu aluno – que apenas agora, quase trinta anos depois, volta a encontrá-lo cara a cara. Um dia, talvez na cantina, ouvi-lhe uma coisa que na altura me pareceu despropositada mas cujo sentido não tardaria a perceber – e que em 1968 se tornou um facto. Algo como isto: se correrem comigo do ensino não há problema, agarro numa viola e vou cantando por aí a fora. Estávamos em 1961 e ele era praticamente desconhecido.

Direita, esquerda. São noções que ainda determinam a sua relação com o mundo?

Não de forma maniqueísta. Nunca fiz isso e hoje ainda menos. Estamos sempre a mudar dentro daquilo que somos profundamente. A verdade é que a minha formação de origem é cristã. Até ao fim da adolescência eu ia regularmente à missa, assistia ao santo ofício, confessava-me. Hoje passa-se algo como o regresso às origens, não porque me tenha tornado de novo católico praticante, evidentemente, mas percebo que no fundo tenho uma concepção religiosa do universo. Vi um dia destes O Evangelho Segundo São Mateus, de Pasolini, e fiquei perturbado. E estou a ler autores como São João da Cruz e São Francisco de Assis. Há uma espécie de reencontro com os ensinamentos de Cristo, não o Cristo institucional e eclesiástico da minha infância, mas o Cristo dos que têm fome e sede de justiça.

E o marxismo, o leninismo, o maoísmo, a extrema esquerda?

Há um cruzamento dos dois tipos de formação. O marxismo, em sentido lato, não esgota o que eu penso, muito embora continue a reconhecer as suas descobertas fundamentais, como o conceito da alienação, a mais-valia, até mesmo a luta de classes. E há ainda o existencialismo. Fiz aliás a tese de licenciatura, má, sobre Sartre, e em particular sobre O Ser e o Nada. De resto nunca disse que era marxista, stricto sensu – aliás seria incapaz de ler alguma coisa como O Capital, no seu conjunto. O meu envolvimento nas coisas foi sempre de carácter existencial, a partir da observação directa de situações que me revoltaram e que têm a ver com o mundo do trabalho, da família, ou com noções muito gerais como a luta anti-imperialista, o direito dos povos à autonomia, etc. É algo que passa mais pela sensibilidade, pela maneira como cada um se move no mundo, do que por questões de principio ou de filosofia.

É uma imagem bastante mais tolerante do que aquela que se cola ao seu perfil público.

Não renego nada do que fiz, mas também não receio corrigir a minha imagem perante mim próprio adoptando atitudes nas quais me sinto bem e combatem os meus álibis internos e autojustificativos.

Que álibis?

Finalmente sou um pequeno-burguês, filho de um juiz supremo que fez carreira nas colónias. Isto e uma infância vivida na solidão deixa marca de cuja importância muitas vezes só nos damos conta muito tarde. Quando fui preso tive bem consciência das minhas limitações.

Que limitações?

Bem, não estou a fazer uma confissão para que me absolvam, mas tenho mais pés de barro do que se poderá pensar.

Mas você é tido como um intelectual que sempre esteve do lado oposto ao poder, de todos os poderes, e que age de acordo com as suas convicções. Corajoso e frontal.

São palavras.

Enfim, é o que pensa muita gente.

Frontal, sim. Corajoso, não. O medo foi sempre um sentimento que conviveu comigo. O medo a que se sobrepunha uma sensação de angústia, género “como é que me vou comportar em tal ou tal situação?”. Pouco depois dos Acordos de Alvor fiz uma digressão com o Fausto a Angola e vivemos situações difíceis. Também aí tive medo, várias vezes.

Disse-se na altura que lhe tinham querido bater em palco.

Ou mais do que isso. Tudo começou numa conferência de imprensa em que eu defendi o MPLA contra os outros movimentos. A partir daí as provocações acompanharam-nos por todo o lado. Tipos da UNITA, da PIDE, que ainda por lá andavam, da FNLA, etc. Foram uns bons cagaços.

Mas alguma vez deixou de fazer, por medo, alguma coisa que entendia dever fazer?

Em geral não. Mas houve uma vez, durante a campanha de Otelo, em 76, o carro dele tinha sido baleado ali para os lados de Lamego e a certa altura põe-se o problema de ir ou não ir a Viseu. Dizem-nos que a cidade estava agitada com uma data de retornados que nos queriam limpar o sebo. Bem, eu fui dos que fez pressão para não irmos, e não fomos.
(…) Após o 25 de Abril pus-me à disposição das comissões de trabalhadores, moradores, de grupos, para animar as lutas que faziam nos seus locais de trabalho. Então recebia cartas, telefonemas, deputações de facções opostas que reivindicavam a liderança das lutas e a justeza das teorias que apresentavam. Acabei por ser obrigado a analisar montes de documentos antes de decidir se havia de ir cantar ou não ao sítio tal, e como. Mas este tipo de coisas não se passou só comigo, há pessoas que se desgastaram bastante mais. Os tipos do GAC, por exemplo. Ou o Adriano. O Adriano chegava a ter de andar à porrada por essas aldeias fora. Houve casos em que o padre da terra utilizava a missa para avisar a população contra os comunistas que iam chegar. Em Maceira da Nazaré as pessoas puseram-se uma noite ao largo durante o espectáculo, ou na soleira da porta, ou atrás das janelas, empoleiradas, etc, por causa do padre. E cantámos com microfones mais do que rudimentares ligados a cornetas de circo em vez de colunas. Era uma coisa que acontecia com frequência, e se perguntávamos aos organizadores “mas vocês querem que a gente cante com cornetas?”, os tipos admiravam-se muito. “O quê? Vocês duvidam desta aparelhagem? Olhem que isto faz um berreiro dos diabos!”. E fazia, claro. Era um cagaçal de tal ordem que acabávamos por pedir que desligassem aquilo e púnhamo-nos a cantar vira. Apareciam então uns velhinhos do asilo ou coisa parecida que fazem pares à boca de cena e dançavam… Outras vezes, como éramos um grupo que defendia a iniciativa popular, convidámos para cantar quem quisesse. E aconteciam coisas do diabo, do género um tipo a cantar fados marialvas à brava depois de nós termos acabado de fazer uma prelecção a favor da igualdade de sexos. Ou uma voz lá atrás a gritar “A gente quer é gajas!”. Esta das gajas foi num foyer, em Paris, numa sessão para portugueses, marroquinos e espanhóis. Estava a casa cheia. No fim eles vinhem até junto do palco e punham-se a olhar para as nossas mulheres. Os comentários eram de desarmar qualquer um. A pouco e pouco perdi por completo as esperanças de atribuir aos cantores qualquer papel providencial, senti-me mais como uma Supico Pinto de esquerda a distribuir engodos. Uma vez na Marinha Grande estava eu a cantar “Ò meu Potugal tão lindo / Ó meu Portugal tão belo / Metade é Jorge de Brito / Metade é Jorge de Melo” e aparece ao meu lado um espontâneo coxo que à cadência da música atirava a perna incrivelmente longe e gritava “Não há pai para o coxo / Não há pai para o coxo…”. São momentos verdadeiramente memoráveis das campanhas de politização da Música Popular Portuguesa.

Se voltasse a cantar faria um percurso diferente?

Não voltaria a cantar.

Em nenhuma circunstância?

Em nenhuma circunstância. Para o público, não. Até porque possivelmente não teria nada de novo a apresentar. E acho que as coisas devem acabar quando não adiantam nada. De resto sou obrigado a concluir que o meu trabalho como cantor é menor… A crítica em geral reduz-me ao autor das Cantigas de Maio, o que quer dizer que antes e depois não fiz nada que preste. É uma bela crítica de música, a nossa! Tem-me proporcionado notáveis baboseiras sobre o trabalho de colegas, trabalho esse que em qualquer país decente seria suficiente para afirmar o mérito dum cantor, pelo menos.

Não voltaria a cantar, é claro nesse ponto e já explicou porquê. Mas está arrependido de ter participado em toda essa actividade de agitação?

De forma alguma, e que isso fique também claro. Não me arrependo de nada do que fiz. Mais: eu sou aquilo que fiz. Embora com reservas acreditava o suficiente no que estava a fazer, e isso é o que fica. De resto nunca confundi as coisas, sempre disse o que hoje continuo a dizer: uma viola é uma viola, uma canção é uma canção, e não se pode confundir isso com armas e granadas. Nenhum instrumento musical faz tiro curvo.

Que pode pedir a uma canção então?

Que faça bem aquilo que tem a fazer, que é do domínio da fruição musical, com o que isso implica de voz, arranjos, ritmos, intenção, energia. No meu caso o que fiz foi procurar conciliar isso com as raízes da nossa cultura musical reflectindo uma certa ordem de preocupações sociais, de solidariedade e afectividade.

Musicalmente fez o que queria fazer?

Não. Gostaria de ter trabalhado muito mais na investigação dos instrumentos, das lendas, da música regional. E fiz demasiadas sessões sem concretizar o que queria, como se depreende do que estou a contar.

Na última fase da sua carreira manifestou desejo de suscitar o interesse dos jovens para o seu trabalho. Em que consistiria essa fase?

Gostaria de ajudar a mostrar à juventude que há alternativas, no estrito campo da fruição musical, a certas correntes puramente comerciais, como a maior parte do rock que nos metralha os ouvidos de manhã à noite. A música irlandesa nunca passou por aqui, tal como a occitana, a afro-cubana, e mesmo muito da música africana.

Tem pena de não ter realizado esse trabalho?

Não. Afinal de contas tudo o que fiz como cantor foi porque não pude continuar a ser professor. Em resumo foi cantor porque deixei de ser professor e finalmente sou coisa nenhuma porque deixei de ser cantor. Estou preparado portanto para renunciar de boa vontade ao que não fiz.

Esse tom de renúncia não se aplica contudo à política.

Não, embora hoje confira um papel mais modesto à luta política. Pode modificar estruturas, mas não remove uma sociedade, não transforma um homem noutro homem. Admito que a revolução seja uma utopia, mas no meu dia a dia procuro comportar-me como se ela fosse tangível. Continuo a pensar que devemos lutar onde existe opressão, seja a que nível for. De resto tenho pouca autoridade para falar porque a minha contribuição foi bem pobre. Nunca estive na luta armada, nem sequer fui torturado.

Mas esteve preso várias vezes.

Sempre pequenas detenções. A maior foi de 21 dias. Estive incomunicável mas nunca me torturaram fisicamente.

A propósito de prisões e luta armada. Qual é a sua posição sobre a guerrilha urbana, o chamado terrorismo?

Penso que é um recurso legítimo. Sabemos hoje que os programas de partidos, as promessas eleitorais, a igualdade dos cidadãos perante a lei, o parlamentarismo, enfim, todas essas tretas são armadilhas de uma imensa minoria que vive luxuosamente à custa de uma imensa maioria. O Estado democrático revelou-se tão arbitrário como qualquer outro, serve antes de mais nada para impor as leis relativamente às quais se constitui em excepção. Por outro lado embora haja partidos que se aproximam mais dos interesses dos trabalhadores e outros que são contra esses interesses a verdade é que a escolha entre os partidos A, B, C ou D acaba por não oferecer uma alternativa de fundo aos privilégios de Estado uma vez que todos eles se movem segundo a mesma lógica que cria um fosso entre o cidadão comum e os senhores do Poder. Perante um quadro destes acho absolutamente legítima a guerrilha urbana. Não faz a revolução, presta-se mesmo a alguns equívocos, mas tem ao menos a vantagem de radicalizar a indignação e sobretudo de repor pontos de equilíbrio numa relação de forças em que o cidadão comum é permanentemente ludibriado pelo discurso e pelas artimanhas dos profissionais da política. Só é pena que a guerrilha urbana em Portugal seja tão incipiente e não tenha ainda apontado as armas para onde deve apontar. A partir da altura em que o fizer talvez a classe política se dê conta de que os brandos costumes do bom povo português não são uma fatalidade do destino.
(…) Admito-o hoje sem reticências: não temos revolucionários, não temos sido um povo de grandes revolucionários. Mas uma esquerda que não consegue juntar mais dumas mil pessoas numa manifestação contra a visita de Ronald Reagan é uma esquerda que não existe.

Admite que a fim e ao cabo os povos têm os governos que merecem?

Tenho oscilado entre recusar essa conclusão e admiti-la. É um facto que no povo português há uma tendência para a subserviência, para se curvar perante a autoridade, para o compadrio, os favores, para o deixar andar. Mas tudo isso existe ao lado de uma certa truculência e dignidade. Conheço muito bem os alentejanos, por exemplo. São pessoas pobres, talvez sem grande combatividade, mas existe nelas uma dignidade perturbante. Não é fácil pisá-las, embora pareça fácil abusar delas durante muito tempo.

Segundo a antiga Comissão de Extinção da PIDE/DGS os processos efectivamente levados a tribunal por actividade política antes do 25 de Abril não chegaram a atingir 3 mil pessoas ao longo de 48 anos. É um quadro um pouco diferente daquele que a oposição gostava de publicitar e que ainda hoje reivindica.

Antes do 25 de Abril nós conhecíamos de Norte a Sul do país as pessoas que se atreviam a lutar realmente contra o regime – e eram de facto muito menos do que se gostava de dizer. Alguns intelectuais afirmam ainda hoje que a nossa geração, a minha geração, foi muito castigada, mas eu não penso isso. Mesmo a repressão foi adaptada aos bons costumes deste povo. Não se mata um governante em Portugal há 75 anos. Isso diz tudo, se pensarmos que tivemos o regime fascista mais longo da história contemporânea.

Por outro lado esses intelectuais estão hoje no Poder. Um pouco por todo o lado, dos gabinetes ministeriais ao IPC, da Gulbenkian ao Governo de Macau, da Comissões da CEE às empresas públicas e à Comunicação Social. Na noite da vigília a Otelo Saraiva de Carvalho esteve lá você, o Vítor Wengorovius, Luís Galvão Teles, Luís Moita e poucos mais. Que é feito dos seus amigos de Coimbra, das baladas, da resistência, do famoso PREC?

Pela minha parte não tenho grande coisa a dizer sobre isso. Acho que os intelectuais deste país têm os Soares que merecem. É realmente uma geração que gosta de se apresentar a si mesma como vítima da desilusão. Para mim é uma atitude de traição, que não têm a coragem de confessar e por isso inventaram grandes malabarismos. Depois encostam-se ao PS, ao PSD ou a qualquer outra muleta do poder. Digamos que são pessoas que não me interessam.

O que acaba por ser curioso é que você contesta a democracia parlamentar com a mesma veemência com que contestou o fascismo.

O problema é que os direitos formais têm cada vez menos conteúdo prático. As liberdades formais não servem para nada se não tiverem consequências no dia a dia das pessoas. Teoricamente não há censura, não existe repressão policial ao nível da política, pode-se portanto falar, escrever, etc. Mas os mecanismos de coerção e discriminação permanecem. Mais subtis, mais pulverizados, mas permanecem. O que não quer dizer que eu não preferia a democracia formal ao fascismo, é evidente. Mas no fundo a liberdade é antes de mais nada a liberdade de se viver melhor. Por isso a liberdade para o doutor Mário Soares é uma coisa e para o tipo que está sem salários ou sem emprego ou sem casa é outra. Em quase toda a região de Setúbal há fome, mulheres casadas e raparigas prostituem-se para comer. Que sentido faz falar a estas pessoas da liberdade da democracia? Claro, há uma data de gente que vive melhor do que antes do 25 de Abril, mas à custa de clientelismos partidários e favores políticos que não afirmam propriamente os trunfos dum regime. (…)
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Excertos substanciais da entrevista concedida por José Afonso ao jornalista e escritor José Amaro Dionísio em Junho de 1985.
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ver José Afonso - Um amigo e Cidade sem muros nem fronteiras

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