terça-feira, 11 de agosto de 2020

Miguel Esteves Cardoso - O canal proibido

* Miguel Esteves Cardoso

CRÓNICA - 11 de Agosto de 2020, 0:15

Um dos grandes segredos da gastronomia portuguesa é o canal horeca. Sabe o que é o canal horeca? Eu também não.


Isto do distanciamento tem prejudicado o acesso a uma das minhas fontes principais: as conversas noutras mesas.

Infelizmente, as pessoas passaram a falar ainda mais alto, para que as palavras delas galgassem os metros de separação com a sonoridade intacta.

Só assim pude descobrir um dos grandes segredos da gastronomia portuguesa:  o canal horeca. Sabe o que é o canal horeca? Eu também não. Nem sabia que se escrevia com agá. Para ser sincero, nem sequer sabia que eram duas palavras. Pensava que era só uma: Canalóréca, com maiúscula e tudo.

“É tudo melhor no Canalóréca”, dizia um senhor rotundo mas curto com um cachecol de poliéster ao pescoço.

As coisas mais banais – os pacotinhos de manteiga, o açúcar amarelo, o chouriço, as moedas de chocolate – eram melhores no Canalóréca. Muitas delas estavam determinantemente vedadas aos cidadãos vulgares. Só se vendiam no Canalóréca e boa sorte a quem as procurasse para ter em casa, há há há.

Seria um bairro de Veneza? Uma loja do Canal Caveira? Um canal de Aveiro? Uma armazém sueco que se escreve Kanalorekkà?

Perante a descrença do desanimado interlocutor, o Mister Cash Call insistia: “É melhor porque é para profissionais, estás a ver? Tu, no Canalóréca, não te vendem nada...”

“Ópá, no Canalóréca vêm trazer-te tudo. Nunca mais tens de ir a uma loja. Nem à Makro sequer. Os gajos trazem-te as coisas e ainda por cima é ao preço da chuva.”

Ainda não fui investigar o canal horeca e o mundo fabuloso em que ele desagua – mas já faltou mais.

Desafio quem quer que seja a penetrá-lo.

sábado, 8 de agosto de 2020

Urbano Tavares Rodrigues - Destino

* Urbano Tavares Rodrigues


I

Trago na fonte
e estrela do fogo
da minha revolta
Nunca aceitaria qualquer tirania
nem a do dinheiro
nem a do mais justo ditador
nem a própria vida eu aceito...
tal como ela é
com todas as promessas
do amor e da juventude
e a parda doença
de envelhecer
a morte em cada dia
antecipada

II

Na mais lebrega alfurja
ou na cama de folhas macias
da floresta
onde a chuva te adormeceu
há sempre um idamante de sol
cujos raios te penetram de
ventura
ao sonhares a palavra
liberdade

III

Quando a terra poluída
tiver sorvido
toda a água dos lagos e das
fontes
hei-de levar o meu fantasma
até ao porto sonoro
onde a esperança cai a pique
sobre o mar dos desejos sem limite

Urbano Tavares Rodrigues, in "Horas de Vidro"

quarta-feira, 5 de agosto de 2020

Valdemar Cruz - XX - Nenhum homem decente lê sonetos de Shakespeare

O mundo à janela visto do Porto

* Valdemar Cruz

Acabam aqui estas crónicas. Retiro-me com palavras do autor dos autores. Aquele a quem meus olhos veem ungido pela genialidade absoluta

Numa longa conversa telefónica com Albuquerque Mendes, sugeria-me há dias o pintor, não sem alguma malícia, mas com muita graça, que aproveitasse o ocasional papel de cronista para, liberto das apertadas regras do jornalismo, dar largas à imaginação quando assumo o pérfido papel de “voyeur” e olho através da janela para a rua.

Seria tentador, pouco útil e nada comparável com os resultados da atitude de Ptolomeu I (305 a 282 antes da nossa era). Terá sido um dos maiores, mais interessantes e mais úteis “voyeurs” da História. Espreitava o fulgor cultural de Atenas com uma insolente inveja.

Soube, porém, transformar a cobiça num dos maiores e gloriosos projetos da antiguidade clássica. Quis fazer de Alexandria uma espécie de espelho da inalcançável Atenas. Criou o Museu de Alexandria e teceu uma estratégia de atração de todos os saberes. Soube, há mais de dois mil anos, criar uma antevisão do que viriam a ser os atuais centros de investigação e laboratórios de ideias.

Convidou todos os grande filósofos, cientistas, poetas e escritores da época. Por lá passaram o matemático Euclides, que formulou os teoremas da geometria; Erastótenes, que calculou o perímetro da Terra; Herófilo, pioneiro da anatomia; Arquimedes, inventor da hidrostática; Dionisio de Trácia, autor do primeiro tratado de gramática, além de muitos outros responsáveis por grandes revoluções teóricas, ou outras, como o rompimento do tabu da dissecação de cadáveres, fundamental para a evolução da medicina.

Como espaço central de todo aquele núcleo de sábios e pensadores reunidos numa mesma cidade, impunha-se a hoje mítica Biblioteca de Alexandria. Ptolomeu sonhava um espaço onde pudessem ser recolhidas as obras já produzidas em todas as culturas e línguas das diversas latitudes. Emissários foram enviados a todos os recantos do Império à procura dos papiros com o saber acumulado.

Seria uma antecipação da delirante e infinita “Biblioteca de Babel”, do conto de Jorge Luís Borges. Hipótese sonegada agora, com todas as bibliotecas públicas encerradas.

Salvam-nos as bibliotecas por cada um de nós construídas. A partir de hoje fecha-se esta janela. Acabam estas crónicas. O mundo continua lá fora. Cá dentro prossegue a viagem, sempre à descoberta de outros lugares e novas palavras escondidas nos livros da biblioteca da minha vida.

Retomarei a assumida e indecente atitude de “voyeur”, à procura de uma impossibilidade: o livro perfeito. Sei que jamais o encontrarei. Faz-se dessa procura o permanente desejo de leitura. E há tantos e tão bons escritores à espera de serem lidos.

É impossível nomeá-los. Reúno-os num só. Assim, e não obstante Mr. Richard Dalloway, marido da fascinante Mrs. Dalloway, criada por Virginia Woolf, dizer que nenhum homem decente deve ler os sonetos de William Shakespeare, retiro-me com palavras do autor dos autores. Aquele a quem meus olhos veem ungido pela genialidade absoluta.

É o soneto 30, na belíssima tradução de Ana Luísa Amaral, inserido na coletânea “31 Sonetos” de William Shakespeare, publicado pela Relógio D’Água:

Sempre que, debatendo no mais doce silêncio,
Convoco na memória tudo o que foi passado,
Suspiro pela ausência do que foi desejado
E assim gasto o meu tempo valioso em velhos prantos.

E os meus olhos se afogam, eu, que mal sei chorar,
Por amigos perdidos na morte sem idade,
E torno a lamentar amores antes sarados
E pranteio por tudo o que gastei do olhar.

Posso sofrer então por sofrimentos idos,
Contar de mágoa em mágoa, da forma mais dorida,
A minha triste história de queixas mais antigas

Cobrando, nova, a história, como nunca cobrada.
Mas quando, amigo meu, me vens ao pensamento
Recuperam-se as perdas e finda o sofrimento.

2020.04.20
https://expresso.pt/opiniao/2020-04-20-XX---Nenhum-homem-decente-le-sonetos-de-Shakespeare

domingo, 2 de agosto de 2020

dois poemas de Mário Castrim

* Victor Nogueira
A crítica de televisão escrita por Mário Castrim (1920 / 2002)  no Diário de Lisboa, dia-após-dia, ano-após-ano era uma janela aberta por onde passava a brisa do mar ou da montanha, uma lúcida e por vezes corrosiva visão do país cinzento, agrilhoado, espartilhado, oprimido, estilhaçado pela censura e pela repressão. A sua crónica era a 1ª secção a ler por muitos de nós, como hoje se procura a tira do "Calvin e Hobbes" ou o "Bartoon"

Para além de jornalista, Mário Castrim foi escritor, de poesia e de livros para a infância. Dele ficam estes dois poemas:

No retrato velho hoje cinzento
estava toda a família reunida. – Este aqui és tu. Este tu era eu – três anos, caracóis, calções colete, botas. Este sou eu. É preciso guardar as provas. Os documentos. Se um dia me fecharem as cancelas e não me deixarem passar, aponto logo: – Este sou eu. – Passe – dirá o guarda que deve haver na eternidade – e boa viagem, sim? – Claro – dirá o menino que entretanto busca em mim as sete diferenças como costuma fazer no desenho do suplemento do jornal ~~~~~~~~~~~~~~~~ Deste ponto do hotel vê-se qualquer coisa que logo desde o início se entendeu não poder ser outra coisa além do Cabo da Roca. Daqui donde estou se vê que o Cabo é perfeitamenhte ocidental o mais ocidental possível. Mais do que ele, só os nossos olhos. Eles, para quem a terra não acaba nunca. Eles, que tocam o ponto exacto onde um sol de fogo prova que ela é redonda. Mário A única diferença é o farol. Mas se fores tu de noite a olhar o mar, os barcos podem ir à confiança.


Mário Castrim - Urgente

* Mário Castrim - Urgente

Camarada
na frente de combate
ensina-me a
escrever versos

Camarada
com os salários em atraso
ensina-me a
escrever versos

Camarada
que passas as férias trabalhando
na Festa do Avante!
Ensina-me a escrever versos

Camarada
que estendes o punho
e não a mão em concha
ensina-me a escrever versos

Ensinai-me
os segredos
pois sinto que os meu versos
me escapam entre os dedos