sábado, 31 de agosto de 2013

Alberto Caeiro - Se depois de eu morrer, quiserem escrever a minha biografia





Com um bom dia.
Se depois de eu morrer, quiserem escrever a minha biografia,
Não há nada mais simples
Tem só duas datas - a da minha nascença e a da minha morte.
Entre uma e outra cousa todos os dias são meus.

Sou fácil de definir.
Vi como um danado.
Amei as cousas sem sentimentalidade nenhuma.
Nunca tive um desejo que não pudesse realizar, porque nunca ceguei.
Mesmo ouvir nunca foi para mim senão um acompanhamento de ver.
Compreendi que as cousas são reais e todas diferentes umas das outras;
Compreendi isto com os olhos, nunca com o pensamento.
Compreender isto com o pensamento seria achá-las todas iguais.

Um dia deu-me o sono como a qualquer criança.
Fechei os olhos e dormi.
Além disso, fui o único poeta da Natureza.

Alberto Caeiro

Fábrica de Escrita
(imagem: Benoit Paillé)

sexta-feira, 30 de agosto de 2013

David Mourão-Ferreira - Noite Apressada



há 11 horas 

Daqui me despeço por hoje. Uma boa noite para todos.

Noite Apressada

Era uma noite apressada 
depois de um dia tão lento.
Era uma rosa encarnada
aberta nesse momento.
Era uma boca fechada
sob a mordaça de um lenço.
Era afinal quase nada,
e tudo parecia imenso!

Imensa, a casa perdida
no meio do vendaval;
imensa, a linha da vida
no seu desenho mortal;
imensa, na despedida,
a certeza do final.

Era uma haste inclinada
sob o capricho do vento.
Era a minh'alma, dobrada,
dentro do teu pensamento.
Era uma igreja assaltada,
mas que cheirava a incenso.
Era afinal quase nada,
e tudo parecia imenso!

Imensa, a luz proibida
no centro da catedral;
imensa, a voz diluída
além do bem e do mal;
imensa, por toda a vida,
uma descrença total!

David Mourão-Ferreira, in "À Guitarra e à Viola"

segunda-feira, 26 de agosto de 2013

Discurso do filho-da-puta - Poema de Alberto Pimenta



.
O pequeno filho-da-puta
é sempre
um pequeno filho-da-puta;
mas não há filho-da-puta,
por pequeno que seja,
que não tenha
a sua própria
grandeza,
diz o pequeno filho-da-puta.

no entanto, há
filhos-da-puta que nascem
grandes e filhos-da-puta
que nascem pequenos,
diz o pequeno filho-da-puta.
de resto,
os filhos-da-puta
não se medem aos
palmos, diz ainda
o pequeno filho-da-puta.

o pequeno
filho-da-puta
tem uma pequena
visão das coisas
e mostra em
tudo quanto faz
e diz
que é mesmo
o pequeno
filho-da-puta.

no entanto,
o pequeno filho-da-puta
tem orgulho
em ser
o pequeno filho-da-puta.
todos os grandes
filhos-da-puta
são reproduções em
ponto grande
do pequeno
filho-da-puta,
diz o pequeno filho-da-puta.

dentro do
pequeno filho-da-puta
estão em ideia
todos os grandes filhos-da-puta,
diz o
pequeno filho-da-puta.
tudo o que é mau
para o pequeno
é mau
para o grande filho-da-puta,
diz o pequeno filho-da-puta.

o pequeno filho-da-puta
foi concebido
pelo pequeno senhor
à sua imagem
e semelhança,
diz o pequeno filho-da-puta.

é o pequeno filho-da-puta
que dá ao grande
tudo aquilo de que
ele precisa
para ser o grande filho-da-puta,
diz o
pequeno filho-da-puta.
de resto,
o pequeno filho-da-puta vê
com bons olhos
o engrandecimento
do grande filho-da-puta:
o pequeno filho-da-puta
o pequeno senhor
Sujeito Serviçal
Simples Sobejo
ou seja,
o pequeno filho-da-puta.


II

o grande filho-da-puta
também em certos casos começa
por ser
um pequeno filho-da-puta,
e não há filho-da-puta,
por pequeno que seja,
que não possa
vir a ser
um grande filho-da-puta,
diz o grande filho-da-puta.

no entanto,
há filhos-da-puta
que já nascem grandes
e filhos-da-puta
que nascem pequenos,
diz o grande filho-da-puta.

de resto,
os filhos-da-puta
não se medem aos
palmos, diz ainda
o grande filho-da-puta.

o grande filho-da-puta
tem uma grande
visão das coisas
e mostra em
tudo quanto faz
e diz
que é mesmo
o grande filho-da-puta.

por isso
o grande filho-da-puta
tem orgulho em ser
o grande filho-da-puta.

todos
os pequenos filhos-da-puta
são reproduções em
ponto pequeno
do grande filho-da-puta,
diz o grande filho-da-puta.
dentro do
grande filho-da-puta
estão em ideia
todos os
pequenos filhos-da-puta,
diz o
grande filho-da-puta.

tudo o que é bom
para o grande
não pode
deixar de ser igualmente bom
para os pequenos filhos-da-puta,
diz
o grande filho-da-puta.

o grande filho-da-puta
foi concebido
pelo grande senhor
à sua imagem e
semelhança,
diz o grande filho-da-puta.

é o grande filho-da-puta
que dá ao pequeno
tudo aquilo de que ele
precisa para ser
o pequeno filho-da-puta,
diz o
grande filho-da-puta.
de resto,
o grande filho-da-puta
vê com bons olhos
a multiplicação
do pequeno filho-da-puta:
o grande filho-da-puta
o grande senhor
Santo e Senha
Símbolo Supremo
ou seja,
o grande filho-da-puta.

sábado, 24 de agosto de 2013

Pablo Neruda - Para o Meu Coração...

Pablo Neruda - Para o Meu Coração...

*

FELIZ NOITE ......

Para o Meu Coração...

Para o meu coração basta o teu peito, 
para a tua liberdade as minhas asas.
Da minha boca chegará até ao céu
o que dormia sobre a tua alma.

És em ti a ilusão de cada dia.
Como o orvalho tu chegas às corolas.
Minas o horizonte com a tua ausência.
Eternamente em fuga como a onda.

Eu disse que no vento ias cantando
como os pinheiros e como os mastros.
Como eles tu és alta e taciturna.
E ficas logo triste, como uma viagem.

Acolhedora como um velho caminho.
Povoam-te ecos e vozes nostálgicas.
Eu acordei e às vezes emigram e fogem
pássaros que dormiam na tua alma.

Pablo Neruda
  

quinta-feira, 22 de agosto de 2013

Mia Couto - Testamento Da Mulher Suspensa


**

Testamento Da Mulher Suspensa

Eis o que vos deixo:
um leve gosto
de renascer lembrada.

E um falso desejo de ser esquecida.

Que eu virei buscar a espuma da onda
que ficou para sempre por quebrar.

Beleza não me bastou:
o que quis ser
foram cetins de fogo,
pétalas de cinza depois do abraço.

Nem flor invejei:
o que mais ilumina
vem de um oceano escuro.

Esperanças tive: todas naufragaram
antes cansaços e remorsos.
Procurei ilhas e mares:
só havia viagens,
travessias de água
nos olhos de quem amei.

Num mundo com remédios parcos
não clamei bravuras.
Injusto é viver
em perecível ser.

Menina,
aprendi a desenrolar tapetes
em rasos pátios voadores,
varandas maiores que o mundo
onde o tempo à nossa mão vinha beber.

Meus pequenos dedos
rasgaram céus,
mas o ensejo era largo:
em mim secaram
lembranças de um mar antigo.

Assim,
tudo o que sou
já fui
na criança que sonhou ser tudo.

Meus lutos, sem emenda, carrego:
viuvez de mulher
não vem de marido.

Vem do amor não mais sonhado.

Com a fragilidade de um riso
enfrentei ruínas e derrotas
e apenas a vida, calada, me calou.

Tudo falei com meus amantes.
Perante o amor, porém, não tive palavra.

O que da vida me restou:
pegadas alheias sob meus pés molhados.

Viver sabe quem ainda vai viver.

Deixo-me,
mulher que quase foi,
à mulher que nunca fui.

Mia Couto in "Tradutor de Chuvas"
  

um poema de Urbano Tavares Rodrigues


A Primavera vem dançando
com os seus dedos de mistério e turquesa
Vem vestida de meio dia e vem valsando
entre os braços dum vento sem firmeza

Nu como a água o teu corpo quieto e ausente
Só este inquieto esvoaçar do teu sorriso
Loiro o rosto o olhar não sei se mente
se de tão negro e parado é um aviso
do destino que me fixa finalmente

Ai, a Primavera vai passando
com os seus dedos de mistério e de turquesa
Segue Primavera vai cantando
Que será do nosso amor nesta praia de incerteza

Urbano Tavares Rodrigues

quarta-feira, 21 de agosto de 2013

um poema de mário quintana


*

Quando eu for, um dia desses,
Poeira ou folha levada
No vento da madrugada,
Serei um pouco do nada
Invisível, delicioso

Que faz com que o teu ar
Pareça mais um olhar,
Suave mistério amoroso,
Cidade de meu andar
(Deste já tão longo andar!)

E talvez de meu repouso...




Mario Quintana
  

um texto de Júlio Pomar

Olhar e sentir
Por dentro do corpo
A massa de que é feito o avesso dele.
Ossos músculos nervos veias
Tudo o que está no corpo e mundo é
A pintura contém e depõe na tela.
E, se acaso aí o pintor deixou reservas
Nesse sem nada o avesso do mundo
Se recolhe e mostra a face.
(Júlio Pomar)


Lisboa – Sé
(Foto: albita✝pearl)

Foto: Olhar e sentir 
Por dentro do corpo
A massa de que é feito o avesso dele. 
Ossos músculos nervos veias 
Tudo o que está no corpo e mundo é 
A pintura contém e depõe na tela.
E, se acaso aí o pintor deixou reservas 
Nesse sem nada o avesso do mundo
Se recolhe e mostra a face. 
(Júlio Pomar)


Lisboa – Sé
(Foto: albita✝pearl)

domingo, 18 de agosto de 2013

"Um Espião Perfeito", de John Le Carré


"Um Espião Perfeito", de John Le Carré,
na Colecção Mil Folhas
Numa obra tão abundante e tão boa como a do escritor britânico John Le Carré será difícil dizer que o livro "Um Espião Perfeito" é a sua mais brilhante pérola. A legião dos que acham que sim é imensa mas qualquer outra legião de adeptos de outros livros de Le Carré não será menor. No entanto, "Um Espião Perfeito" é, sem dúvida, a mais imortal obra do autor e a de maior densidade literária, que o fez conquistar um lugar na galeria dos grandes escritores do século XX.

Publicado em 1986, "Um Espião Perfeito" é o livro em que John Le Carré mais apostou enquanto escritor e em que mais se expôs enquanto pessoa no terrível ajuste de contas com a sua história familiar e a vida de espião que abraçou muito cedo, ainda estudante em Oxford, onde, tal como outros notáveis agentes secretos da sua geração, denunciou as simpatias comunistas de muitos dos seus amigos.

Atravessado por uma incursão autobiográfica do autor, o livro tem essa perturbadora marca da história pessoal de Le Carré, que transforma "Um Espião Perfeito" numa viagem pelos caminhos da traição. A traição dos amigos, da família, das causas. A dupla traição do Ocidente e do Leste remete para uma leitura política do livro, mas esta perde força face à magnitude da riqueza humana e psicológica das personagens construídas por Le Carré. Este é, afinal, mais um livro sobre a complexidade inextricável da raça humana do que um romance, porventura "o romance", da Guerra Fria.
David Cornwell, verdadeiro nome de John Le Carré, só em 1993 admitiu publicamente que quase toda a vida trabalhara para os serviços secretos britânicos. Começa aí a conhecer-se uma biografia profissional e pessoal do autor, que se cruza inteiramente em "Um Espião Perfeito" com a vida de Magnus Pym, o agente secreto sem causa que sobretudo tem uma paixão irresístivel pelo género humano, o que o leva invariavelmente a esbarrar na impossibilidade de juntar, em qualquer circunstância da vida, o melhor de dois mundos.

A sua infância foi muito difícil e atravessada por um conflito interior profundíssimo contra o seu pai, um adorável vigarista que conheceu prisões, hóteis de cinco estrelas, casinos e mulheres por esse mundo fora. Gastava hoje o que julgava vir a ganhar amanhã. Rick Pym é a personagem de "Um Espião Perfeito" que caminha sobre a vida de Ronnie Cornwell, o pai de John Le Carré, e nunca sai de uma interminável conversa com Magnus Pym, a principal personagem do livro que nos vai dando a chave de todas as evasões possíveis.


   “O escritor observa, escuta, regista. Depois, conta uma história, juntando a imaginação à experiência. E esta leva, inevitavelmente, as cicatrizes da alma.”http://static.publico.pt/docs/cmf3/escritores/85-JohnLeCarre/texto.htm
***


Opinião
Berna, Londres, Viena, Berlim… um retrato poderoso da Guerra Fria. Espiões, agentes secretos, profissionais do disfarce e do embuste, homens sem identidade, perdida entre mil e uma imagens construídas para mentir à procura da verdade. 

Pym é o agente perfeito – vendido aos dois lados – que procura durante toda a vida encontrar-se consigo mesmo e redimir a traição à amizade por Axel – o amigo/inimigo. 

Por outro lado há o pai – memórias de um progenitor criminoso mas herói. Daqui resulta uma narrativa quase psicanalítica, marcada pelas recordações do passado e escrita, disfarçadamente, na primeira pessoa do singular.
 
O enredo revela toda a arte de Le Carré, capaz de manter aquele tom enigmático que prende o leitor ao longo de 575 enormes e recheadas páginas. Um livro longo, a espaços cansativo mas nunca maçador. 

No final, fica a ideia de um homem sem identidade, perdidos nos disfarces e numa eterna procura que, nos últimos tempos, tenta redimir todo o passado que o tortura. 

Na vida de Pym, fidelidade e traição são conceitos ambíguos que vivem lado a lado e se misturam permanentemente. De entre todos os sentimentos conflituosos, emerge em Pym um único que conquista a primazia: a amizade, o valor supremo. Uma amizade que nasce da traição – a única realidade capaz de gerar felicidade. 

“A traição é uma profissão repetitiva” (Pág. 564) 

sexta-feira, 9 de agosto de 2013

mário quintana - esperança *** Isa Alçada 9/8 Permitida na Cronologia ESPERANÇA........ Lá bem no alto do décimo segundo andar do Ano Vive uma louca chamada Esperança E ela pensa que quando todas as sirenas Todas as buzinas Todos os reco-recos tocarem Atira-se E — ó delicioso vôo! Ela será encontrada miraculosamente incólume na calçada, Outra vez criança... E em torno dela indagará o povo: — Como é teu nome, meninazinha de olhos verdes? E ela lhes dirá (É preciso dizer-lhes tudo de novo!) Ela lhes dirá bem devagarinho, para que não esqueçam: — O meu nome é ES-PE-RAN-ÇA... Mario Quintana

 

***




ESPERANÇA........


Lá bem no alto do décimo segundo andar do Ano
Vive uma louca chamada Esperança
E ela pensa que quando todas as sirenas
Todas as buzinas
Todos os reco-recos tocarem
Atira-se
E
— ó delicioso vôo!
Ela será encontrada miraculosamente incólume na calçada,
Outra vez criança...
E em torno dela indagará o povo:
— Como é teu nome, meninazinha de olhos verdes?
E ela lhes dirá
(É preciso dizer-lhes tudo de novo!)
Ela lhes dirá bem devagarinho, para que não esqueçam:
— O meu nome é ES-PE-RAN-ÇA...

Mario Quintana

quinta-feira, 8 de agosto de 2013

um poema de Augusto Cury


 






FELIZ DIA .....

"Sou apenas um caminhante
Que perdeu o medo de se perder
Estou seguro de que sou imperfeito
Podem me chamar de louco
Podem zombar das minhas idéias
Não importa!
O que importa é que sou um caminhante
Que vende sonhos para os passantes
Não tenho bússola nem agenda
Não tenho nada, mas tenho tudo
Sou apenas um caminhante
À procura de mim mesmo."

Augusto Cury

quarta-feira, 7 de agosto de 2013

Entrevista: John Le Carré

Entrevista: 

John Le Carré
"A humanidade não avança"

O mais famoso autor de livros de espionagem
diz que o Ocidente derrotou o comunismo, mas
agora precisa aprender a domar o capitalismo

Carlos Graieb, de Londres


Arnd Wiegmann/Reuters
"Quando a Guerra Fria acabou, podíamos ter reescrito a história. Mas não tínhamos um plano para a paz"
No começo dos anos 60, o inglês David Cornwell levava uma vida tripla. Oficialmente, trabalhava como diplomata na Alemanha. Clandestinamente, executava serviços de espionagem contra os comunistas. E, sob o pseudônimo John Le Carré, lançava-se numa carreira literária que logo ganharia força. Com romances como O Espião que Saiu do Frio (1963), o autor conquistou algo raro: um best-seller que a crítica também respeita. A queda do Muro de Berlim, em 1989, fez especular se Le Carré perderia o seu tema – o mundo dos agentes secretos. Mas ele continuou a produzir livros eletrizantes e inteligentes. O mais recente deles éAmigos Absolutos (Record; 415 páginas; 40,90 reais), que transita entre a Alemanha do fim dos anos 60, no auge da Guerra Fria, e o presente dos ataques terroristas. O romance anterior é O Jardineiro Fiel, que se passa no Quênia e contém uma dura invectiva contra as indústrias farmacêuticas. Ele acaba de ser transposto para o cinema pelo diretor brasileiro Fernando Meirelles, de Cidade de Deus – uma adaptação para a qual Le Carré só reserva elogios. Aos 73 anos, o romancista recebeu VEJA em sua casa em Londres para a seguinte entrevista.  
Veja – Quando a Guerra Fria terminou, disseram que os autores de livros de espionagem haviam perdido o seu tema. O senhor chegou a sentir isso?
Le Carré – Não, jamais. Cada vez que me diziam que não havia mais motivo para espionagem depois da queda do Muro de Berlim, eu pensava comigo mesmo: "Esperem só até divulgarem o novo orçamento da CIA. Aposto que terá crescido 35%". A idéia era muito simplista, e a indústria da espionagem, grande demais para morrer assim, de uma hora para outra. Isso posto, antes mesmo de tudo acontecer eu já estava tentando deixar a Guerra Fria e seu mundo de espiões para trás em minha obra. Principalmente na última década, creio que o motor principal de meu trabalho tem sido o fascínio por situações coloniais e pós-coloniais. São os fantasmas do passado que me atraem, e a maneira como criam novas catástrofes, seja no Panamá, uma antiga possessão americana, seja na Chechênia, uma antiga colônia soviética. A história do presente é, em boa parte, a história de como a herança colonial está vindo nos assombrar. Você não consegue entender o Iraque sem atentar para a presença britânica naquela região, como os cartógrafos colonialistas traçaram algumas linhas num mapa e assim criaram o país que mais tarde seria governado por Saddam Hussein. Um dos motivos por que há tanta incompreensão sobre a política atual é a falta de consciência histórica.

Veja – O senhor não escreveu apenas best-sellers sobre espionagem. Foi espião na juventude, durante a Guerra Fria. Por que realizou esse tipo de trabalho?
Le Carré – Essa é uma história que tem a ver com o tempo em que nasci, com a forma como fui educado, com o meu país. Meu pai era, digamos assim, um empreendedor muito peculiar. Ele foi parar na cadeia várias vezes. Mas estava determinado a fazer de mim uma pessoa respeitável. E para ser respeitável na Inglaterra você tem de freqüentar certas escolas privadas, você tem de aprender a linguagem, os modos, os padrões de comportamento da elite. Quando você cresce nesse ambiente, ou submerge nele de vez ou passa a vida tentando se reinventar, livrar-se das doutrinas que lhe foram incutidas. Pertenço à segunda espécie de homem. Ingressar no serviço secreto foi minha primeira tentativa de reinvenção. Espionei enquanto ocupava cargos diplomáticos. Comecei em postos baixos, depois fui secretário político na embaixada britânica em Bonn e conselheiro político em Hamburgo. Isso durou dos 17 aos 31 anos. Mas o processo de reinvenção continuou ao longo da vida. Hoje, aos 73, sinto-me intelectualmente livre. Finalmente saí do colégio.

Veja – Para um antigo espião ocidental, o senhor se tornou um crítico bastante acerbo do capitalismo. "Agora que derrotamos o comunismo, talvez tenhamos de combater o capitalismo", diz um personagem no final do livro O Peregrino Secreto, de 1991. O que o levou a essa posição?
Le Carré – Eu não renego a política dos tempos de Guerra Fria. Eu conheço pessoas que atuavam do outro lado, talvez seja amigo de algumas delas. Mikhail Lubimov, por exemplo, um antigo oficial da KGB, visitou minha casa várias vezes. Tive longas conversas com ele, e elas reforçaram minha convicção de que não jogávamos o mesmo jogo. Nós, deste lado, protegíamos algo que merecia ser protegido: uma sociedade aberta, apesar de todas as falhas. Eles operavam em nome de uma sociedade fechada. Muitas vezes disse a Lubimov que os agentes da KGB estavam mais perto da verdade sobre o Ocidente do que qualquer outra pessoa de seu mundo. Eles viviam entre nós, tinham informantes entre nós, sabiam que estavam tratando com uma sociedade aberta e relativamente decente. No entanto, guardaram essa informação como um segredo. Eles se tornaram culpados na posse do conhecimento. A queda do comunismo foi um acontecimento magnífico, uma dádiva. Isso posto, sinto-me bastante nauseado com o sabor atual do mundo – com o poder indecente das grandes corporações e a maneira como isso afeta as democracias. Tenho a terrível sensação de que a verdadeira vitória foi roubada de nós. A humanidade não avança.

Veja – O que deu errado?
Le Carré – Quando o conflito entre o mundo capitalista e o mundo comunista acabou, estivemos diante de um daqueles raros momentos em que a história poderia ter sido inteiramente reescrita. Só que não tínhamos nenhum plano de contingência para a paz. Tínhamos vários planos de guerra e nenhum projeto de reconstrução. Jovens americanos não foram enviados à antiga União Soviética para encontrar as pessoas que antes pretendiam matar, e vice-versa. Não houve esforço para fomentar entendimento. E, nesse vácuo, duas coisas aconteceram. Primeiro, vimos surgir a cultura da cobiça terminal. Creio que foi meu país que deu essa inestimável contribuição ao mundo. A parteira foi Margaret Thatcher, com seu enorme empenho político em desvalorizar a idéia de solidariedade social. Thatcher deixou um legado de total indiferença pelos problemas que afligem o mundo. Ela disse que privatizaria o ar se pudesse, e na cultura em que vivemos esse é um pensamento aceitável. A segunda coisa que aconteceu foi o início da busca por um novo inimigo. Podíamos sentir as lideranças à procura de um novo demônio, e elas finalmente conseguiram criá-lo. Elas criaram o demônio terrorista. A luta contra ele? Acho que o bombardeamento do Afeganistão foi um crime insuficientemente denunciado e a invasão do Iraque, injustificável tal como foi feita.  

Veja – O primeiro-ministro britânico, Tony Blair, usou documentos do serviço secreto sobre a existência de armas químicas no Iraque para justificar a adesão do Reino Unido à guerra. Mas as armas não foram encontradas. O que achou desse episódio?
Le Carré – Quando ficou claro que os Estados Unidos iam invadir o Iraque, em 2003, Blair prometeu que os seguiríamos, com ou sem as Nações Unidas, com ou sem a Europa. Houve então uma situação de pânico, uma pressão tremenda para que nosso serviço de inteligência apresentasse algo que o ajudasse. E eles tinham muito pouca informação com que lidar, já que Saddam Hussein periodicamente eliminava quadros inteiros de assessores, entre os quais muitas pessoas que provavelmente prestavam informações a nós. Finalmente, Blair revelou que o relatório sobre armas químicas de que dispunha se baseava numa fonte só. O que é ridículo. Ao menos no meu tempo, não seria possível para um relatório tão canhestro passar por todos os filtros internos do serviço e finalmente ser usado por uma autoridade do nível hierárquico de Blair. Do ponto de vista de alguém que trabalhou no serviço secreto, essa história é inimaginável.  

Veja – Qual foi a contribuição da espionagem no quadro da Guerra Fria?
Le Carré – Nós demos nossa contribuição colhendo informações, ajudando pessoas, impedindo isto ou aquilo. Mas não acho que se deva exagerar esse papel. Não foram os espiões que venceram a guerra, tampouco os soldados. Foi a sanidade que, aos poucos, se infiltrou naquela sociedade fechada que era a União Soviética. Foi a erosão econômica do regime. Como disse alguém, "o cavaleiro morria dentro de sua armadura".

Veja – Como se conquista uma fonte no serviço secreto?Le Carré – O charme da espionagem – e aquilo que, a meu ver, a torna atraente para a literatura – é que todas as possibilidades de nosso caráter humano ficam expostas em suas tramas. As pessoas lhe servirão de fonte pelos motivos mais diversos: porque se sentem sozinhas, porque não gostam do chefe, porque vão com a sua cara, porque você as diverte, porque lhes paga uma bebida ou é simpático com sua mulher. Espionagem tem a ver com sedução, com confiança, com manter promessas. É uma atividade demasiado humana. Quando se fala de serviços de espionagem, as pessoas tendem a se transportar para um mundo estranho. Uma névoa desce sobre os olhos delas. Na verdade, estamos falando da busca de informação em meio ao comportamento humano mais comezinho. É muito próximo do jornalismo. O maravilhoso das histórias de espionagem está nessa riqueza de experiências que elas permitem mostrar – esse mundo de motivações e desejos que se tenta compreender e às vezes manipular. Também gosto do fato de que elas lhe permitem falar de temas políticos, do grande palco do mundo, sem soar pretensioso. Enquanto a história corre, os leitores o perdoam.  
Veja – Relações pai e filho são muito importantes em seus livros. Por quê?
Le Carré – Meu pai forjou a própria vida com um talento extraordinário – só que para o desastre, e não para o sucesso. Ele era basicamente um vigarista. Suas aventuras eram tão extraordinárias, tão irreais, que numa certa altura da vida passei a duvidar de minhas próprias memórias a respeito dele e fiquei obcecado pelo personagem. Cheguei a contratar dois detetives particulares para investigar sua vida e eu mesmo fiz um monte de pesquisas. Ele era um tipo extravagante, um completo fantasista, que num dia se candidatava ao Parlamento e no dia seguinte ia preso por fraudes. Certa vez, tive de tirá-lo da cadeia em Jacarta. Às vezes ele ganhava 1 milhão – e logo descobríamos que tinha outros 2 em débito. Ele morreu aos 69 anos com uma mulher no interior, duas amantes em Londres e uma casa cheia de empregados que não viam o salário havia tempos. Suponho que isso explique meu interesse pelo tema. De fato, há muitas histórias sobre pais e filhos em meus romances. Um deles, Um Espião Perfeito, é francamente autobiográfico e contém um retrato de meu pai no personagem Rick Pyn.

Veja – Os ingleses parecem ter uma obsessão por seu sistema escolar. Ela está muito presente na literatura, dos romances de Harry Potter aos seus thrillers de espionagem, quando é preciso descrever a origem de um personagem. Por que isso?
Le Carré – Colégios são importantes na formação de qualquer um, em qualquer lugar do mundo. Mas as escolas privadas e sobretudo os internatos da Inglaterra, com seus uniformes, seus brasões, e suas longas histórias, são realmente instituições muito peculiares. Nelas, categorizamos desde cedo nossos jovens. Eu fui professor durante um tempo. Ensinei alemão em Eton, um dos colégios mais tradicionais. Lá encontrei classes para os ultra-ricos, para os garotos promissores, para os criminosos em potencial, para os indomáveis. Todos já estavam em seus nichos. Além disso, ser despejado num internato inglês já é uma experiência e tanto. "Aqui estou eu. Meus pais me mandaram embora", pensa o garoto de, digamos, 5 anos. Foi nessa idade que eu mesmo caí numa dessas versões polidas de uma penitenciária. E então você se torna imediatamente seduzível e cooptável pelo poder daqueles que estão à sua volta e parecem capazes de lhe dar abrigo. Várias escolhas têm de ser feitas. Você não pode ser estúpido, nem esperto demais. Você tem de se acomodar ao padrão. Você precisa conviver com sistemas totalmente ilógicos de disciplina. Você pode apanhar muito – e carregar desde então uma grande indignação e uma grande raiva. Você precisa criar sistemas próprios de justiça. Os colégios são, enfim, instrumentos muito poderosos de socialização na Inglaterra – e também o palco de enormes dramas e batalhas.  

Veja – Como o processo de adaptação de O Jardineiro Fiel foi parar nas mãos do cineasta brasileiro Fernando Meirelles?
Le Carré – O projeto começou há quatro anos e, inicialmente, faríamos um filme no estilo americano. O diretor Mike Newell, deQuatro Casamentos e Um Funeral, estaria à frente dele. Mas Newell saltou do barco para filmar um dos episódios da sérieHarry Potter e, nesse ponto, entrou Fernando Meirelles. Ele deu ao filme o espírito que eu desejava. A história se passa no Quênia e fala de uma grande indústria farmacêutica que usa africanos como cobaias para testar remédios. Em Fernando, encontrei um diretor que entendia a questão da complexidade racial e que sabia falar da tragédia que é a destruição de vidas humanas, pois a mostrou de maneira admirável em Cidade de Deus. Além disso, ele tinha uma percepção não européia do livro, o que me pareceu excelente. Com ele, eu sabia que não teríamos somente um thriller e uma história de amor, mas também um olhar político sobre a ação das grandes corporações no mundo. Creio que Fernando está se tornando, rapidamente, um grande nome do cinema internacional. Deverá ser muito assediado por Hollywood, esse grande cemitério de talentos inocentes, mas sinto que tem o fogo e a inteligência para seguir um caminho próprio.