terça-feira, 23 de novembro de 2021

Mário de Carvalho - «Interessa-me prosseguir este caminho de uma literatura que já tem oito séculos»

CULTURA|LITERATURA

AbrilAbril

21 DE NOVEMBRO DE 2021

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Os primeiros contos ficaram na gaveta, porque os amigos o desencorajaram, mas, ao fim de 40 anos de carreira literária, Mário de Carvalho tornou-se uma voz maior da literatura portuguesa.

 

São assinalados 40 anos de carreira literária de Mário de Carvalho na próxima segunda-feira. Créditos/ Lusa

Desde que publicou os primeiros textos, Contos da sétima esfera (1981), nunca mais precisou de tomar a iniciativa de levar os textos a qualquer lado, porque passou a ser sempre solicitado, até hoje, 40 anos depois de iniciada uma carreira literária em que experimentou todos os géneros, menos a poesia, que considera «demasiado nobre para [o seu] alcance».

Para assinalar este percurso literário, Mário de Carvalho vai ser homenageado na segunda-feira, na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.

Recuando quatro décadas nas suas memórias, o escritor recorda, em entrevista à agência Lusa, o início desta caminhada, fortemente alimentada pela banda desenhada, pela biblioteca do pai e pelos amigos, mas também por estes desencorajada.

«Fui escrevendo uns contos, já desde há algum tempo que escrevia, desde os anos [19]60/70. Escrevi algumas coisas que mostrei a amigos meus que me desencorajaram: ‘Os surrealistas já fizeram isto há muitos anos, deixa-te disto’. E eu deixei».

Mas a necessidade de escrever foi-se impondo, como um «impulso difícil de contrariar», o de lançar no papel as ideias, as situações, as personagens que lhe ocorriam.

Mário de Carvalho, hoje com 77 anos, acredita que isso teve que ver com o seu «mundo de leituras«, porque em jovem foi «um voraz leitor de toda a espécie de livros».

Assim, foram-se somando os contos até que os levou à editora Vega, na altura dirigida pelo escritor João de Melo, que gostou dos textos.

«A partir daí, foram editados e passei a ser solicitado, ou seja, tenho ideia de que nunca tomei a iniciativa de levar os meus textos a qualquer lado, porque houve sempre alguém que mos pediu até hoje, livro após livro, editora após editora», contou.

Na altura já exercia advocacia, a área em que se licenciou e para a qual tinha a vida orientada.

«Os contos foram surgindo a pouco e pouco e, na altura, de um advogado que escrevia livros, passei a ser um escritor que também era advogado», até que finalmente deixou a advocacia.

A escrita ficcional impôs-se-lhe por gosto e sente que a certa altura adquiriu facilidade em criar situações e personagens, confrontando-as sempre com o que já conhecia, quer da literatura, quer da Banda Desenhada.

«Fui um leitor fiel e constante de uma revista que se chamava Cavaleiro Andante e de outra que circulava muito entre miúdos que era o Mundo de Aventuras. Isto fornecia-me um manancial de personagens, de situações complicadas, de avanços e recuos», recorda.

Para o então jovem Mário de Carvalho, era «muito interessante essa consulta semanal do Cavaleiro Andante, a troca de impressões com os colegas que liam a mesma revista», e isso deu-lhe «alguma agilidade na conceção de personagens e de situações dramáticas».

Mas também havia as «leituras sérias», e cedo começou a ler Eça de Queiroz e Aquilino Ribeiro.

«O meu pai tinha uma biblioteca grande, boa, e deixava-me mexer nos livros à vontade, a não ser em alguns livros que depois percebi que tinham um caráter erótico, que estavam numa estante lá em cima, num ponto onde não conseguia chegar. De resto facultava-me os livros e eu andava com eles, levava-os para o liceu e para onde quisesse, e ia lendo sempre».

Mais tarde foi apresentado a Jorge Luis Borges, que o deixou «absolutamente fascinado», e a outros autores latino-americanos, mas sempre foi um leitor muito variado.

«Era capaz de ler Sob a bandeira da coragem, de Stephen Crane, ao mesmo tempo tentar ler O Malhadinhas, do Aquilino – e digo tentar porque não era nada fácil -, mas também ia avançando para o Eça e algum Camilo Castelo Branco».

Mário de Carvalho reconhece que havia um contexto que facilitava tudo, o facto de os seus amigos também serem bons leitores, o que proporcionava que trocassem e comentassem livros.

«Encontrávamo-nos todos os dias e, entre as muitas coisas sobre que se conversava, nomeadamente política, também se conversava sobre livros, e os livros circulavam».

Ao longo da sua vida literária, o escritor já passou por vários géneros, diz que tem «o gosto de borboletear», varia muito e muda de registo, o que, confessa, lhe dá algum prazer.

Tem andado pelo conto, pelo romance e por várias épocas, conforme o que se lhe apresenta, mas nunca escreveu poesia, nunca teve «esse atrevimento».

«Não sei quem foi que disse, que isto da poesia é mais da arte da magia do que outra coisa. Não é propriamente literatura, é magia e eu de mago não tenho nada, por isso não, nunca, a não ser, talvez, na adolescência tenha feito um poema ou outro, como os outros faziam, mas nunca me atrevi a ir para esse terreno, que me parece demasiado nobre para o meu alcance».

A escrita de Mário de Carvalho também é feita de obsessões, de certos temas que se impõem e que não o deixam descansar enquanto não estão prontos.

Foi o caso de um livro que o «obcecou durante anos» e que seria publicado mais tarde com o título O livro grande de Tebas, Navio e Mariana, e que teve que ver com uma reminiscência que tinha desde miúdo: estava a ver uma revista policial e havia uma referência à cidade de Tebas, e esse nome ficou-lhe «a ressoar durante anos».

A mudança de registo literário em Mário de Carvalho relaciona-se sempre com o tema que escolhe tratar, e o autor afirma ter muito cuidado em manter uma linguagem adequada ao assunto e à época, estudando previamente para isso, se for o caso: «Tenho cuidado na seleção de vocábulos, mas também o próprio ritmo das frases é diferente».

«Temos que ter cuidado com isso e procurar encontrar um tom, o ritmo, ler coisas de época e procurar cumprir o pacto com o leitor, o célebre pacto com o leitor, ou seja, se eu estou a escrever sobre o século XVIII, estamos no século XVIII e não há frases, nem realidades posteriores. Se estou a escrever sobre os anos 20, estamos no mundo dos anos 20 e penso que o leitor espera isso, que o autor se informe e não entre pela inverosimilhança».

Sobre uma apreciação que por vezes é feita às palavras que utiliza, como sendo difíceis, Mário de Carvalho considera não ser muito correta, pois limita-se a utilizar as palavras que lhe parecem adequadas à situação que está a ser tratada, para «acentuar mais matizes e procurar certos efeitos».

«Não tenho nenhuma pretensão de deslumbrar com palavras difíceis, de forma nenhuma. As palavras que utilizo não são difíceis para mim nem para outras pessoas da minha geração e, portanto, se alguém não as conhece, o problema não é meu, o problema é que as pessoas estão muito ligadas ao vocabulário básico elementar das televisões e das rádios, quando o nosso vocabulário atual é muitíssimo mais versátil e muitíssimo mais rico e está lá para ser empregado, não está para ser omitido».

Se isso significa vender menos livros, é algo que não o aflige, porque não é essa a razão por que escreve: «Interessa-me prosseguir este caminho de uma literatura que já tem oito séculos, que não é de agora, e de vez em quando não é mau darmos uma espreitadela para aquilo que está lá para trás e que nos formou».

Os trovadores, os homens do renascimento, escritores «perfeitamente fascinantes, como Gil Vicente», ou o «espantoso mestre da língua e da clareza» Padre António Vieira são alguns dos autores que de vez em quando revisita.

Olhando para trás, não tem razões de queixa: «Nunca fui um chamado best seller, mas os meus livros têm-me corrido razoavelmente e tanto que, ao fim de 40 anos, eu ainda estou para aqui», já com «uma certa tranquilidade», sem essa «efervescência e emoção de outros tempos».

«As coisas seguem o seu ritmo e penso que, sem falsas modéstias, há um lugar marcado na nossa literatura que não é minha, não fui eu que inventei, são oito séculos, e eu sinto-me a trabalhar nessa base, sou uma voz que se soma a oito séculos de experiência literária e de avanços e recuos neste campo da literatura».

Nascido em Lisboa, em 1944, combatente da ditadura, que o levou à prisão, Mário de Carvalho estreou-se na literatura aos 37 anos, com Contos da sétima esfera, publicados em 1981.

Desde então, entre romance, novela, conto, ensaio, crónica, teatro e literatura para a infância, soma mais de 30 títulos, entre os quais se encontram Um deus passeando pela brisa da tardeA inaudita guerra da avenida Gago CoutinhoOs alferesEra bom que trocássemos umas ideias sobre o assuntoApuros de um pessimista em fugaFantasia para dois coronéis e uma piscina e Se perguntarem por mim, não estou seguido de Haja harmonia.

Os prémios chegaram desde logo com as primeiras obras, como o Prémio Cidade de Lisboa e o Prémio D. Dinis, atribuídos ainda durante a década de 1980.

Entre outros, recebeu os Grandes Prémios de Romance e Novela, Conto e Teatro da Associação Portuguesa de Escritores (APE), o prémio do PEN Clube Português, de narrativa e de ensaio, o prémio internacional Pégaso de Literatura, o Prémio Fernando Namora, por duas vezes, o Grande Prémio de Literatura dst e o Prémio Vergílio Ferreira, de carreira, da Universidade de Évora.

Em 2020, recebeu, pela quarta vez, um grande prémio da APE, este de Crónica e Dispersos Literários, pelo livro O que eu ouvi na barrica das maçãs.

No ano passado publicou igualmente Epítome de pecados e tentações, uma nova coletânea de contos e novelas.

Lusa

https://www.abrilabril.pt/cultura/interessa-me-prosseguir-este-caminho-de-uma-literatura-que-ja-tem-oito-seculos

 


segunda-feira, 22 de novembro de 2021

Poemas de Filipe Chinita

 * Filipe Chinita

madrugada 
de solitário
(prazer)
amando-
me
.
nada 
como 
à 01.50 da madrugada
me apetecer... 
esquartejar 
metade 
de 
um 
dos (meus) duros queijos 
de ovelha alentejanos 
mergulhados... 
durante 
meses
em frascos 
de azeite 
e louro
colocando-o 
aprisionado na mão esquerda 
e a navalha de a minha direita
cortando-o... nas mais finas 
em que me possa
eu exprimir
deixando
-lhe 
brilhar... 
os interiores olhinhos 
repassados de prazer
que lhe dão 
um sabor 
único...
tão 
único... 
que me deu
agora mesmo 
mesmo! a estas horas 
uma desalmada fome
de me deixar inundar 
da sua intensidade 
na
minha boca...
tomando-a toda.
de sabor...
tomando-me todo.
de prazer... 
até 
ao cérebro
.
fj
02.02
21.11.2021
13:19



amar... é perdermo-nos de nós.no outro
fundindo-nos... num outra identidade.
mútua. e não mais individual.
nem que por momentos
.
fj
12.59
22.11.2021


diria mais...
amar... é sermos o outro 
e não mais (só) nós.próprios

sexta-feira, 19 de novembro de 2021

Ricardo Reis - Deixemos, Lídia, a ciência que não põe

* Ricardo Reis 

Deixemos, Lídia, a ciência que não põe

Mais flores do que Flora pelos campos,

        Nem dá de Apolo ao carro

        Outro curso que Apolo.

Contemplação estéril e longínqua

Das coisas próximas, deixemos que ela

        Olhe até não ver nada

        Com seus cansados olhos.

Vê como Ceres e a mesma sempre

E como os louros campos entumece

        E os cala pràs avenas

        Dos agrados de Pã.

Vê como com seu jeito sempre antigo

Aprendido no orige azul dos deuses,

        As ninfas não sossegam

        Na sua  dança eterna.

E como as hemadríades constantes

Murmuram pelos rumos das florestas

        E atrasam o deus Pã

        Na atenção à sua flauta.

Não de outro modo mais divino ou menos

Deve aprazer-nos conduzir a vida,

        Quer sob o ouro de Apolo

        Ou a prata de Diana.

Quer troe Júpiter nos céus toldados,

Quer apedreje com as suas ondas

        Neptuno as planas praias

        E os erguidos rochedos.

Do mesmo modo a vida é sempre a mesma.

Nós não vemos as Parcas acabarem-nos.

        Por isso as esqueçamos

        Como se não houvessem.

Colhendo flores ou ouvindo as fontes

A vida passa como se temêssemos.

        Não nos vale pensarmos

        No futuro sabido

Que aos nossos olhos tirará Apolo

E nos porá longe de Ceres e onde

        Nenhum Pã cace à flauta

        Nenhuma branca ninfa.

Só as horas serenas reservando

Por nossas, companheiros na malícia

        De ir imitando os deuses

        Até sentir-lhe a calma.

Venha depois com as suas cãs caídas

A velhice, que os deuses concederam

Que esta hora por ser sua

Não sofra de Saturno

Mas seja o templo onde sejamos deuses

Inda que apenas, Lídia, pra nós próprios

Nem precisam de crentes

Os que de si o foram.

s.d.

Odes de Ricardo Reis . Fernando Pessoa. (Notas de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.) Lisboa: Ática, 1946 (imp.1994). 

 - 162.

 

quarta-feira, 3 de novembro de 2021

Daniel Faria - Homens que são como lugares mal situados

* Daniel Faria

Homens que são como casas saqueadas
Que são como sítios fora dos mapas
Como pedras fora do chão
Como crianças órfãs
Homens sem fuso horário
Homens agitados sem bússola onde repousem
Homens que são como fronteiras invadidas
Que são como caminhos barricados
Homens que querem passar pelos atalhos sufocados
Homens sulfatados por todos os destinos
Desempregados das suas vidas
Homens que são como a negação das estratégias
Que são como os esconderijos dos contrabandistas
Homens encarcerados abrindo-se com facas
Homens que são como danos irreparáveis
Homens que são sobreviventes vivos
Homens que são como sítios desviados
Do lugar