domingo, 26 de dezembro de 2021

Um texto natalício de Santos Maria de Fátima


* Santos Maria de Fátima 

Nem a rapariguita seria virgem ao parir a criança, nem se sabe se o rapaz, a traccionar o jumento em que ela se sentava, muito prenha, seria carpinteiro ou se seria outra a sua profissão.

De que, já adulto,  o menino tenha ficado o nazareno por ter nascido em Nazaré, não há certeza de que seja verdade; e nem sabemos, com o confirmar de documentos, escavações, pedacinhos arqueológicos, que fosse meia noite certa quando a criança mostrou ao mundo o cocurito da cabecita entre as pernas de sua mãe que o dava a este mundo. 

Sabemos tão pouco dessa realidade que nem temos certeza se foi há dois mil e vinte e dois anos, se antes ou depois, o que, a mexer-se, transtornaria, entre outras coisas, o nosso prório dia de aniversário.

Sabemos, isso sim, que andavam os romanos a dizimar os povos por  essa África e Ásia e Europa adiante. Dos romanos a gente sabe, comprovado nas muitas cabeças e vestimentas em pedra cheias de nervuras e em colunas quase sempre sem tectos e em pavimentos feitos de muitos quadradinhos que inundam os maiores museus; ou nos enormes aquedutos e estradas e pontes que ficaram a dizer-nos: eles andaram por aqui.

Mas, terão andado, lá pelo oriente, a matar recém nascidos numa caça a um presumível salvador daquelas gentes massacradas, já ao tempo, pelos poderosos?! 

Vamos supor que Herodes, sim senhora, usou esse modo de limpeza, assim o diria eu, para calar o povo; mas sabermos de pormenores de uma manjedoura e de um burro e de uma vaquinha, e saber que não tiveram lugar que os abrigasse, a mulher prenha e o seu esposo; e saber onde acabou por ser o local de nascimento duma dessas crianças salva das mãos dos soldados; e saber, ainda mais, as horas certas do primeiro berro desse que contam pelos catecismos, disso não temos prova concludente; isso, a gente conta de modo não comprovado. 

Ora eu que me pelo por uma boa ficção, eu que dou dinheiro por um mentiredo bem esgalhado, fico, a cada ano, embevecida do facto insofismável de milhares e mais milhares de gentes fazerem a festa em torno do que nada mais é que uma histórinha deliciosa e linda num enlear de mentirinhas. 

É que nem a estrela de Belém, assim chamada, aquela que montamos no topo desse outro enigma que é a árvore, terá sido um fenómeno dos céus científicamente comprovado. 

É assim que eu, a cada ano, numa devoção silenciosa que nem explico, medito no quanto somos, homens e mulheres desde século XXI, necessitados de rituais mágicos, de uma história de fadas que nos acalente o sono.

(MF)

 https://www.facebook.com/fatima.santos.378/posts/10224108928043866

sexta-feira, 24 de dezembro de 2021

Carlos Coutinho - Libações

* Carlos Coutinho  

   AFINAL, não vai haver cabrito assado logo à noite na consoada, como chegou a estar planeado. Mas, uma vez mais, dentro de algumas horas, ninguém sabe quantas, uma judia universalmente consagrada como a Virgem vai dar à luz, nas palhas ásperas de uma manjedoura de último recurso, um bebé que há-de abrir uma nova era na história do mundo. 

   Por acaso, a Igreja Católica, através do Papa Júlio I, só no século IV acabou por descobrir que foi a 25 de Dezembro que o Messias nasceu, facto que os ortodoxos situavam e ainda situam entre 6 e 7 de Janeiro. O que é certo é que o futuro rabino, ou “meu mestre” na semântica bíblica, teve a aquecê-lo o bafo de um burro e de uma vaca, ambos muito religiosos, e uma semana depois, conduzidos por uma estrela móvel, três monarcas absolutos, como todos eram então, foram a Belém oferecer aos pais do menino potes de ouro, de incenso e de mirra. 

   Aconteceu tudo isto há 2 021 anos e, por razões insondáveis, não vai haver cabrito assado nesta consoada, mas as rabanadas não vão faltar, apesar de estarmos na Margem Sul, com as luzes de Lisboa a insinuarem-se na escuridão aquosa da longínqua Lisboa inverniça.

   Que eu saiba, não desceu ainda pela chaminé o Pai Natal com as suas prendas de sapatinho, todas, aliás, já compradas e embaladas, mas a mãe Natália vai participar no multifamiliar repasto, o que acontece pela primeira vez na minha longa e atribulada vida. 

   Devo frisar que esta senhora é mãe do anfitrião, possuindo ele o nome de Ramiro, um rei visigodo que deixou muitos Ramires ilustres na descendência. Um deles chegou mesmo a acolher em sua casa à beira-Douro o poveiro e melífluo Eça de Queirós. 

   Esse remoto rei ibérico teria agora a idade do Menino que está para de novo nascer em Belém, calcule-se.

   Estou mais que preparado para a comezaina e não me esqueço de que foi igualmente num dia 24 de Dezembro, como o de hoje, mas há 287 anos, que o grande iluminista Voltaire, pai das melhores dúvidas e metáforas panglossianas, publicou as suas “Cartas Filosóficas”, escancarando a porta à conquista de quase todas as certezas que valem a pena. 

   Também Alves Barbosa, o lendário ciclista do Sangalhos que marcou pontos na Volta à França de 1956, nasceu hoje em Vila Verde, perto da Figueira da Foz, só que em 1931. 

   Além do bacalhau e da troncha cozidos com batatas, não são escassos, como se vê, os pretextos que tenho para uma boa libação, esta noite, com a persistente chuva, lá fora, a dar de beber à agricultura sedenta de 2021.

https://www.facebook.com/carlos.coutinho.71868964/posts/455101629463184

quinta-feira, 23 de dezembro de 2021

António Galopim de Carvalho - AÇORDA DE MÃO NO BOLSO

* António Galopim de Carvalho 

Nesses anos da minha infância, a fome nos campos do Alentejo era muita. Sem um quinhão de terra para cultivarem, as famílias viviam das magras e esporádicas jornas, ao sabor dos caprichos do Sol, das chuvas e das geadas. Sem trabalho, os cifrões cresciam no livro dos fiados, na venda da aldeia, sem esperança de os ver reduzir ou apagar. Os homens, nunca as mulheres, acabavam por vir para a cidade, pedir esmola. Vinham aos grupos de três ou quatro, não para se imporem pelo número, mas porque se envergonhavam e intimidavam se viessem sozinhos.
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Batiam-nos à porta, e tendo vindo abrir-lha, cumprimentavam de chapéu na mão e o que falava apenas dizia que não tinham trabalho e que precisavam de levar de comer para os filhos. Voltando à cozinha, a chamar a mãe, dizia:
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- Estão ali os trabalhadores do campo a pedir!
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Não lhes chamávamos pobrezinhos nem, muito menos, mendigos porque, de facto, não o pareciam nem eram. Tinham dignidade e majestade estes homens e, na resignação que mostravam, adivinhava-se a revolta dentro do peito. Pediam pão ou algum dinheiro para comprarem avio que levassem de volta para casa. 

A minha mãe respeitava-os profundamente e dava-lhes o que podia, como se fossem irmãos. Sem que o dissesse abertamente, ensinou-me a amá-los. E, embora a vida fizesse mais de mim um menino, um rapaz e um homem da cidade, sempre me senti filho do campo e irmão dos camponeses

Com eles aprendi o que é “comer pão com navalha”, uma forma muito expressiva de dizer pão sem conduto, e que “açorda de mão no bolso”, no seu sentido crítico pleno de humor, muito comum neste povo, significa que, não havendo mais do que o caldo e o pão migado, só se usava a mão que pegava na colher.

https://www.facebook.com/Prof.Galopim/posts/2755750954731409

sábado, 18 de dezembro de 2021

José Gameiro - Natal sem pandemia

DIÁRIO DE
UM PSIQUIATRA

 José Gameiro 


Apesar de há um ano a maior parte das famílias se ter reunido, decidimos ficar sozinhos

“Se calhar o que eu lhe vou dizer vai chocá-lo. Não me leve a mal, isto é apenas um desabafo e um pedido de absolvição.” Pensei, será que ao fim de tantos anos desta profissão já me olham como se fosse um padre? Reconheço que alguns que são bem mais eficazes do que nós. Compreendem, fazem pensar, discutem alternativas e absolvem, ou pelo menos as pessoas sentem-se menos culpadas depois de conversarem. Não precisei de a esclarecer, era obviamente uma metáfora.

— Confesso, desculpe retiro o confesso, mas não consigo encontrar outra palavra. Os Natais para mim nunca foram grande coisa. Na infância eram bons, a excitação dos presentes, a família toda reunida, a noite em quase não se dormia. Depois vieram as confusões. Mãe para um lado, pai para outro. Lembro-me perfeitamente de pensar que não queria crescer, depois claro que compreendi, mas dizia aos meus pais que mais valia terem estado quietos, porque é que casaram? Mas pela boca morre o peixe e casei-me. Não me venho queixar do meu marido, mas quando o conheci vinha com brindes. Sabe o que é?

Acenei com a cabeça e um sorriso, mas não lhe disse que atualmente uma parte significativa do trabalho com famílias e casais tem a ver com “os meus, os teus e os nossos” e as confusões inerentes a estas dinâmicas.

— Nem sempre foi fácil a relação com as minhas enteadas, ainda por cima sempre viveram mais connosco do que a mãe e o padrasto. Mas quando começou a pandemia a situação inverteu-se. A mãe vive fora da cidade, numa casa grande, cheia de espaço, foi mais fácil estarem lá e terem aulas virtuais. Ficámos os dois sozinhos, nunca tivemos filhos e não estou arrependida, pelo que vejo à minha volta, só dão chatices. Essa coisa do instinto maternal é uma grande treta.

Penso que a senhora não se apercebeu, mas qualquer coisa me incomodou na frase dela, apesar de nunca se falar do instinto paternal. Já é tempo de os homens terem algum instinto, além do sexual...

— Mas onde é quero chegar é ao Natal. Nunca consegui convencer o meu marido a irmos embora, só os dois para qualquer lado quentinho. Já não tenho pais, ele também não, mas sempre me disse que não conseguia estar sem as filhas. Eu até posso perceber, mas sempre foi uma grande seca. Ir levar as meninas, ir buscar as meninas, fazer centenas de quilómetros em dois dias, só para comemorar um dia do ano... Não lhe sei explicar, mas nunca consegui ter uma ligação forte com as minhas enteadas. Deve ser a falta de laços biológicos, vocês é que sabem explicar.

Não respondi a esta afirmação/pergunta, mas sei que nem sempre é assim, algumas destas famílias até criam laços fortes, mas não podem ter o progenitor que está do outro lado a dificultar-lhes a vida.

— Com a pandemia, e apesar de no último Natal a maior parte das famílias se ter reunido, decidimos que era mais prudente ficarmos sozinhos. Ajudou muito o ter feito uma surpresa. Um dos poucos países que continuava aberto era o México. Uns dias de sonho, uma verdadeira lua de mel, só os dois. O meu maior desejo era que voltasse a haver confinamento. Não desejo mal a ninguém, mas foi tão bom.

Estava na altura de voltar a falar na absolvição.

— O meu papel não é culpar as pessoas, bem basta a culpa que carregam, tantas vezes injusta. Penso que é mais tentar compatibilizar os seus desejos com a realidade, com o menor sofrimento possível.

Enganei-me na “deixa” que lhe dei.

— Bem me parecia que me iria ajudar. Qual é a sugestão que me faz para ter uma boa desculpa para convencer o meu marido a ir para o calor?

https://leitor.expresso.pt/semanario/semanario2564/html/revista-e/vicios/diario-de-um-psiquiatra/natal-sem-pandemia