segunda-feira, 27 de maio de 2019

Bertold Brecht - Ouvimos dizer que estás cansado

* Bertold Brecht

Ouvimos dizer que estás arrasado.
Que já não podes andar de cá para lá.
Que estás muito cansado.
Que já não és capaz de aprender.
Que estás liquidado.
Não se pode exigir de ti que faças mais.

Pois fica sabendo: nós exigimo-lo.
Se estiveres cansado e adormeceres
ninguém te acordará,
nem dirá:
levanta-te, está aqui a comida.
Porque é que a comida havia de estar ali?

Se não podes andar de cá para lá, ficarás estendido.
Ninguém te irá buscar e dizer:
houve uma Revolução. As fábricas esperam por ti.
Porque é que havia de haver uma revolução?
Quando estiveres morto virão
enterrar-te, quer tu sejas ou não culpado
da tua morte.

Tu dizes: que já lutaste muito tempo
que já não podes lutar mais.
Se já não podes lutar mais, serás
destruído.

Dizes tu: que esperaste muito tempo.
Que já não podes ter esperanças.
Que esperavas tu? Que a luta fosse fácil?
Não é esse o caso: a nossa situação é pior que tu julgavas.

É assim: se não levarmos a cabo o sobre-humano,
estamos perdidos.
Se não podermos fazer o que ninguém de nós pode
exigir, afundar-nos-emos.
Os nossos inimigos só esperam que nós nos cansemos.
Quando a luta é mais encarniçada é que os lutadores
estão mais cansados.
Os lutadores que estão cansados de mais,
perdem a batalha.

sexta-feira, 24 de maio de 2019

Alexandre O'Neill - Sigamos o cherne!

* Alexandre O'Neill

(Depois de ver o filme O Mundo do Silêncio de Jacques-Yves Cousteau)

Sigamos o cherne,minha amiga!
Desçamos ao fundo do desejo
Atrás de muito mais que a fantasia
E aceitemos,até,do cherne um beijo,
Senão já com amor,com alegria...

Em cada um de nós circula o cherne,
Quase sempre mentido e olvidado.
Em água silenciosa de passado
Circula o cherne:traído
Peixe recalcado...

Sigamos,pois,o cherne,antes que venha,
Já morto,boiar ao lume de água,
Nos olhos rasos de água,
Quando,mentido o cherne a vida inteira,
Não somos mais que solidão e mágoa...

quinta-feira, 23 de maio de 2019

José Gomes Ferreira - Chove

* José Gomes Ferreira

 Chove...

Mas isso que importa!,
se estou aqui abrigado nesta porta
a ouvir a chuva que cai do céu
uma melodia de silêncio
que ninguém mais ouve
senão eu?

Chove...

Mas é do destino
de quem ama
ouvir um violino
até na lama.


Jorge de Sena - Sinais de fogo

* Jorge de Sena 


Sinais de fogo, os homens se despedem.
exaustos e tranquilos, destas cinzas frias.
E o vento que essas cinzas nos dispersa
não é de nós, mas é quem reacende
outros sinais ardendo na distância
um breve instante, gestos e palavras.
ansiosas brasas que se apagam logo.
Jorge de Sena
in Visão Perpétua
Julho/Agosto 1967 

Manuel Veiga- Argila do Sonho ...

* Manuel Veiga

Neste arfar dos homens um destino mudo.
Suspenso. Como as labaredas de um incêndio.
Pressentido apenas no voo inesperado
Dos insectos. E no delírio do restolho.

Somos o sopro que fecunda o fogo. Elos de um percurso
Que os ventos traçam. E de que os deuses zombam...

E, no entanto, nesta ardência da vontade (que se expande)
Perdura uma febre e uma surda espera.
Como se a Festa de outrora
Mais que festa fosse aurora...

Ou uma palavra nova. A despontar no léxico
E na gramática do Mundo...
Manuel Veiga, in Perfil dos Dias

quarta-feira, 22 de maio de 2019

poesia de filipe chinita


perguntas sem respostas.
só para pensarmos
um pouco
entre...
nós
amigos e camaradas
de verdade!
.
1.
não
nos basta
nem bastou...
a extrema-direita
fascista e
nazi
.
nem
nos basta! a besta... actual...
.
quanto mais...
toda a direita.outra...
dita democrática
a
de todo o capital
corrupto.financeiro.e especulativo.de uns poucos...

que em não mais de duas mãos
dominam o todo o mundo
o mundo
todo!

que
são estes!
os nossos reais inimigos...

que não o povo! ignorante... que ainda neles vota

2.
mui.to menos... nos bastam
os que se dizem... de socialistas
que nunca! o foram... sequer...
sociais-democratas... sendo
que nem isso!
sabem...
o que
seja...
foi
é

3.
tivemos ainda sempre
a extrema-esquerda...

que agora se passou
para a nossa
direita

e
ainda assim...
sempre a combatemos
e continuamos a combater...

ñunca saciados de novos combates.pela verdade...

quando são (eles)
os que sempre.... mais perto... (de nós) estiveram...
no combate contra os capitalistas e o capital...
e no projecto de sociedade socialista e comunista
______________________________________
4.
e
quando não...

combatemo-nos
dentro de nós.próprios
como se inimigos.figadais

já que não bastam... (todos) os demais
______________________________________
que raio de doença.intestina é esta
que loucura.insana é esta
que nos consome.
rói e destrói
tudo!

por dentro!

em ditos 'desvios'
de esquerda e de direita

o que
paciente
denodada...
heroica.mente e vida... erguemos

em incógnitos sofrimentos e dádivas mil.hentas

____________________________________
5.
face
a tudo isto
qual é então... e com quem
a nossa política...
de alianças

e
revolução...
?!

- e
nem
já falo
dos verdes...
dos crentes...
e dos 'partidos' ditos dos animais -
.
e
note-se...
que eu sou! por todas
as quotidianas
revoluções...
de em tudo!
no mundo
na morte
e
na vida

mas...
se
(nos) são todos! inimigos...
com quem então faremos
as revoluções que
nos esperam
_____________________________________
6.
e
ainda assim...
entre tantos inúmeros e humanos erros

eu.comunista
- desde que (de mim) me lembro -

solidamente marxista-leninista
materialista dialéctico
e histórico

ateu.por natureza e por filosofia
.
(eu) só em nós! posso votar

e só de nós posso ser
pertença...

mesmo
sem
tença...

alguma
.
que só por mente
por sangue.
por pele!
e por amor aos
humanos...
e
aos meus/nossos
ideais.comuns

aqui estou
fj
..

Gabriel García Márquez revela o 'Escândalo do Século'



Entre 1950 e 1984 a componente jornalista de Gabriel García Márquez era uma parte muito importante do autor de Cem Anos de Solidão. A prova está na reunião de 50 textos do Nobel colombiano em O Escândalo do Século.
21 Maio 2019 — 15:54

Nenhum leitor fica indiferente à prosa do escritor Gabriel García Márquez e ainda mais quando se trata da escrita enquanto jornalista, a profissão que o colombiano mais gostava e que o volume que chega às livrarias na próxima semana mostra em 50 exemplos de todo o género.

Intitulado O Escândalo do Século, reflete uma grande parte da vida profissional de Gabo, o diminutivo que os mais próximos lhe chamavam, e resulta de uma seleção feita pelo seu editor Cristóbal Pera. Diga-se que Gabriel García Márquez disse uma vez que desejava ser lembrado pelo jornalismo: «Não quero que me recordem por Cem Anos de Solidão, nem por aquilo do Prémio Nobel, mas sim pelo jornal.»
Apesar de se poder colocar em dúvida a questão da (des)importância do Nobel e do valor da literatura para si, é preciso não esquecer que García Márquez só se tornou conhecido no mundo inteiro devido ao romance extraordinário Cem Anos de Solidão e ao Prémio da Academia Sueca em 1982. E aí a produção jornalística ganhou outro valor ainda maior.
Nascido em Aracataca em 1927, Márquez foi batizado "pai do realismo mágico latino-americano", o responsável pelo grande boom da literatura daquele continente em todo o mundo. Aliás, nesta recolha surge um texto, A Casa dos Buendía, que fornece pistas para a escrita desse romance. Que começa assim: "Quando Aureliano Buendía regressou à povoação, a guerra civil tinha terminado. Talvez ao velho coronel nada restasse da áspera peregrinação. Restava‑lhe apenas o título militar e uma vaga inconsciência do seu desastre."
Quanto aos outros 49 textos, há de tudo para mostrar a capacidade narrativa do escritor colombiano. Uma importante introdução de Jon Lee Anderson, esclarece o propósito da maior parte dos artigos reunidos em O Escândalo do Século, reafirmando o prazer de García Márquez no jornalismo: "Afora tudo isto, Gabo foi jornalista; o jornalismo foi de certa maneira o seu primeiro amor e, como todos os primeiros amores, o mais duradouro. Esta profissão proporcionou ‑lhe o primeiro sustento como escritor, coisa que ele recordou sempre; a sua admiração pelo jornalismo chegou ao ponto de proclamar em certa ocasião, com a sua generosidade característica, que era 'o melhor ofício do mundo'".
Na introdução do editor, encontram-se também testemunhos desse amor: "Sou um jornalista, fundamentalmente. Toda a vida fui jornalista. Os meus livros são livros de jornalista, embora se veja pouco." Explica Cristóbal Pera que a seleção de cinquenta textos de Gabriel García Márquez, publicados em jornais e revistas entre 1950 e 1984, são "escolhidos entre a monumental Obra Periodística em cinco volumes compilados por Jacques Gilard e tem o propósito de levar aos leitores da sua ficção uma amostra do seu trabalho na imprensa e em revistas, fruto do ofício que sempre considerou a fundação da sua obra."
Para Pera, os leitores da sua ficção "encontrarão em muitos destes textos uma voz reconhecível", bem como a "formação dessa voz narrativa através do seu trabalho jornalístico". Como afirma Gilard, refere o editor, "o jornalismo de García Márquez foi principalmente uma escola de estilo e constituiu a aprendizagem de uma retórica original". Não deixa de referir que "alguns dos seus primeiros contos precedem as suas crónicas na imprensa, mas o jornalismo foi o ofício que permitiu a Gabriel García Márquez deixar os seus estudos de Direito, começar a escrever em El Universal de Cartagena e em El Heraldo de Barranquilla, e viajar até à Europa como correspondente de El Espectador de Bogotá. No seu regresso, e graças ao seu amigo e colega jornalista Plinio Apuleyo Mendoza, prosseguiu o seu trabalho jornalístico na Venezuela em revistas como Élite ou Momento, até se instalar em Nova Iorque, como correspondente da agência cubana Prensa Latina."
A partir daí abandona temporariamente o ofício para escrever Cem Anos de Solidão e o resto é história:
O DN faz hoje a pré-publicação de um dos textos incluídos emO Escândalo do Século.
PRECISA‑SE DE UM ESCRITOR
Por Gabriel García Márquez

"Perguntam ‑me com frequência o que é que me faz mais falta na vida, e eu respondo sempre a verdade: «Um escritor.» A piada não é tão parva como parece. Se alguma vez me deparasse com o compromisso inevitável de escrever um conto de quinze páginas para esta noite, recorreria às minhas incontáveis notas atrasadas e tenho a certeza de que chegaria a tempo à tipografia. Talvez fosse um conto muito mau, mas o compromisso seria cumprido, que ao fim e ao cabo é a única coisa que quis dizer com este exemplo de pesadelo. Em contrapartida, não seria capaz de escrever um telegrama de parabéns nem uma carta de pêsames sem dar cabo do fígado durante uma semana.

Para estes deveres indesejáveis, como para tantos outros da vida social, a maioria dos escritores que conheço quis apelar aos bons ofícios de outros escritores. Uma boa prova do sentido quase bárbaro da honra profissional é sem dúvida esta nota que escrevo todas as semanas, e que por estes dias de outubro vai fazer os seus primeiros dois anos de solidão. Só uma vez faltou neste canto, e não foi por culpa minha: por uma falha de última hora nos sistemas de transmissão. Escrevo‑a todas as sextas‑feiras, das nove da manhã até às três da tarde, com a mesma vontade, a mesma consciência, a mesma alegria e muitas vezes com a mesma inspiração com que teria de escrever uma obra‑prima.
Quando não tenho o assunto bem definido deito‑me mal na noite de quinta‑feira, mas a experiência ensinou‑me que o drama se resolverá por si só durante o sono e que começará a fluir de manhã, a partir do instante em que me sente diante da máquina de escrever. Não obstante, tenho quase sempre vários assuntos pensados antecipadamente, e pouco a pouco vou recolhendo e ordenando os dados de diferentes fontes e verificando‑os com muito rigor, pois tenho a impressão de que os leitores não são tão indulgentes com as minhas argoladas como talvez o fossem com o outro escritor de que preciso.
O meu primeiro propósito com estas crónicas é que todas as semanas ensinem alguma coisa aos leitores comuns e correntes, que são os que me interessam, embora esses ensinamentos pareçam óbvios e talvez pueris aos sábios doutores que tudo sabem. O outro propósito - o mais difícil - é que estejam sempre tão bem escritas como eu seja capaz de fazer sem a ajuda do outro, porque sempre achei que a boa escrita é a única felicidade que se basta a si própria. Impus‑me esta servidão porque sentia que entre um romance e outro me restava muito tempo sem escrever, e pouco a pouco - como os jogadores de beisebol - ia perdendo o aquecimento do braço. Mais tarde, essa decisão artesanal converteu‑se num compromisso com os leitores, e hoje é um labirinto de espelhos do qual não consigo sair. A não ser que encontrasse, claro está, o escritor providencial que saísse por mim. Mas receio que já seja demasiado tarde, visto que as únicas três vezes que tomei a determinação de não escrever mais estas crónicas mo impediu, com o seu autoritarismo implacável, o pequeno argentino que também eu tenho dentro.
A primeira vez que o decidi foi quando tentei escrever a pri‑ meira, depois de mais de vinte anos de não o fazer, e precisei de uma semana de galeote para a terminar. A segunda vez foi há mais de um ano, quando estava a passar uns dias de descanso com o general Omar Torrijos na base militar de Farallón, e o dia estava tão diáfano que apetecia mais navegar do que escrever. «Mando um telegrama ao diretor a dizer que hoje não há crónica, e pronto», pensei, com um suspiro de alívio. Mas não consegui almoçar por causa do peso da má consciência e, às seis da tarde, fechei‑me no quarto, escrevi numa hora e meia a primeira coisa que me ocorreu e entreguei a crónica a um ajudante de campo do general Torrijos para que a enviasse por telex a Bogotá, com o pedido de que a mandassem de lá para Madrid e para o México. Só no dia seguinte soube que o general Torrijos tivera de ordenar o envio de um avião militar ao aeroporto do Panamá, e dali, de helicóptero, ao palácio presidencial, de onde me fizeram o favor de distribuir o texto por algum canal oficial.
A última vez, faz agora seis meses, que descobri ao acordar que já tinha maduro no coração o romance de amor que tanto tinha ansiado escrever desde há tantos anos e que não tinha outra alternativa senão nunca o escrever ou submergir‑me nele de imediato e a tempo inteiro. Não obstante, na hora da verdade, não tive tomates suficientes para renunciar ao meu cativeiro semanal, e pela primeira vez estou a fazer uma coisa que me pareceu sempre impossível: escrevo o romance todos os dias, letra por letra, com a mesma paciência, e oxalá com a mesma sorte, com que as galinhas debicam nos pátios, e ouvindo cada dia mais perto os passos temíveis do animal grande da próxima sexta‑feira. Mas aqui estamos outra vez, como sempre, e oxalá para sempre.
Eu já suspeitava que nunca escaparia desta jaula desde a tarde em que comecei a escrever esta crónica na minha casa de Bogotá e a terminei no dia seguinte sob a proteção diplomática da Embaixada do México; continuei a suspeitá‑lo na estação de telégrafos da ilha de Creta, uma sexta‑feira do passado mês de julho, quando consegui entender‑me com o funcionário de turno para que transmitisse o texto em castelhano. Continuei a suspeitá‑lo em Montreal, quando tive de comprar uma máquina de escrever de emergência porque a voltagem da minha não era a mesma do hotel. Acabei de suspeitá‑lo para sempre faz apenas dois meses, em Cuba, quando tive de trocar duas vezes as máquinas de escrever porque se negavam a entender‑se comigo. Por último, levaram‑me uma eletrónica de costumes tão avançados que acabei por escrever à mão num caderno de folhas quadriculadas, como nos tempos remotos e felizes da escola primária de Aracataca.
Todas as vezes que acontecia um destes percalços apelava com mais ansiedade aos meus desejos de ter alguém que se encarregasse da minha boa sorte: um escritor. Contudo, nunca senti essa necessidade de um modo tão intenso como um dia de há muitos anos em que cheguei à casa de Luis Alcoriza, no México, para trabalhar com ele no guião de um filme. Encontrei‑o, consternado, às dez da manhã, porque a cozinheira lhe tinha pedido o favor de escrever uma carta ao diretor da Segurança Social. Alcoriza, que é um escritor excelente, com uma prática quotidiana de caixa de banco, que tinha sido o escritor mais inteligente dos primeiros guiões para Luis Buñuel e, mais tarde, para os seus próprios filmes, tinha pensado que a carta seria um assunto de meia hora. Mas encontrei‑o, louco de fúria, no meio de um montão de papéis rasgados, nos quais não havia muito mais que todas as variantes concebidas da fórmula inicial: pela presente tenho o prazer de me dirigir a V. Ex.a para...
Tentei ajudá ‑lo, e três horas depois continuávamos a fazer rascunhos e a rasgar papel, já meio bêbedos de genebra com vermute e empanturrados de chouriços espanhóis, mas sem ter conseguido passar além das primeiras letras convencionais. Nunca esquecerei a cara de misericórdia da boa cozinheira quando voltou para vir buscar a sua carta às três da tarde e lhe dissemos sem pudor que não tínhamos conseguido escrevê‑la. «Mas é muito fácil - disse ‑nos ela, com toda a sua humildade. - Olhe lá.» Nessa altura começou a improvisar a carta com tanta precisão e tanto domínio que Luis Alcoriza se viu em apuros para a copiar na máquina com a mesma fluidez com que ela a ditava. Naquele dia - como ainda hoje - fiquei a pensar que talvez aquela mulher, que envelhecia sem glória no limbo da cozinha, fosse o escritor secreto que me fazia falta na vida para ser um homem feliz."
O Escândalo do Século
Gabriel García Márquez

Editora D. QuixoteGabriel García Márquez revela o 'Escândalo do Século'

terça-feira, 21 de maio de 2019

Alexandre O'Neill - Gaivota



* Alexandre O'Neill

Se uma gaivota viesse
trazer-me o céu de Lisboa
no desenho que fizesse,
nesse céu onde o olhar
é uma asa que não voa,
esmorece e cai no mar.

Que perfeito coração
no meu peito bateria,
meu amor na tua mão,
nessa mão onde cabia
perfeito o meu coração.

Se um português marinheiro,
dos sete mares andarilho,
fosse quem sabe o primeiro
a contar-me o que inventasse,
se um olhar de novo brilho
no meu olhar se enlaçasse.

Que perfeito coração
no meu peito bateria,
meu amor na tua mão,
nessa mão onde cabia
perfeito o meu coração.

Se ao dizer adeus à vida
as aves todas do céu
me dessem na despedida
o teu olhar derradeiro,
esse olhar que era só teu,
amor que foste o primeiro.

Que perfeito coração
no meu peito morreria,
meu amor na tua mão,
nessa mão onde perfeito
bateu o meu coração.

segunda-feira, 20 de maio de 2019

Chico Buarque - Pedro Pedreiro



* Chico Buarque

Pedro pedreiro penseiro esperando o trem Manhã parece, carece de esperar também Para o bem de quem tem bem de quem não tem vintém Pedro pedreiro fica assim pensando Assim pensando o tempo passa e a gente vai ficando prá trás Esperando, esperando, esperando Esperando o sol, esperando o trem Esperando aumento desde o ano passado para o mês que vem Pedro pedreiro penseiro esperando o trem Manhã parece, carece de esperar também Para o bem de quem tem bem de quem não tem vintém Pedro pedreiro espera o carnaval E a sorte grande do bilhete pela federal todo mês Esperando, esperando, esperando, esperando o sol Esperando o trem, esperando aumento para o mês que vem Esperando a festa, esperando a sorte E a mulher de Pedro, esperando um filho prá esperar também Pedro pedreiro penseiro esperando o trem Manhã parece, carece de esperar também Para o bem de quem tem bem de quem não tem vintém Pedro pedreiro tá esperando a morte Ou esperando o dia de voltar pro Norte Pedro não sabe mas talvez no fundo Espere alguma coisa mais linda que o mundo Maior do que o mar, mas prá que sonhar se dá O desespero de esperar demais Pedro pedreiro quer voltar atrás Quer ser pedreiro pobre e nada mais, sem ficar Esperando, esperando, esperando Esperando o sol, esperando o trem Esperando aumento para o mês que vem Esperando um filho prá esperar também Esperando a festa, esperando a sorte Esperando a morte, esperando o Norte Esperando o dia de esperar ninguém Esperando enfim, nada mais além Da esperança aflita, bendita, infinita do apito de um trem Pedro pedreiro pedreiro esperando Pedro pedreiro pedreiro esperando Pedro pedreiro pedreiro esperando o trem Que já vem Que já vem Que já vem Que já vem Que já vem Que já vem

sobre o comunismo

 * Filipe Chinita

comunista
comum.
igual.
entre iguais.
tão diferente
e único
sendo.
pobre.
entre os pobres.
humilde.
entre os humildes.
humilhado
entre os humilhados
explorado.
entre os explorados.
amante.
de todos os (meus) proletários
e amadas mulheres
de uma inteira
vida.
amante.
da paz.
de solidões silêncios e palavras.
mesmo que entre multidões...
marxista-leninista.
materialista
dialéctico
e
histórico.
ateu.
luxurioso
eros.
pecador.
de todos os pecados.
do amor ao.s outro.s
a guiar-me
a vida.
alentejano.
cidadão.da ibéria e
do vasto mundo
benfiquista.
vermelho.
amante de bmw.
e de todo o belo
e sublime...
efémero e
mortal
qual
um (breve) campo
de papoilas.
vermelhas
.
daqui
não moverei
um.só posso...

nem um
passo.

.
revolucionário
a
tempo inteiro...

de a toda
vida
.
daqui
só a morte

última etapa.da vida
- antes de ser pó e
cousa nenhuma -

me levará...

com
uma vermelha
bandeira
sobre

não tarda

feito


entre o


igual
diferente
e
único
___________________
quanto ao comunismo...
lá chegaremos!
tal como aqui
chegámos
.
fj
a
este momento.
não in.diferente
e único


sábado, 18 de maio de 2019

Lídia Borges - Coisa

* Lídia Borges


Havia um linguista consagrado,
na rua onde morava,
que abominava a palavra “coisa”.
Dizia cada coisa da palavra coisa!
Dizia, por exemplo, que “coisa”
designa substância e como tal tem nome:
pedra, nuvem, árvore…
Logo a pedra, revoltada…
que, também ela, tem nome:
granito, xisto, ardósia…
e logo o granito ameaçador:
pois que seu apelido, 
e nomes próprios:
amarelo capri, giallo antico, arabesco…
e a nuvem… cirro, cúmulos, nimbus...
e a árvore…

E tão convincente foi a argumentação
que nunca mais a coisa foi coisa,
e passou a ser, quase sempre,
a nomeação exata
do inominável.
Que coisa!...


Lídia Borges
in "Seara de Versos"

Filipe Chinita - Clepsidra

 clepsidra.s.
des.contando (o) tempo.
de vertiginosas.raras.e sempre escassas madrugadas
.
clepsidra.s.
in.vertendo (o) tempo.
desde sempre parte dos (nossos) nocturnos cenários
de sedução.desejo.
e amor
.
clepsidra.s
inventando (o) tempo
por entre...
o vermelho o negro e o branco
.
o
vermelho

rastejante...
do chão

do sofá

ou
dos corpos
como bandeiras.drapeando.de sangue
.
o
negro

de em pé!
de estantes.(d)e levantadas lombadas
de livros.sem fim.

livros.
corpos
nosso.s amor.es maior.es.
mas sempre! com a revolução à cabeça.de todos.eles.
.
que nunca mulher alguma (me) foi revolução
como me o foste.tu
em tudo! do amor
da vida
e da morte.
final revolução!
sobre nós.mesmos indivíduos
que só no colectivo.humano
recuperamos...
sentido
.
e
ainda o negro

de mesa.s e cadeiras.de costas altas.
que para tudo da imaginação
e do concreto
serviam...

bancas
e banquetas
por entre co(r)pos caídos
e morrões de cigarros já extinto
ou ainda ardendo... em pontas
quais sexos quebrados
mas ainda insistentes
de sanguíneo
querer

enquanto... o tempo
nas clepsidras
escorria
e
se esgotava (no)
sem tempo
no nosso físico esgotamento
e
contínuo
re.temperar de forças
e desejo...

por entre
tudo...

que
de tudo falavámos

como se fossemos
e.ternos dono
do tempo

seguros
que a revolução viria

na lâmina.das nossas línguas
e nas espetadas.palavras
de em pontas.de
sangue
.
e
velhos mapas ardendo
entre velas.vermelhas
que
filtravam a obscuridade
iluminada dos
rostos

sobre
um branco... - já de tudo!
de.lido...

de tudo!
o que ali em odor.es
se evaporava...
no.s ar.es -

enquanto tu... a sublime
(me/nos) abrias todo
o vasto repertório

do imaginário
e concreto
livro

das artes

do erotismo.humano!
__________________________
a
vários momentos
de aproximação
ao real

mas
tudo.tudo
começava.nos olhares!
ainda no subir das escadas
de saudade.s...

ao 3º andar.jardim suspenso
.
ele
mesmo
uma enorme
e e.terna clepsidra...

sem tempo.no tempo
.
tempo.e corpo.s
a que sempre demos o todo o uso
mesmo quando... perdulário

pois...
em contínua.revolução.de nós.mesmos
sempre vivíamos...

até porque de outra forma
nunca soubemos...
nem queríamos!
viver
.
fj
11:39

a
'página a página'
acaba de me comunicar

que
a sessão de lançamento
de 'a mulher em saltos altos'

11º livro de poesia.de filipe chinita

ficou marcada para dia 30 de Maio
5ª feira, pelas 18 horas
na Praça Verde

da
Feira do Livro
de Lisboa
.
fj

quinta-feira, 16 de maio de 2019

um poema de Miguel Torga

* Miguel Torga


Só nos é concedida
Esta vida
Que temos;
E é nela que é preciso
Procurar
O velho paraíso
Que perdemos