domingo, 2 de dezembro de 2012

Daniel Filipe - Pátria, lugar de exílio





Neste ano de 1962
não como Hazim Hikmet no avião de pedra
mas na minha cidade
livre de ir onde quiser
e no entanto prisioneiro
neste ano de 1962
exactamente
em Lisboa
Avenida de Roma número noventa e três
às três horas da tarde

Neste ano de 1962
encostado a uma esquina da estação do Rossio
esperando talvez a carta que não chega
um amor adolescente
meu Paris tão distante
minha África inútil
aqui mesmo
aqui de mãos nos bolsos e o coração cheio de amargura
cumprindo os pequenos ritos quotidianos
cigarro após o almoço
café com pouco açúcar
má-língua e literatura

Aqui mesmo a mão sei quantos graus de latitude
e de enjôo crescente
solitário e agreste
invisível aos olhos dos que amo
ignorado por ti pequeno empregado de escritório preocupado
com um erro de contas
incapaz de dizer toda a minha ternura
operária de fábrica com três filhos famintos

Aqui mesmo envolto na placidez burguesa
higienicamente limpo e com os papéis em ordem
vestido de nylon dralon leacril
com acabamentos sanitized
e lugar marcado junto ao aparelho de TV
eu
enjoado de tudo e contemporizando com tudo
eu
peça oleada do mecanismo de trituração
eu
incapaz de suicídio descerrando um sorriso-gelosia
eu
apesar de tudo vivo apesar de tudo inquieto
eu
neste ano de 1962
exatamente
não ontem mas precisamente às três horas da tarde
pela hora oficial
exilado na pátria

1ª Canção

De ti sabes o nome
a hora exacta o martelo no relógio
a escassa visão do tempo novo, a vida
sempre imatura e entanto desejada

De ti sabes a calma citadina
a distância entre a casa e o emprego o perfil
da amante
o sabor do café matinal
a maresia súbita.

De ti sabes a idade a altura o peso e o vigor
dos músculos a suave atracção
da porta do cinema
a misteriosa voz lunar palavras soltas
gagarine vostok estação espacial

De ti sabes os sinais característicos
quando pode ser escrito medido registado
em fichas passaportes cartões de identidade
Só não sabes da bala da pólvora da arma
só não sabes das mãos como as tuas plebeias
erradas mãos do povo
só não sabes do medo do ódio da terrível  impotência

Só não sabes da morte antes do tempo
exilado na pátria numa tarde de Maio

Pergunto. poderia cantar de modo alheio
dizer outras palavras como quem diz bom dia
poderia acaso ignorar o tempo a tortura a prisão
Bernardino e a pequena rosa
vermelha e orvalhada
insólita no tablier do automóvel azul
.
Poderia falar dos dias impossíveis
das manhãs sem revolta. do xadrez matemático
jogado interminavelmente
das virgens, dos poentes, do mar da minha infância
.
Poderia escrever meu amor e pensá-lo
Sem mais nada. sem a rubra mancha de sangue na parede da cela
Sem um nome ou um grito

2ª canção

Três balas detiveram companheira
meu rio em seu humano curso
Não bastou a primeira
para dobrar-me a rigidez do torso

Mísero dia, esse ! Só na morte
cumpro inteiro o destino desejado:
impassível e forte,
juvenil e alado

Três balas como um sopro de agonia,
não minha ! não da pátria ! mas dos seres
desconhecidos da zoologia,
que recebem da infâmia os seus podere.

Aqui nesta tarde de Maio
canto obsessivamente a minha pátria
Canto-a como quem ama ou sonha com o lar e refúgio
calmo braseiro fértil jardim litoral merecido
Canto-a de dentro para fora ignoto
descobri da ilha antes do mar viciosa
esperança lúbrico entardecer
Canto dizendo pátria olhos despertos
fecundado de amor
ó pátria local do único abandono
possível antes da hora
liberdade serena consentida
visão paradisíaca renascer da amizade

Canto e à minha volta o rio humano flui
adolescentes entram nos cafés
discutem-se negócios conquista-se duramente o pão quotidiano
ama-se
telefona-se
murmuram-se boatos e promessas de emprego

Aqui neste ano de 1962
primeiro de Maio
às três horas da tarde

E de novo pergunto poderei acaso dizer outras palavras
falar do tempo do relógio de ponto dos passeios aos domingos
cerrar os olhos à coreografia da violência
diariamente aprendida por entre o sal das lágrimas

Poderei esquecer como se não me pertencessem
seus nomes usuais
a decisão alegre e corajosa
que sombreia de medo o sono dos carrascos
Uma mulher desliza
meus olhos vão com ela presos ao ondular das suas ancas

Ah mas que também o amor me não distraia
que eu possa manter-me lúcido e desperto
ávido
estátua imóvel de proa
terrível como a angústia
neste primeiro de Maio de 1962
às três horas da tarde
precisamente não antes nem depois
não ontem amanhã ou dia incerto de qualquer mês e ano
mas HOJE
às TRÊS HORAS EXACTAS
numa esquina da estação do Rossio

Que nada possa calar o meu ódio e desprezo
nem sequer tu Amada companheira

E no entanto lembro o nosso primeiro encontro
retiro dele a força indispensável
para seguir cantando
atento ao mudo apelo do pequeno vendedor de jornais
aos olhos tristes da prostituta grávida
ao passo arrastado do carregador da estação

De mãos dadas
no jardim sob a chuva
reinventando o amor
ou
no primeiro andar de um autocarro
através da cidade sem destino preciso

Recordo o calor de Julho e o aroma dos pinheiros
amámo-nos sobre a terra
eram três horas da tarde como agora
tínhamos pouco dinheiro
e havia um barco à nossa espera inevitavelmente

Com tudo isso teço o meu próprio disfarce
com a ternura grave que me dás
alimento também certa rosa vermelha

3ª canção

Pátria, lugar de exílio,
geométrico afã
ou venenoso idílio
na serena manhã.

Pátria, mas terra agreste;
terra, apesar da morte.
Pátria sem medo a leste.
Lugar de exílio a norte.

Pátria, terra, lugar,
 cemitério adiado
com vista para o mar
e um tempo equivocado.

Terra, débil lamento
na temerosa  noite.
 Sobre os carrascos, vento,
desfere o teu açoite!

Anjo de fogo
pressinto a tua vinda
o gládio necessário erguido
sobre a cidade dominada
e digo-vos senhores é findo o vosso tempo
o jogo terminou ainda que o não pareça

Goivos que hão-de florir a vossa humana morte
são já semente adormecida à espera
de um outro Maio
luminoso e quente

Aqui às três da tarde
posso olhar-vos sem medo
e dizer-vos aqui estou
O Poeta é um operário
(MaiaKovski)
aprendei depressa a matar-nos
o poeta é o inimigo.
Mergulhamos as raízes na terra desventrada
confundimo-nos com ela 
as nossas mãos florescem
e o vento leva a toda a parte o nosso desafio

Contra isto nada podem as armas a polícia os exércitos
a prisão a tortura
somos mais fortes do que tudo
somos a alegria
mesmo no fundo das masmorras cantamos
os pássaros aprendem as nossas palavras de esperança
descem com elas sobre o vosso sono
e ensinam-me o terror das noites solitárias

Tendes jornais
usai-os
tendes exércitos
usai-os
tendes polícia
usai-a
tendes juízes
usai-os 
usai-os contra nós 
procurai esmagar-nos
cantando resistimos
Somos a alegria o corpo o sal da terra
o sol das manhãs férteis a música do outono
a própria essência do amor a força das marés
somos o tempo em marcha

Esta é a única verdade
sabemos que vos é difícil aceitá-la
envoltos como estais em suborno e usura
bancos alta finança empréstimos externos
E no entanto esta manhã um pássaro
pousou à vossa beira embora
inutilmente

A pequena dactilógrafa matou-se
nós sabemos porquê.

Um carpinteiro desempregado rasgou a roupa
e saiu cantando para a rua
nós sabemos porquê.

Uma noite
a jovem costureira não voltou para casa
nós sabemos porquê.

Um poeta
Roeu as unhas enquanto foi possível
mas faltou-lhe a coragem no momento derradeiro


Nós sabemos porquê.

NÓS SABEMOS PORQUÊ.


E no entanto é doce dizer pátria
sonhar a terra livre e insubmissa
inteiramente nossa
Sonhá-la como se pedra a pedra a construíssemos,
Como
se nada houvesse antes de nós
e desde as fundações a erguêssemos completa
pura alegre acolhedora virgemde medos,
mortos insepultos
.
Regresso pelo tempo ao dia de hoje
primeiro de Maio de 1962
hora segunda da meditação

Ganho de novo consciência do lugar
Chegam comboios há mais gente na rua
Como se o rio humano recebesse
O agreste tributo de outra nascente

Vêm com o rosto de todos os dias
o olhar de todos os dias
as mãos e os pés de todos os dias
cansados de preencher impressos
moldar metais
afeiçoar madeiras
rodar motores e válvulas
sujos de óleo e poeira
deslumbrados de sol
operários    empregados de escritório    vendedores de porta
a porta
dir-se-ia que cantam

De súbito   a cidade parece banhada de alegria
estamos juntos meu Amor
possessos da mesma ira justiceira
Damos as mãos como dois jovens namorados
e sorrimos felizes
à doce primavera acontecida
no magoado coração da pátria

Vêm de toda a parte sem idade
Redes cobrem palavras esquecidas
e no silêncio cúmplice desfraldam
um novo e claro amanhecer do mundo

Vêm de mãos vazias. nem flores simbólicas
nem ramos de oliveira
Entre os seus dedos apenas desabrocha
o obscuro desejo de apertar outras mãos
como as suas. nervosas. sujas, proletárias.

E eu limpo, eu meticulosamente barbeado
eu de papéis em ordem
eu vestido de nylon dralon leacrileu rigorosamente asséptico
eu mergulhado até às virilhas na placidez burguesa
vou convosco cantando companheirosi
rmãos em pátria
em sonho em sofrimento

Ah riso aberto, coração do povo
cálice, flor, inesperado aroma
doce palavra antiga
liberdade


4ª canção

Roga por nós, ó pátria, ó sonho sem fronteira!,
por nós, a quem recusam a alegria,
a liberdade, o pão de cada dia
a vida verdadeira!

Ó pátria canta! Do teu presepe imaginário,
ergue a voz dulcíssima, magoada,
e estilhaça de esperança as paredes do aquário,
ó pacífica pomba engaiolada.

Contigo iremos pela noite fora,cantando.
« Erguendo rútilas bandeiras
por sobre aldeias, campos, sementeiras,
como os arcanjos portadores da aurora».
                                                      
Como lobos de súbito
irrompem na planície citadina
carregados de morte
.
Seu nome é violência
Trazem nas mãos mortíferos sinais
e de órbitas vazias
.
caminham em silêncio
envoltos na terrível solidão
do crime encomendado
.
Marginam as esquinas
escondem o rosto sob o aço liso
dos negros capacetes
.
e anónimos ocultos
pela espessa cortina de ódio e névoa
como robots avançam
.
A morte engatilhada
espera o momento de partir Agora
Cumpra-se o ritual
.
Uma voz grita  Viva
a liberdade, O coro lhe responde
pontuado de tiros
.
Canalhas Temos fome
Arranquemos as pedras da calçada
Ó meu amor resiste
.
Resiste de olhos secos
Sem lágrimas  Sem medo  Só talhada
no silex da ira
.
Pronta a dar corpo ao sonho
e entanto testemunha do martírio
companheira e amante
.
De mãos dadas cantando
abrimos flores às balas assassinas
merecemos a vida


5ª canção

Ó sonho acontecido e decisivo !
Ó frio tempo de terror, ó duro
Ofício de manchar de sangue vivo
As esquinas de pedra onde o futuro
Se conjuga no modo imperativo !

Recusa a face, solidão errada !
Ébrio de esperança e juventude assomas
- Ó coração da pátria, mina amada ! –
Ao meu olhar, por ntre riso e aromas
De mirto e rosa-chá desabrochada.

Neste ano de 1962
primeiro de maio
ao começo da noite
podemos finalmente olhar no espelho a nossa muda imagem
sem temor nem vergonha
.
Na solidão do quarto, meu Amor
podemos pela primeira vez
deixar de recear futuros julgamentos
e as perguntas silenciosas nos olhos dos vindouros
esquecer a humilhação, o insulto sem resposta
que foi o nosso pão quotidiano e áspero
.
Agora poderemos ser de novo homens
livres, ainda que presos
mastigando a comida sem o sabor a lágrimas
antes com o sal da esperança
merecido tempero, paga justa da luta
.
Renegamos o passado maculado de angústias
esquecemos as pequenas diárias covardias
os negócios onde tudo se perde e até a honra
.
Neste primeiro de Maio de 1962
podemos finalmente sorrir sem amargura




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Luis Cília - "Pátria, lugar de exílio" do disco "Contra a ideia da violência (*)" (LP 1973)

http://www.youtube.com/watch?v=Pwb8lotiWCE

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Merecemos mais Daniel Filipe... (Sérgio Ribeiro)

... e não só A Invenção do Amor. Por isso - e por razões pessoais - aqui lhe vou dedicar uns momentos, neste blog de livros e leituras, antes de, a partir do 1º fim-de-semana de Setembro, me dedicar a outro livro. Elecompreenderia.

Pátria, lugar de exílio é um poema - que dá o título ao livro - que conta um dia, o dia 1º de Maio de 1962. Que foi um dia especial (de luta!) para ele e para mim. Nesse dia - o 1º de Maio não era feriado! -, saímos mais cedo do gabinete (ou nem lá fomos...) onde trabalhávamos os dois, com as justificações que cada um arranjou para o director comum. Cada um para as suas tarefas. Adivinhando-nos, mas nada nos dizendo. Era a pátria em que estávamos exilados, na nossa semi-clandestinidade.

Termina assim o poema, depois da 5ª canção, fechando a história de um dia, de um ingresso (ou de um regresso) à luta:

.

Neste ano de 1962
primeiro de maio
ao começo da noite
podemos finalmente olhar no espelho a nossa muda imagem
sem temor nem vergonha


(.,..)

Neste primeiro de Maio de 1962
podemos finalmente sorrir sem amargura

POSTADO POR SÉRGIO RIBEIRO ÀS 20:16 
MARCADORES: PÁTRIA - LUGAR DE EXÍLIO





Sobre o 1º de Maio de 1962


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