terça-feira, 29 de outubro de 2019

Álvaro de Campos e o automóvel: 2 poemas

* Fernando Pessoa

Álvaro de Campos - ESCRITO NUM LIVRO ABANDONADO EM VIAGEM

Venho dos lados de Beja.
Vou para o meio de Lisboa.
Não trago nada e não acharei nada.
Tenho o cansaço antecipado do que não acharei,
E a saudade que sinto não é nem no passado nem no futuro.
Deixo escrita neste livro a imagem do meu desígnio morto:
'Fui como ervas, e não me arrancaram'

s/d

Álvaro de Campos - Ao volante do Chevrolet pela estrada de Sintra

Ao volante do Chevrolet pela estrada de Sintra,
Ao luar e ao sonho, na estrada deserta,
Sozinho guio, guio quase devagar, e um pouco
Me parece, ou me forço um pouco para que me pareça,
Que sigo por outra estrada, por outro sonho, por outro mundo,
Que sigo sem haver Lisboa deixada ou Sintra a que ir ter,
Que sigo, e que mais haverá em seguir senão não parar mas seguir?
Vou passar a noite a Sintra por não poder passá-la em Lisboa,
Mas, quando chegar a Sintra, terei pena de não ter ficado em Lisboa.
Sempre esta inquietação sem propósito, sem nexo, sem consequência,
Sempre, sempre, sempre,
Esta angústia excessiva do espírito por coisa nenhuma,
Na estrada de Sintra, ou na estrada do sonho, ou na estrada da vida...

Maleável aos meus movimentos subconscientes do volante,
Galga sob mim comigo o automóvel que me emprestaram.
Sorrio do símbolo, ao pensar nele, e ao virar à direita.
Em quantas coisas que me emprestaram guio como minhas!
Quanto me emprestaram, ai de mim!, eu próprio sou!

À esquerda o casebre — sim, o casebre — à beira da estrada.
À direita o campo aberto, com a lua ao longe.
O automóvel, que parecia há pouco dar-me liberdade,
É agora uma coisa onde estou fechado,
Que só posso conduzir se nele estiver fechado,
Que só domino se me incluir nele, se ele me incluir a mim.

À esquerda lá para trás o casebre modesto, mais que modesto.
A vida ali deve ser feliz, só porque não é a minha.
Se alguém me viu da janela do casebre, sonhará: Aquele é que é feliz.
Talvez à criança espreitando pelos vidros da janela do andar que está em cima
Fiquei (com o automóvel emprestado) como um sonho, uma fada real.
Talvez à rapariga que olhou, ouvindo o motor, pela janela da cozinha
No pavimento térreo,
Sou qualquer coisa do príncipe de todo o coração de rapariga,
E ela me olhará de esguelha, pelos vidros, até à curva em que me perdi.

Deixarei sonhos atrás de mim, ou é o automóvel que os deixa?

Eu, guiador do automóvel emprestado, ou o automóvel emprestado que eu guio?
Na estrada de Sintra ao luar, na tristeza, ante os campos e a noite,
Guiando o Chevrolet emprestado desconsoladamente,
Perco-me na estrada futura, sumo-me na distância que alcanço,
E, num desejo terrível, súbito, violento, inconcebível,
Acelero...
Mas o meu coração ficou no monte de pedras, de que me desviei ao vê-lo sem vê-lo,
À porta do casebre,
O meu coração vazio,
O meu coração insatisfeito,
O meu coração mais humano do que eu, mais exacto que a vida.

Na estrada de Sintra, perto da meia-noite, ao luar, ao volante,
Na estrada de Sintra, que cansaço da própria imaginação,
Na estrada de Sintra, cada vez mais perto de Sintra,
Na estrada de Sintra, cada vez menos perto de mim...

11-5-1928

Fernando Pessoa - [A PINTURA DO AUTOMÓVEL]

* Fernando Pessoa


Eu explico como foi (disse o homem triste que estava com uma cara alegre), eu explico como foi...

Quando tenho um automóvel, limpo-o. Limpo-o por diversas razões: para me divertir, para fazer exercícios, para ele não ficar sujo.

O ano passado comprei um carro muito azul. Também limpava esse carro. Mas, cada vez que o limpava, ele teimava em se ir embora. O azul ia empalidecendo, e eu e a camurça é que ficavamos azuis. Não riam... A camurça ficava realmente azul: o meu carro ia passando para a camurça. Afinal, pensei, não estou limpando este carro: estou-o desfazendo

Antes de acabar um ano, o meu carro estava metal puro: não era um carro, era uma anemia. O azul tinha passado para a camurça. Mas eu não achava graça a essa transfusão de sangue azul.

Vi que tinha que pintar o carro de novo.

Foi então que decidi orientar-me um pouco sobre esta questão dos esmaltes. Um carro pode ser muito bonito, mas, se o esmalte com que está pintado tiver tendências para a emigração, o carro poderá servir, mas a pintura é que não serve. A pintura deve estar pegada, como o cabelo, e não sujeita a uma liberdade repentina, como um chinó. Ora o meu carro tinha um esmalte chinó, que saía quando se empurrava.

Pensei eu: quem será o amigo mais apto a servir-me de empenho para um esmalte respeitável? Lembrei-me que deveria ser o Bastos, lavador de automóveis com uma Caneças de duas portas nas Avenidas Novas. Ele passa a vida a esfregar automóveis, e deve portanto saber o que vale a pena esfregar.

Procurei-o e disse-lhe: «Bastos amigo, quero pintar o meu carro de gente. Quero pintá-lo com um esmalte que fique lá, com um esmalte fiel e indivorciável. Com que esmalte é que o hei-de pintar?»

«Com BARRYLOID», respondeu o Bastos, «e só uma criatura muito ignorante é que tem a necessidade de me vir aqui maçar com uma pergunta a que responderia do mesmo modo o primeiro chauffeur que soubesse a diferença entre um automóvel e uma lata de sardinhas».

«Perfeitamente . . .»

«Com que é que você quer pintar um carro», continuou o Bastos sem me ligar importância, «senão com um esmalte que seja ao mesmo tempo brilhante e permanente? E, ainda por cima fácil de aplicar... Isto do fácil de aplicar é comigo, mas é uma virtude, e as virtudes citam-se... Vá-se embora!...»

«Bom...», disse eu.

«Isto de esmaltes de nitrocelulose», prosseguiu o Bastos, dando-me um encontrão, não é um assunto de mercenaria a retalho. Tem uma coisa maçadora a que se chama ciência. Sabe o que é? Mas é maçadora para quem prepara as coisas; para nós, que as recebemos preparadas para as aplicarmos, é um alívio e uma alegria. Este BARRYLOID é o produto de longos cuidados feitos no primeiro laboratório de tintas, lacas e vernizes. Percebeu? Não é o primeiro produto do género que apareceu, porque o ser primeiro está bem se se trata de estar numa bicha, mas não se trata de tintas ou de coisas que metam estudo e provas. Não: nas tintas e na prática, a última palavra é que é a primeira.»

«Meu caro Bastos...», disse eu.

«Só BARRYLOID», respondeu o Bastos, virando-me as costas.

«Eu queria agradecer...», prossegui.

«Traga o carro», disse o Bastos.

Levei-lhe o carro e ele pintou-o a BARRYLOID. E não há camurça, nem chuva, nem poeira da pior estrada, que consiga envergonhar esse esmalte de aço. Sim: o Bastos tratou-me mal, mas tratou bem a verdade. Não há nada como o BARRYLOID.

... Tanto assim que, quando comprei o meu segundo carro, tratei logo de saber se ele vinha já pintado a BARRYLOID. Ele aí está na base da página e no fim da minha história. Passa-se a camurça, mas é preciso usar óculos fumados: o brilho deslumbra. E, o que é mais, deslumbrará, porque dura.

A minha camurça dura eternamente. O que se tem gasto muito são os óculos fumados; e os elogios dos amigos que vêem os meus carros pintados a BARRYLOID.

Ficção e Teatro. Fernando Pessoa. (Introdução, organização e notas de António Quadros.) Mem Martins: Europa-América, 1986  - 97.
Texto de publicidade às Tintas Baryloid. 1ª publ. in Folhas de Poesia , nº 3. Lisboa: Set. 1958, com o título «O Automóvel ia desaparecendo»

sábado, 26 de outubro de 2019

Um poema duas traduções – HANS MAGNUS ENZENSBERGER

Hans Magnus Enzensberger


RAJADA

há palavras
leves
como sementes de álamo
erguem-se
levadas pelo vento
e voltam a cair

difícil agarrá-las
porque se afastam muito
como sementes de álamo

há palavras
que mais tarde talvez
removerão a terra

que espalharão sombra
uma sombra delgada
ou talvez não


HANS MAGNUS ENZENSBERGER
(tradução de Eugénio de Andrade
in Trocar de Rosa, idem)

ventogesto

algumas palavras
leves
como sementes de álamo

sobem
viradas pelo vento
mergulham

difíceis de aprender
levam longe
como sementes de álamo

algumas palavras
soltam a terra
talvez mais tarde

lancem uma sombra
uma sombra subtil
ou talvez não

HANS MAGNUS ENZENSBERGER

(tradução de Almeida Faria,
in Poemas Políticos,
publicações Dom Quixote, 1975) 






sábado, 19 de outubro de 2019

Manuel Antonio Pina - A pensar de pernas para o ar

 * Manuel Antonio Pina

Pensar de pernas para o ar
é uma grande maneira de pensar
com toda a gente a pensar como toda a gente
ninguém pensava nada diferente

Que bom é pensar em outras coisas
e olhar para as coisas noutra posição
as coisas sérias que cómicas que são
com o céu para baixo e para cima o chão

sexta-feira, 18 de outubro de 2019

Armando Silva Carvalho - Mar de Peniche


* Armando Silva Carvalho

1

Todos os dias
acordam
violadas
estas praias
que dizemos
virgens.

2

A chuva
esse suor
do mar
já não desfaz
a solidão dos homens
ou o piar dos corvos.

3

Mar de Peniche
onde os peixes se atiram
contra os barcos
e as grutas dos rochedos
nada acoitam.

4

As traineiras
juntaram-se a dormir.
Mas o mar não esquece
e grita
contra a fortaleza.

5

O mar
sorveu
todo este dia
exausto.
E o que fica
da praia
são estas pedras
lassas
transidas
pelo sono.

6

O que fica
das pedras
é este mar
de sono
que os homens
já submersos
sorvem
a curtos
haustos.

7

O que fica
da noite
são os presos
exaustos
que as pedras
dissimulam
e o mar
absorveu.

quinta-feira, 17 de outubro de 2019

Correia da Fonseca - A visita de Jean Valjean

* Correia da Fonseca


A visita de Jean Valjean

Quando há mais de século e meio publicou «Os Miseráveis», Victor Hugo não escondeu ao que vinha: na página inicial do seu livro escreveu que «enquanto houver sobre a terra ignorância e miséria, livros como este poderão não ser inúteis». De então para cá, gerações sucessivas mergulharam na leitura do romance, emocionando-se com o percurso de Jean Valjean, querendo mal ao inspector Javert, enternecendo-se com o romance de Mário e Cosette, vibrando porventura com as páginas evocadoras de barricadas erguidas nas ruas de Paris. O Cinema, a Televisão, até o Teatro, fizeram de «Os Miseráveis» material para versões suas. A RTP iniciou há dias a transmissão de uma adaptação do romance feita pela BBC, e é de crer (sobretudo de desejar) que a tradicional qualidade britânica em trabalhos destes não seja prejudicada por algum eventual preconceito ideológico. Porque, como bem se sabe, a BBC é de uma cepa conservadora e «Os Miseráveis» mantem, tantos anos depois, alguma coisa de subversivo.

Uma espécie de estandarte
Já não pode tratar-se, é claro, da denúncia do então selvático regime prisional francês ou da existência na sociedade francesa de «miseráveis» equiparáveis aos que terão inspirado Hugo. Mas, para lá da odisseia de Jean Valjean que podemos agora revisitar, não é necessária muita persistência para encontrarmos, mesmo sem sairmos desta nossa Europa apesar de tudo privilegiada, situações de miséria social (e também de miséria de outra ordem, mas passemos sobre esse aspecto) que há muito deveria ter sido erradicada. De qualquer modo, não é preciso transportar Jean Valjean para este nosso século XXI para encontrarmos sinais de actualidade na narrativa de Victor Hugo: logo no primeiro episódio da adaptação televisiva, o caso do bispo que com espírito cristão «cobre» o roubo dos castiçais de prata que fizeram Valjean cair em tentação pode fazer-nos lembrar a lufada de cristianismo renovado que estará a soprar de Roma. E este relativo pormenor no todo narrativo pode (e deverá) lembrar-nos uma busca de autenticidade cristã que, como se vê, contaminou também a obra e decerto o pensamento de Victor Hugo, o que tem um significado cuja dimensão se mede pelo prestígio que o romancista teve durante décadas junto das massas leitoras e que de algum modo ainda se mantem. Em verdade, o nome de Victor Hugo foi uma espécie de estandarte do pensamento «de esquerda» em tempos de ofensiva maurrasiana dentro e fora de França (Salazar era um veemente admirador de Maurras). E assim se verifica uma vez mais que isto anda tudo ligado.


http://www.avante.pt/pt/2394/argumentos/156698/A-visita-de-Jean-Valjean.htm

quarta-feira, 9 de outubro de 2019

Eugénio de Andrade - Elegia das Águas Negras para Che Guevara

* Eugénio de Andrade

Atado ao silêncio, o coração ainda
pesado de amor, jazes de perfil,
escutando, por assim dizer, as águas
negras da nossa aflição.

Pálidas vozes procuram-te na bruma;
de prado em prado procuram
um potro mais livre, a palmeira mais alta
sobre o lago, um barco talvez
ou o mel entornado da nossa alegria.

Olhos apertados pelo medo
aguardam na noite o sol do meio-dia,
a face viva do sol onde cresces,
onde te confundes com os ramos
de sangue do verão ou o rumor
dos pés brancos da chuva nas areias.

A palavra, como tu dizias, chega
húmida dos bosques: temos que semeá-la;
chega húmida da terra: temos que defendê-la;
chega com as andorinhas
que a beberam sílaba a sílaba na tua boca.

Cada palavra tua é um homem de pé,
cada palavra tua faz do orvalho uma faca,
faz do ódio um vinho inocente
para bebermos, contigo
no coração, em redor do fogo.


domingo, 6 de outubro de 2019

10 poemas de Tolentino de Mendonça

O MISTÉRIO ESTÁ TODO NA INFÂNCIA
[poema que Tolentino de Mendonça apresentou ao Papa Bento XVI, numa tradução para italiano]
E, por fim, Deus regressa
carregado de intimidade e de imprevisto
já olhado de cima pelos séculos
humilde medida de um oral silêncio
que pensámos destinado a perder
Eis que Deus sobe a escada íngreme
mil vezes por nós repetida
e se detém à espera sem nenhuma impaciência
com a brandura de um cordeiro doente
Qual de nós dois é a sombra do outro?
Mesmo se piedade alguma conservar os mapas
desceremos quase a seguir
desmedidos e vazios
como o tronco de uma árvore
O mistério está todo na infância:
é preciso que o homem siga
o que há de mais luminoso
à maneira da criança futura
em "A noite abre meus olhos"
ed. Assírio & Alvim

A INFÂNCIA DE HERBERTO HELDER

[primeiro poema de Tolentino de Mendonça]
No princípio era a ilha
embora se diga
o Espírito de Deus
abraçava as águas
Nesse tempo
estendia-me na terra
para olhar as estrelas
e não pensava
que esses corpos de fogo
pudessem ser perigosos
Nesse tempo
marcava a latitude das estrelas
ordenando berlindes
sobre a erva
Não sabia que todo o poema
é um tumulto
que pode abalar
a ordem do universo agora
acredito
Eu era quase um anjo
e escrevia relatórios
precisos
acerca do silêncio
Nesse tempo
ainda era possível
encontrar Deus
pelos baldios
Isto foi antes
de aprender a álgebra
em "A noite abre meus olhos"
ed. Assírio & Alvim

CAMINHO DO FORTE, MACHICO

No caminho onde aprendi o outono
sob o azul magoado
os pescadores cruzavam ainda linhas
províncias clareiras
e esse gesto masculino de apagar a dor
chegava pelos percalços da terra
o carro do gelo
e os miúdos tiravam bocados para comer às dentadas
em retrato selvagem mas, juro-vos, havia encanto
havia qualquer coisa, outra coisa
nesse instante em perda
as mulheres sentavam-se à porta com os bordados
quando passavam estrangeiros
ficavam sempre a sorrir nas suas fotografias
em “Longe não sabia”
ed. Presença

SE ME PUDERES OUVIR

O poder ainda puro das tuas mãos
é mesmo agora o que mais me comove
descobrem devagar um destino que passa
e não passa por aqui
à mesa do café trocamos palavras
que trazem harmonias
tantas vezes negadas:
aquilo que nem ao vento sequer
segredamos
mas se hoje me puderes ouvir
recomeça, medita numa viagem longa
ou num amor
talvez o mais belo
em “A noite abre meus olhos”
ed. Assírio & Alvim​​​​​​​

DA VERDADE DO AMOR

Da verdade do amor se meditam
relatos de viagens confissões
e sempre excede a vida
esse segredo que tanto desdém
guarda de ser dito
pouco importa em quantas derrotas
te lançou
as dores os naufrágios escondidos
com eles aprendeste a navegação
dos oceanos gelados
não se deve explicar demasiado cedo
atrás das coisas
o seu brilho cresce
sem rumor
em “Baldios”
ed. Assírio & Alvim​​​​​​​

UMA CASA EM MACHICO

Desço as escadas de casa
alguma coisa acabou para nós neste lugar
nos espaços mínimos que nos separaram
orgulho-me da tua nobreza
conto teus passos de criança sobre a terra
não sei que manhã virá em auxílio
de um amor
tão puro que não precisa
sequer de razões
ponho a mão na boca
para suster um grito
No duelo com certas noites
um coração sai sempre perdedor
Tua voz luzia pelo porto
quase a ponto de perder-se
Não avances tão depressa, minha noite
em “A noite abre meus olhos”
ed. Assírio & Alvim​​​​​​​

OS AMIGOS

Esses estranhos que nós amamos
e nos amam
olhamos para eles e são sempre
adolescentes, assustados e sós
sem nenhum sentido prático
sem grande noção da ameaça ou da renúncia
que sobre a luz incide
descuidados e intensos no seu exagero
de temporalidade pura
Um dia acordamos tristes da sua tristeza
pois o fortuito significado dos campos
explica por outras palavras
aquilo que tornava os olhos incomparáveis
Mas a impressão maior é a da alegria
de uma maneira que nem se consegue
e por isso ténue, misteriosa:
talvez seja assim todo o amor
em “A noite abre meus olhos”
ed. Assírio & Alvim​​​​​​​

A MULHER DESCONHECIDA

para Maria Matias, minha avó
É muito bela esta mulher desconhecida
que me olha longamente
e repetidas vezes se interessa
pelo meu nome
Eu não sei
mas nos curtos instantes de uma manhã
ela percorreu ásperas florestas
estações mais longas que as nossas
a imposição temível do que
desaparece
e se pergunta tantas vezes o meu nome
é porque no corpo que pensa
aquela luta arcaica, desmedida se cravou:
um esquecimento magnífico
repara a ferida irreparável
do doce amor.
em “Baldios”
ed. Presença

A CASA ONDE ÀS VEZES REGRESSO

A casa onde às vezes regresso é tão distante
da que deixei pela manhã
no mundo
a água tomou o lugar de tudo
reúno baldes,estes vasos guardados
mas chove sem parar há muitos anos
Durmo no mar, durmo ao lado de meu pai
uma viagem se deu
entre as mãos e o furor
uma viagem se deu: a noite abate-se fechada
sobre o corpo
Tivesse ainda tempo e entregava-te
o coração
em "A noite abre meus olhos"
ed. Assírio & Alvim​​​​​​​

TRAVESSIA DA INFÂNCIA

Quietos fazemos as grandes viagens
só a alma convive com as paragens
estranhas

lembro-me de uma janela
na Travessa da Infância
onde seguindo o rumor dos autocarros
olhei pela primeira vez
o mundo

não sei se poderás adivinhar
a secreta glória que senti
por esses dias

só mais tarde descobri que
o último apeadeiro de todos
os autocarros
era ainda antes
do mundo

mas isso foi depois
muito depois
repito
em "A noite abre meus olhos"
ed. Assírio & Alvim