segunda-feira, 31 de outubro de 2016

Bagão Felix - (H)ora bolas ou andar às horas?



31 de Outubro de 2016, 08:29

Por




A
hora legal mudou no passado sábado. Para a do Inverno, agora harmonizada com a regra europeia de ser só em Outubro e não, como antes, em Setembro. A hora legal de Portugal continental coincide, agora, com o tempo universal coordenado.
Ao que presumo, a maioria das pessoas gosta mais da hora de Verão. Eu confesso gostar mais da hora que mais perto está da verdade. Ou seja, em que mais se aproximam o meio-dia que temos no relógio e o meio-dia solar ou verdadeiro (o momento da passagem do Sol pelo meridiano local). Exactamente o período do ano em que a natureza mais conforme está com a norma, porque a diferença entre o meio-dia solar só se afasta do meio-dia oficial cerca de 30 minutos. Talvez por isso, o tempo em que, em boa verdade, andamos mais a horas. E, assim, nos vamos aproximando do dia que marca o solstício do Inverno, em que a noite é rainha e o dia é filho bastardo.
Na hora de Inverno, o dia, embora do mesmo tempo, torna-se mais exíguo, porque mais comprimido no tempo da nossa vida. A noite, essa alarga-se na penumbra do nosso repouso. Os noctívagos vivem na ilusão de mais tempo e os que trabalham de sol a sol continuam a fazê-lo tal qual antes, apenas com a ilusão formal de se levantarem uma hora mais cedo no seu relógio.
Na década de 90 do século passado, uma ideia peregrina tomou assento no Diário da República. Chegámos, durante quatro anos, a ter uma hora oficial igual a Bruxelas, Paris, Berlim. Uns poucos anos mais tarde, tão rapidamente quanto entrou nos nossos hábitos, tão solícita foi a sair dos nossos mostradores.
Foi um crono-disparate, contra-natura. O que significava? No pico do Verão era como se, geograficamente, Portugal estivesse num meridiano imaginário entre São Petersburgo, Kiev e Istambul, que é como quem diz, cerca de duas horas e quarenta minutos desviado para leste. Resultado: no Verão as crianças iam para a cama de dia, mesmo que às vinte e duas horas, e no dia em que o Inverno começava, o sol nascia às nove horas, e as pessoas iam para o trabalho e as crianças para a escola ainda com a noite cerrada.
Por essa altura, só a Irlanda e o sempre renitente Reino Unido não foram em cantigas de zelo europeu e não aderiram ao TUB (Tempo Único de Bruxelas). E por que razão haveria o Cabo da Roca, ponto mais ocidental da Europa Continental, de aderir ao TUB? Disse-se na altura que ter a mesma hora de Bruxelas facilitava os contactos com as instituições europeias e com os escritórios de advocacia lá implantados. Foi uma tentativa de um euro, não monetário, mas horário. Fracassou, mesmo sem um “Schauble da astronomia / meteorologia”.
Tenho lido com interesse a análise de especialistas na área da saúde sobre eventuais efeitos desta mudança para a agora hora oficial. Fala-se em dores de cabeça, designadamente a cefaleia em salvas (quer dizer, de um só lado da cabeça), presumo que em lados opostos em função da mudança em Outubro e em Março, de alterações do ritmo cardíaco, etc. Este pseudo jet lag de uma hora, sem andar de jacto, tem também originado interessantes discussões quanto à questão da segurança nas ruas, risco de acidentes rodoviários, poupança ou não de energia eléctrica, etc..
Cá por mim, prefiro o primado da hora verdadeira do que o abastardamento desta por via administrativa. Ou seja, quanto mais perto a hora que temos no pulso estiver da hora que é, tanto melhor. Sou um purista e ecologista da hora.
Mas, como gostos não se discutem, lá teremos para uns, (h)ora bolas, para outros, andar às horas.
http://blogues.publico.pt/tudomenoseconomia/2016/10/31/hora-bolas-ou-andar-as-horas/

Konstantinos Kaváfis - ÍTACA

*  Konstantinos Kaváfis  

ÍTACA


Se partires um dia rumo a Ítaca,
faz votos de que o caminho seja longo,
repleto de aventuras, repleto de saber.
Nem Lestrigões nem os Ciclopes
nem o colérico Posídon te intimidem;
eles no teu caminho jamais encontrarás
se altivo for teu pensamento, se sutil
emoção teu corpo e teu espírito tocar.
Nem Lestrigões nem os Ciclopes
nem o bravio Posídon hás de ver,
se tu mesmo não os levares dentro da alma,
se tua alma não os puser diante de ti.
Faz votos de que o caminho seja longo.
Numerosas serão as manhãs de verão
nas quais, com que prazer, com que alegria,
tu hás de entrar pela primeira vez um porto
para correr as lojas dos fenícios
e belas mercancias adquirir:
madrepérolas, corais, âmbares, ébanos,
e perfumes sensuais de toda espécie,
quando houver de aromas deleitosos.
A muitas cidades do Egito peregrina
para aprender, para aprender dos doutos.
Tem todo o tempo Ítaca na mente.
Estás predestinado a ali chegar.
Mas não apresses a viagem nunca.
Melhor muitos anos levares de jornada
e fundeares na ilha velho enfim,
rico de quanto ganhaste no caminho,
sem esperar riquezas que Ítaca te desse.
Uma bela viagem deu-te Ítaca.
Sem ela não te ponhas a caminho.
Mais do que isso não lhe cumpre dar-te.
Ítaca não te iludiu, se a achas pobre.
Tu te tornaste sábio, um homem de experiência,
e agora sabes o que significam Ítacas.  

(Trad. José Paulo Paes) 

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ÍTACA 

Quando, de volta, viajares para Ítaca
roga que tua rota seja longa,
repleta de peripécias, repleta de conhecimentos.
Aos Lestrigões, aos Cíclopes,
ao colérico Posêidon, não temas:
tais prodígios jamais encontrará em teu roteiro,
se mantiveres altivo o pensamento e seleta
a emoção que tocar teu alento e teu corpo.
Nem Lestrigões nem Cíclopes,
nem o áspero Posêidon encontrarás,
se não os tiveres imbuído em teu espírito,
se teu espírito não os suscitar diante de si.
Roga que sua rota seja longa,
que, múltiplas se sucedam as manhãs de verão.
Com que euforia, com que júbilo extremo
entrarás, pela primeira vez num porto ignoto.
Faze escala nos empórios fenícios
para arrematar mercadorias belas;
madrepérolas e corais, âmbares e ébanos
e voluptuosas essências aromáticas, várias,
tantas essências, tantos arômatas, quantos puderes achar.
Detém-te nas cidades do Egito - nas muitas cidades -
para aprenderes coisas e mais coisas com os sapientes zelosos.
Todo tempo em teu íntimo Ítaca estará presente.
Tua sina te assina esse destino,
mas não busques apressar sua viagem.
É bom que ela tenha uma crônica longa duradoura,
que aportes velho, finalmente à ilha,
rico do muito que ganhares no decurso do caminho,
sem esperares de Ítaca riquezas.
Ítaca te deu essa beleza de viagem.
Sem ela não a terias empreendido.
Nada mais precisa dar-te.
Se te parece pobre, Ítaca não te iludiu.
Agora tão sábio, tão plenamente vivido,
bem compreenderás o sentido das Ítacas.


(Trad. Haroldo de Campos)


Postado por Salomão Rovedo às 16:36 

http://salomaorovedo.blogspot.pt/2014/10/homero-odisseia.html



sábado, 29 de outubro de 2016

O CHINA ERA O GAJO MAIS FODIDO DO PENDÃO

Manifesto 74

SEXTA-FEIRA, 28 DE OUTUBRO DE 2016
PUBLICADO POR ANTÓNIO SANTOS


Os putos brancos ricos tinham medo dos putos brancos pobres. Os putos brancos pobres tinham medo dos putos pretos. Que invariavelmente eram pobres. Já os putos pretos só tinham medo da polícia. Que por sua vez tinha medo dos ciganos, invariavelmente mais pobres que os brancos pobres. E os ciganos, que não tinham medo de ninguém e se riam da morte, da polícia e da prisão, tremiam de medo do China, que era o gajo mais fodido do Pendão.

Ninguém se lembra de que turma era o China. Em que ano andava ou que notas tinha. Porque o China, que estava na vida como na escolaridade obrigatória, vinha aos pontapés, a cair por aí abaixo «Deixe aprender os que querem aprender!», cumprindo a única lei que conhecia: a lei da gravidade da miséria. «Che, dread, gira um euro, deixa só ver esse móvel», «Queres que meta um furo na barriga?» E tu giravas, deixavas ver, com permissão teórica, porque sabias que o China sabia bem aquilo que tu sabias: o que um pobre quer saber de um rico é sempre uma pergunta retórica.


Olha, tens aqui o manual de ética para a pobreza em Portugal: cumpre as regras da pobreza, não compres mais que esparguete e arroz e latas de atum, respeita os ricos

Mas deixa estar, que quando a bófia o apanhar com a boca na botija… a roubar o que não é dele nem nunca foi dele, nem poderia ser dele, como nunca foi dos pais dele, nem nunca podia ter sido de ninguém da família dele… Aí há-de pagá-las bem caras, «Não lhe ligues, Francisco, daqui a uns anos ris-te tu dele». Mas na altura ninguém se ria. «Queres que te meta um furo na barriga?» Podiam bater-lhe ou prendê-lo ilegalmente, cuspir-lhe ou retirá-lo à mãe, podiam espancá-lo legalmente nas esquadras da polícia ou sentá-lo à frente de um imberbe soberboso, engravatado (que no entanto só em casa se rirá com os erros do CV desformatado, indiferenciado), podiam trazer batalhões de assistentes sociais cheios de ego ou boas intenções e podiam vir tribunais de menores para o habituar aos outros maiores

«O Nelson precisa de adquirir regras básicas, estrutura e disciplina», que sabendo tanto nunca compreendiam nada porque, afinal, «julgar é não compreender», podiam metê-lo na choça ou num curso obrigatório do IEFP que o fizesse ter saudades da choça ou rebentar-lhe os dentes à porrada ou fingir que não o vemos quando passa na rua, ou matá-lo de pancada e fazê-lo suar sangue, de tanto explorá-lo, podiam bater-lhe muito para ver se ele aprendia «Deixe aprender os querem aprender». Podiam tudo, mas não podem magoá-lo.

E tu, que estás a ler esta merda, com esse sorrisinho condescendente enquanto pensas: «Que determinismo tão retro-realista, que lumpen tão Germinal, que comunista tão anti-social. Não fosse bandido e tivesse estudado… Não interessa, eu tenho um vizinho que também era pobre e sabes onde é que ele chegou? Pois que seja mais difícil, é possível ou não é possível? Que fosse só um por cento de hipóteses! Sabes o que é que eu faria com o meu único um por cento? Apostava tudo nesse um por cento, sabendo que se falhasse me fodia! E que por isso quase de certeza que me ia foder sempre, mas não ia querer ténis, nem bolos, nem telemóveis nem as merdas que os outros putos têm todos!» «Sabes que já apanhei tempo por roubar bolos? A minha liberdade vale um bolo, compreendes o que isto quer dizer?», isto diria o China, não tu, porque tu empreendias tudo o que tens nesse solitário um por cento de hipóteses. 

Mas olha lá, tu apostavas a tua casa, o teu carro, o teu trabalho, nesse um por cento? «Não apostava, mas eu tenho coisas a perder! Já tu, que não tens nada, só essa cozinha de bancadas em contraplacado forrado a plástico a imitar mármore; só esse colchão velho, em que morreu o teu tio e em que dormes tu agora; só esses móveis velhos de contraplacado plastificado a imitar madeira; só esse armário onde guardas o esparguete e o arroz e o atum enlatado. Por isso presta atenção que sou que te vou ensinar a ser pobre, percebes? Olha, tens aqui o manual de ética para a pobreza em Portugal: cumpre as regras da pobreza, não compres mais que esparguete e arroz e latas de atum, respeita os ricos e, sobretudo, lembra-te que o pouco que tens para nós vale tão pouco que te dizemos, assim, à cara podre, que não tens nada a perder na vida toda, que é como te dizia a professora “Deixe aprende os que querem”, que é como diz o Ronaldo, que se foda».


O China não acreditou com muita força que tudo era possível, não seguiu os sonhos até se concretizarem, não conseguiu ser um dos «muito bons» a quem os bancos prometem que «o resto vem por si», não era empreendedor. E como não deixou de comer, de ter ténis e de ver televisão, nunca descobriu se esse um por cento de probabilidades se havia de cumprir ou não. Há poucos anos foi preso outra vez, condenado por não ter pago o que devia a um mecânico. A sociedade pede-lhe que pague o que deve ao Mecânico e, não podendo pagar, pronto, que não vá ao mecânico e fique sem carro, mesmo que isso implique não poder ir trabalhar, pode sempre ir a pé, mesmo que sejam 20 quilómetros , ou não podendo, que, olhe, procure outro trabalho «O Nelson precisa de adquirir regras básicas, estrutura e disciplina».

Mas o que é que achas que vai acontecer, quando um dia o China entender a razão de tudo isto? Quando perceber que tanta pancada, tanta dor, tantos anos atirados fora, foram na verdade uma condenação, a primeira sentença de muitas que lhe foram lidas, esta ainda nem parido fora, condenando-o a ser um bebé pobre, uma criança pobre, um jovem pobre, depois só um pobre e finalmente, com alguma sorte, um velho pobre? Afinal, todos os homens nascem iguais em deveres, as crianças é que já nascem diferentes em direitos. Então, não te cuides… que se um dia compreende isto, o China, que era o gajo mais fodido do Pendão, vai dirigir a sua força grande, as suas mãos fodidas, rebentadas nas obras e na luta contra outras pessoas. E nesse dia, mesmo que já velho, irreparavelmente partido o coração, há-de lembrar-se daquela força formidável, daquela violência temível, para acabar de uma vez com tudo isto, com quem disto tudo lucra e com aquilo tudo que és: patrão.



PUBLICADO POR ANTÓNIO SANTOS
http://manifesto74.blogspot.pt/2016/10/o-china-era-o-gajo-mais-fodido-do-pendao.html#more

segunda-feira, 24 de outubro de 2016

O rapaz e o pombo, de Cristina Norton

Viram por aí o Hitler?

Eu sei, querida tia, que estou a fazer publicidade indireta a uma editora que não é a nossa preferida. Mas trata-se de obra meritória, para mais de amiga meritória, para mais tia de dois dos nossos meritórios bloguistas. E assim sendo, e porque isto é a sério, depois da capa do livro mudo o registo e quase choro. Ora vejam
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Aos poucos nada nos resta. Nem a memória. Mas talvez reste sempre, no fundo de nós, na alma (que é o que nos anima) as sensações, os sentimentos, a comoção.
Eu chorei a ler este livro.
Quem é o rapaz? E quem é o pombo? E a irmã do rapaz? E toda a gente que os rodeia? Não são ninguém que possamos recordar. Apagam-se da memória, como se aguaram as lembranças da avó do rapaz, de tal modo confunde filha e neta e nem o marido reconhece.
Que pessoas são estas que fugiram? De que fugiram?
Ah! É tão fácil afirmar que fugiram de um louco, de um regime louco, de um país louco que encerrou milhares de pessoas em campos de concentração, onde além da escravatura do trabalho se faziam experiências médicas com crianças como se fossem ratinhos de laboratório. Como fizeram com a irmã do rapaz do pombo, a que mais tarde se juntou aos avós, na Holanda e refez a vida sem que a sua antepassada, a única que lhe restava, soubesse ao certo quem era ela.
É fácil dizer que era disso que fugiam. Mas não é só disso que se foge.
Hoje também se foge de barbáries iguais ou semelhantes, na Síria, nas terras do Daesh; hoje matam-se yazidis (curdos que praticam uma religião fundada no zoroastrismo da Mesopotâmia) como se matam cristãos sírios, como na época em que se passa ação do livro se matavam judeus e ciganos, além de toda a espécie de opositores ao regime nazi.
Talvez não com a burocracia e o método que a Cristina descreve quando se refere ao campo de Westerbork, na Holanda, mas com a mesma maldade, a mesma ausência de humanismo.
É disso que fugiam eles e fugimos nós. De sermos apenas eine stück, o raio de uma peça, “algo sem valor, nem humano, nem material, um objeto sem alma”.
Fugimos desse mundo sem amor, sem fraternidade, sem humanidade, sem caridade, que tal como o respeito, a partilha e a solidariedade vêm do amor, como também escreve a Cristina.
Confesso que não sei ao certo, mas presumo que ela conhece os locais que descreve. A Alemanha, a Holanda, com a cidade de Amsterdão e o lado improdutivo e cinzento onde ficou o campo Westerbork. O terrível campo de Auschwitz. Lisboa, como é óbvio e a Argentina, que também é óbvio. Mas todo o romance refere estas paragens não se detendo demasiado nelas. É na paisagem humana, a maioria das vezes sem glória nem beleza, que toda a ação se passa.
Nos medos
Nas esperanças
Nas angústias
Nas inocências
Nos fingimentos
Nas maldades
Nos crimes
Na heroicidade
Na resistência
Na desistência
Depois da tareia emocional que qualquer leitor levará ao ler esta obra, há um final, muito pessoal da autora para nos deixar knocked out. KO! É quando revela que os avós paternos e diversos tios e tias, primos e primas viveram num gueto em Lódz, na Polónia, e morreram em Auschwitz – pouco antes do final da guerra. Há um ajuste da Cristina com a História. E é justo que haja. Todos nós somos o produto de vivências anteriores, das histórias que nos contaram na meninice, dos mitos que incorporámos, dos caminhos que percorremos e vimos percorrer.
E foi assim que a autora, ainda menina, ouviu uma história real que a horrorizou. É a chave do livro. Uma história de uma mulher que esteve e sobreviveu a Auschwitz e mais tarde se encontrava com a mãe de Cristina (que ainda tive o prazer de conhecer) em Buenos Aires. É uma história dura, horrenda… Ainda agora imagino o horror que foi para ela, aos 10 anos, como mesmo passados 70 anos é uma inominável surpresa para quem a lê. Não como passada com uma protagonista imaginada, mas com uma mulher que a Cristina nos diz: eu conheci-a, foi ela quem me contou. A brutal violência – talvez uma violência necessária, pois de outro modo estaria esquecida – para quem a ouve não passa com o tempo.
A personagem que no romance se chama Rute (e depois muda de nome por razões que a narrativa explica) é alguém que fascina o rapaz do pombo, apesar de bastante mais velha. É alguém que consegue fugir a Auschwitz por estar apaixonada. É alguém que aceita um casamento de conveniência para fugir aos nazis. Mas o destino e a necessidade de ser útil colocam-na na boca do lobo e apesar de poder estar a salvo, não se salvou.
Ter-se-ia de poder falar com os sobreviventes que conseguiram contar as experiências, como Primo Levi em ‘Se Isto é um Homem’, se mais sorte teve quem morreu ou quem sobreviveu. Quanta carga aguentamos na vida? Quantas memórias? Que tipo de memórias? Porquê eles e não nós? Sobretudo se agora, decorridos mais de 70 sobre o fim da guerra, nós que não a vivemos, ainda lhe sentimos o sabor amargo, o cheiro fétido, a repulsa.
Pior! Reconhecemos personagens de então em personagens de hoje.
Pior ainda! Verificamos que muitos daqueles que por nós passam, que connosco falam ocasionalmente estariam dispostos a aplaudir em Nuremberga ou na Piazza Vittorio Emanuel novos Hitler e Mussolini. Compreendemos que é esta a condição humana perene e insistente. E que a atualidade deste livro está na atualidade que vivemos – há mais de 70 anos e que vivemos hoje.
Há uma espécie de intermezzo na obra que é a história de umas férias de Lilo Pupppel (outra personagem de vida real e nome fictício) e sua mãe. Lilo era amiga da irmã do rapaz do pombo e tomara-lhe conta do cão numa das alturas em que a família do protagonista tenta sem sucesso fugir da Alemanha. (E será o rapaz protagonista? Ele, afinal, representa todos os que sofreram e os que ainda sofrem).
De qualquer modo Lilo e a mãe vão até a uma pequena ilha de Itália. Talvez já nenhuma rapariga se contente em ter um burro como prenda; talvez já não haja meninas casadoiras, como a irmã de Lilo, capazes de todos os dias se arranjarem na esperança de ver chegar o namorado ao cais da estação de comboios, regressado da frente de onde nunca chegou, onde combatera pelo exército de Hitler, convencido que lutava pelo país. Mas os sentimentos, sejam os de alegria, sejam os daquele horror na Áustria ocupada que leva instintivamente a mãe a tapar os olhos à filha, seja o ódio entre famílias ou dentro das famílias que exiladas na Argentina eram por ou contra Hitler – tudo isso existe em novas modalidades e novas formas de ser.
Achamos, arrogantemente, que o passado não volta. Mas o passado, como escreveu William Faulkner, nunca está morto. Na verdade, nem sequer é passado – acrescentou o escritor. Também este passado está entre nós, aqui recordado pela Cristina Norton num livro sensível, verdadeiro, duro e corajoso na forma como não separa artificialmente bons e maus. Como se verifica que alguns dos nossos podem ser piores do que os deles.
Num livro que me surpreendeu – e eu conheço-a há muitos anos e este é o segundo livro (dos 10 que escreveu) que tive o prazer de apresentar – porque nunca me imaginei tão próximo dela nos sentimentos que estas memórias me despertam; nos sobressaltos que ainda me provocam.
Diz-se que Deus escreve direito por linhas tortas. Se assim é, ainda bem que o faz. Eu queria apresentar este livro, porque eu sempre quis que a Cristina escrevesse este livro. E este é o tempo, basta olhar à volta para vermos que este é o tempo em que ainda havemos de olhar como o tempo feliz.
Perdoem-me o pessimismo mas não consigo dizer que este é um livro sobre o passado. Ele é, como todos os livros que interessam, intemporal. É sobre como cada um reage às adversidades e ao destino. E, no fim, o que importa é o caminho e a amabilidade que se teve no trajeto.
No fim é o amor que nos salva.
Muito obrigado, querida Cristina por teres escrito estas páginas.
http://www.escreveretriste.com/2016/10/viram-por-ai-o-hitler/

domingo, 23 de outubro de 2016

Lisboa, 1942.

domingo, 23 de outubro de 2016

 
Cecil Beaton (1904-1980)

         Em Junho de 1942, o fotógrafo e artista britânico Cecil Beaton (1904-1980) passou uma temporada em Lisboa, onde fotografou a cidade e, sobretudo, as suas elites (à excepção de Salazar). Vinha de Lagos, em África, tendo desembarcado num hidroavião, como conta nos seus diários (The Years Between. Diaries, 1939-1944), aqui parcialmente traduzidos e transcritos, na parte relativa a Portugal. A sua faceta de esteta e amante das artes fica bem patente nestas páginas, onde são frequentes as referências a pormenores arquitectónicos ou a mestres da pintura. A dado passo, Beaton refere-se ao «aspecto Rip van Winkle» de Lisboa, numa alusão à personagem do conto homónimo de Washington Irving; e, noutro momento, alude à famosa família Sitwell, sendo estas duas referências, porventura, as únicas que carecem de uma nota complementar que facilite a compreensão de um texto traduzido sem preocupações de rigor e fidedignidade. A passagem de Beaton por Lisboa é sobejamente conhecida, tendo já merecido até uma exposição, cuja crítica de Alexandre Pomar pode ser lida aqui.

 
Marcello Caetano, fotografado por Cecil Beaton
  
         Quando, finalmente, sobrevoámos a orla costeira montanhosa e descemos até à baía azul de Lisboa, a porta do nosso hotel flutuante abriu-se para um cenário ameno e soalheiro. Diante de nós, pequenas bandeiras agitavam-se ao vento e as ondas azul-turquesa desfaziam-se em espuma branca, como num quadro de Tissot. 

         De súbito, sentimo-nos de regresso à atmosfera anterior à guerra, ao tempo das férias passadas em Espanha ou no Sul de França.

         Saberiam alguma coisa da minha visita? Não, o adido de imprensa não sabia de nada. Mas dois jovens da embaixada, Stewart e Herbert, acompanharam-me com entusiasmo e empenho, e telefonaram para vários organismos públicos procurando saber se havia por lá algum trabalho à minha espera. Sim! O Ministério do Ar tinha procurado indagar da minha chegada, mas as investigações subsequentes nada revelaram. Tive a sensação de que talvez me encontrasse aqui por engano. Stewart era de opinião de que me deveria ir embora, uma vez que nada tinha para fazer em Portugal. Herbert, em contrapartida, afirmou que o melhor seria contactar o Ministério do Ar, pois seria péssima ideia regressar a casa para depois ser imediatamente chamado de novo a Lisboa. Stewart sorriu e marcou-me um hotel, fazendo questão de me levar pessoalmente até lá.

         Não admira que tivesse sorrido, pois o Hotel Aviz revelou ser um fenómeno. Assemelhando-se a uma mansão de um milionário vitoriano, era decorado com mobiliário de mogno ricamente trabalhado, estatuária medieval, azulejos portugueses, ferros forjados do século XVIII, enormes carpetes espanholas e terrinas incrustadas de prata, impropriamente cheias de flores horríveis. O ambiente era de tal forma opulento e diferente de tudo o que víamos desde o início da guerra que parecia que o desmesurado relógio barroco do átrio tinha sido atrasado uns vinte ou mesmo uns quarenta anos. Tendo perguntado quem estava no quarto ao lado (era uma alemã ou italiana), Stewart deixou-me ali, para que eu pudesse tomar banho, barbear-me, vestir roupa lavada e mais apropriada e, enfim, tomar uma refeição.

          O almoço era um acontecimento. Numa sala de jantar estilo Luís XVI, envolta em reflexos rosa, algumas mesas, poucas, eram ocupadas por um sortido de personagens de antes da guerra, e de várias nacionalidades. A um canto, de costas para a parede, sentava-se o Senhor Calouste Gulbenkian, rei do petróleo e do caviar e patrono das artes. Um silêncio completo dominava a sala, enquanto eram servidas as refeições mais sumptuosas e extravagantes. Os meus olhos quase saltaram das órbitas quando vi os carrinhos com as entradas a passarem diante de mim. Só as entradas já eram um banquete. Não sei como fui capaz de ingerir ainda mais três pratos, mas o certo é que quase nada comera nas últimas semanas; apesar disso, já não tive espaço para os morangos gargantuescos. 

         O meu quarto, com o seu mobiliário cor de alperce, os abajures forrados de seda na cabeceira da cama, e o marulhar das palmeiras vindo da varanda, era um oásis. A cela despida, fria e húmida da messe da RAF em Lagos foi esquecida até tirar o meu fato mais formal da mala; aí afluiu às minhas narinas o cheiro a mofo, o que me fez recordar a cama e a almofada onde dormira, pejadas de humidade e fungos.

         Como é óbvio, estava feliz por ter sido obrigado a parar aqui (ainda que continuasse a não saber por que razão!) Deambulei pela cidade e, saborosamente, saciei o meu apetite de turista. Os encantadores edifícios setecentistas e os ornatos decorativos rococó representavam algo pelo qual eu estava faminto desde que a guerra começara.

         Muitas fachadas eram pintadas com um vermelho-coral e um branco fortes, com ornatos em estuque brotando do cimo das pilastras. Nas balaustradas dos telhados, erguiam-se obeliscos e vasos de pedra. Por um acaso, passei por algumas praças gloriosas, de mármore branco, decoradas com arcos ornamentais e estátuas. Admirei jardins com bustos clássicos que surgiam de pilares completamente cobertos de folhagem. Foi delicioso sentar-me e gozar o verdor da sombra projectada por um Neptuno que contemplava a fonte formada com a água saída do cântaro que carregava num dos seus braços.

         É espantoso ver as lojas cheias de produtos alimentícios raros, guloseimas, bebidas alcoólicas, de todas aquelas coisas que não temos entre nós – meias de seda, relógios, batons. Estou também espantado com a quantidade de quiosques que vendem diversos jornais e revistas inglesas (muito mais do que aqueles que conseguimos encontrar em Inglaterra). Folheei um exemplar da Illustrated London News para ver se apareciam algumas das minhas fotografias de guerra, mas verifiquei apenas que na nossa terra os meses vão passando, que toda a gente está a usar agora roupas diferentes e que a Princesa Isabel cresceu, deixando de ser criança e tornando-se uma jovem senhora.  

         No Secretariado, percorri uma pilha de revistas de propaganda alemã. As suas fotografias de guerra, quer a cores, quer a preto e branco, são muito mais originais do que as nossas. Não só conhecem a necessidade de contenção no uso da cor como são muito mais ousados do que nós. Mostram apenas manchas trágicas – fotografias tiradas numa semiobscuridade, entre fumo, chuva ou nevoeiro, o que cria um tremendo efeito dramático. Ainda assim, é desconcertante ver que estas revistas, tão próximas do espírito contemporâneo, continuam a apelar à abolição da «arte decadente» quando, em simultâneo, o seu espírito e o seu gosto se mostram muito mais flexíveis do que o nosso.

         O aspecto Rip van Winkle de Lisboa tem as suas desvantagens. Portugal é indubitavelmente o refúgio das «ratazanas» e o Hotel Aviz é o epicentro dos colaboracionistas, que aqui vêm fazer os seus negócios. Talvez a cegueira face à situação mundial tenha custado a Portugal a perda da sua antiga grandeza, sendo este um país que vive actualmente o crepúsculo da sua existência. Mas, devo reconhecê-lo, talvez estas elucubrações tortuosas tenham resultado do mero facto de não ter conseguido encontrar um táxi. Nesta terra de luxos, só falta uma coisa – a gasolina. As ruas estão quase vazias de trânsito, e uma vez que há racionamento de carvão, tem de se poupar na electricidade, pelo que até no Hotel Aviz as luzes são desligadas às 10 da noite.

         O Ministério da Informação acabou, finalmente, por mandar um telegrama dizendo estarem interessados em que eu fotografasse todos os membros do Governo e todas as celebridades locais. Mandaram uma lista das pessoas a retratar, desde o Presidente a Salazar, desde almirantes a cardeais. Julgo que isto não vai interessar a ninguém, e certamente não terá qualquer «importância»; em todo o caso, permitir-me-á fazer um contraste com as fotografias que tenho tirado.   

         A organização deste trabalho revelou-se uma tarefa terrível. No Secretariado, um homem chamado Almeida deveria dar-me uma licença para utilizar uma câmara (ao que parece, em Lisboa pode-se ser preso por andar com uma máquina fotográfica, e por vezes passam-se semanas na cadeia até se conseguir ser libertado). Porém, a primeira dificuldade foi encontrar o senhor Almeida à sua mesa de trabalho. Devido às políticas de austeridade impostas pelas reformas de Salazar, com vista a alcançar o equilíbrio orçamental após anos e anos de caos financeiro, muitos tiveram de fazer grandes sacrifícios, incluindo os funcionários públicos. Por isso, muitos deles acumulam funções com outro emprego, pelo que nunca chegam ao serviço antes das cinco da tarde. Quando, finalmente, o Senhor Almeida apareceu, sentado à sua secretária, tratou-nos de uma forma histriónica. Rodeado de telefones como se fosse um agente de Hollywood, tinha longas conversas sempre que recebia uma chamada. Passava o tempo a marcar números, incessantemente, gritava com a telefonista, desligava e de imediato voltava a marcar outro número. Enquanto falava ao telefone, gesticulava selvaticamente, fazendo esgares parecidos aos de um louco torturado. Tendo-nos deixado ali, a mim e a Herbert, a presenciar aquela cena durante uma meia hora, Almeida disse que iria chamar três polícias, para nossa protecção. Oh, como era difícil a sua vida, que tinha de estar a trabalhar até àquela hora, enquanto a maioria das pessoas já há muito tinha ido embora, para beber cervejas ou comer gelados nos cafés! Por fim, após a sua actuação histérica ao telefone ter ido em crescendo, exclamou: «As coisas estão a ir bem e depressa!» Eu não podia deixar de rir, mas Herbert explicou-me que era mesmo assim: ter paciência é a primeira coisa a aprender para quem vive em Portugal, uma vez que o tempo, como sabemos, não existe (nenhum correspondente de guerra consegue mandar notícias para casa sem que antes passem dez dias de insistência e obstinação).

 
Fernanda de Castro, fotografada por Cecil Beaton

         Quando, por fim, me libertei daquilo, Marcus Cheke apareceu para me mostrar a cidade. Estava livre? Claro, que outra coisa tinha para fazer senão esperar? O meu regozijo foi tanto maior quanto este meu companheiro, que escreveu uma obra romanceada sobre o Directoire chamada Papilée, tinha sido uma das mais surpreendentes descobertas literárias das minhas primeiras leituras. Nenhum inglês conhece tão bem Portugal como ele; escreveu há pouco uma biografia de Pombal, o grande ditador do século XVIII. Na verdade, Cheke é, ele próprio, uma personagem do século XVIII: elusivo, excêntrico, temperamental (o que passa por «artístico»), mas impregnado de um charme discreto.   

         Encontrei nele um excelente guia, detentor de informações fascinantes. Deleita-se com os Portugueses mas considera que os lisboetas estão contaminados pelos artifícios do mundo moderno. Apesar disso, continuam a ser pouco sofisticados, ineficientes e acriançados: um dos seus maiores prazeres é o fogo-de-artifício, a ponto de um aristocrata e toureiro, cujo apelido de família se destacou durante séculos pela sua coragem, ter como passatempo visitar duas vezes por semana o jardim zoológico, onde lança foguetes para a aldeia dos macacos.

         Hoje, o nosso táxi, por puro gozo, e animado por uma fúria que só os taxistas portugueses têm, subiu a toda a brida pelas íngremes calçadas de paralelepípedos do bairro mourisco, Alfama. Esta é a parte da cidade que sobreviveu ao catastrófico terramoto de 1755, quando dois terços de Lisboa desapareceram em apenas quinze minutos. Quando observado de cima, os telhados do casario assemelham-se a uma manta de retalhos feita de um tecido grosseiro. Por perto, o mercado de peixe, onde as mulheres, levando à cabeça enormes canastas, se exaltam e brigam permanentemente, esbofeteando-se umas às outras com rodovalhos ou lagostas.

         O táxi lançou-se depois pelas colinas abaixo. Correndo em duas rodas, navegava de forma alucinante por curvas apertadas, em ruas protegidas da precipitação da chuva por delicadas grelhas de ferro. Depositou-nos à porta da escola equestre do século XVIII, onde se encontra a maior colecção de coches [do mundo?]. Além dos coches, ficamos maravilhados pelos uniformes que eram usados nos cortejos pelos cocheiros, pelos arautos, pelos músicos e pelos criados a pé. Os trajes bordados da aristocracia eram de uma enorme riqueza, com fios de ouro e prata e botões de porcelana, mosaico, esmalte e jóias. Até as fivelas dos sapatos parecem molduras feitas de joalharia. Esta visita a um museu, a primeira desde que a guerra começara, trouxe-me a memória vívida daqueles dias longínquos em que, tendo os Sitwells «descoberto» o barroco, passávamos férias na Baviera em sua companhia.

         Será possível descrever o prazer que sentimos ao visitar o Palácio de Queluz pela primeira vez? Até mesmo Beckford, nas suas cartas, foi incapaz de fazer justiça a este palácio de Cinderela, pintado de rosa e verde-pistácio. É mais belo do que tudo quanto existe na Baviera, com mais liberdade criativa e fantasia de tudo quanto existe em França. É a apoteose da arquitectura «fondant». Um dos edifícios, com empenas holandesas e o telhado em dupla mansarda, exibe uma fachada ornamentada com esfinges, anjos tocando trompetas e varandas rendilhadas. Uma mostra desarmante de pirotecnia arquitectónica.

Terça-feira, 14 de Julho

         A batalha de Alamein permitiu um período de acalmia durante cinco dias. Conseguimos causar alguns danos nas linhas inimigas e até fizemos cerca de 2.000 prisioneiros. No entanto, o perigo continua a ser tão intenso como dantes. A natureza humana permite que nos habituemos a praticamente tudo. A proximidade do inimigo a Alexandria, que até há pouco era motivo de alarme, é agora aceite com tranquilidade.

Quarta-feira, 15 de Julho

         Acabaram-se as manhãs ociosas. Finalmente, conseguiu-se obter as autorizações para usar a minha câmara, um sinal de boa vontade. Uma primeira passagem pelo Gabinete de Imprensa fez-me adivinhar que iria ter de passar vários dias a adular as pessoas mais importantes de Lisboa. Homens de Estado, marquesas vestidas de negro rodeadas de admiradores esvoaçantes, um almirante octogenário, o cardeal patriarca e outros dignitários da Igreja, os comandantes do exército, da defesa civil, da Cruz Vermelha, uma poetisa – todas estas figuras viviam num mundo à parte, só deles, muito distante do modo como intensamente então se vivia e morria em África.

         Num castelo inteiramente renovado no século XIX, o Presidente Carmona – a quem já chamaram o Botha de Salazar/Smuts – recebeu-me com a graciosidade do antigamente, apesar de ter dado havia pouco uma dolorosa piqûre na sua perna. Nascido na década de 1860, o Presidente Carmona liderou o coup d’État que em 1926 levou à fundação do actual Estado Novo português, Hoje, após quinze anos como Presidente da República, goza de tanto prestígio como um soberano regente, tem o exército como uma força unida atrás de si e é respeitado e amado por todas as classes sociais. O antigo revolucionário tornou-se um velho grand seigneur, apresentando-se com o seu modo delicado apesar do desapontamento óbvio de nenhum de nós ser o coronel que o Secretariado lhe disse que iria comparecer perante ele. Parecendo uma ilustração de Caran d’Ache com a sua figura esbelta e aprumada – uma herança dos tempos da tropa –, envergando um casaco preto e calças listradas, posava como um dândi doutros tempos. A decoração vitoriana do castelo prestava-se a fotografias maravilhosas, com as paredes forradas de brocado cor de mostarda, retratos parecendo oleografias, e um gigantesco relógio de pêndulo colocado sob uma campânula de vidro. Em algumas das muitas molduras de prata expostas, encontram-se fotografias de uma senhora que dizem ser a sua antiga cozinheira, com quem se casou recentemente. Será, porventura, boa cozinheira; não é, seguramente, uma mulher bonita.

         A cada dia que passava, mais personagens: homens idosos em uniformes resplandecentes, aristocratas em jardins forrados de azulejos azuis e brancos. Mas a cada dia surgiam também mais reservas por parte de Salazar. No fim, convenci os meus chefes que havia que pôr termo a este cansativo jogo de esconde-esconde, e autorizaram-me a regressar a casa sem o líder-Garbo [Garboesque] no meu portefólio.  

         Após a minha última sessão fotográfica (o chefe da Marinha, um almirante com um longo nariz entortado para a esquerda e cabelo cinzento cortado em franja), deixei cair a minha máquina numa escadaria de pedra. Este acidente freudiano fez com que me apercebesse da estúpida autoconfiança, mas também da incrível sorte que tive, ao ter embarcado para a minha viagem ao Médio Oriente munido apenas de uma câmara. A Rolleiflex, que me acompanhou incólume, com típica eficiência germânica, através de tempestades de areia e viagens de jipes aos solavancos, encontrava-se agora inutilizada, justamente quando eu, do ponto de vista psicológico, devia dar por terminada esta minha missão.

         Aguardo agora a autorização do Ministério da Informação para poder regressar a casa. As delícias setecentistas e frívolas desta linda cidade cor de pistácio, e os surpreendentes privilégios de uma atmosfera pacífica começam a desvanecer-se, sendo agora mais forte o desejo de regressar a casa. Além disso, não conhecendo naturais do país e sendo incapaz de falar a sua língua, sinto que abusei em excesso da hospitalidade de Marcus Cheke e de algumas pessoas da embaixada, onde sinto que começo a ser um estorvo.

         Hoje, em vez de comer sozinho, almocei no restaurante do hotel com uma jovem castelhana cujos pais tinham ido almoçar fora. Adoro a companhia de meninas desta idade, absolutamente fascinantes. Esta, então, era particularmente encantadora, dano um ar de desamparo pungente. «Oh!», disse ela, «é terrível ter catorze anos!» Não se importava de ter onze e ansiava por já ter dezanove anos – mas doze, treze, catorze, quinze, dezasseis, isso era terrível, pois pretendia assumir uma postura adulta sendo incapaz de disfarçar que era ainda uma criança. Está a escrever as suas memórias. Começam pelo «êxodo» da Alemanha quando ocorreu a rendição da França.

         É uma sensação estranha estar num país neutral e ouvir em primeira mão histórias dos territórios ocupados. A rapariguinha falou-me de Paris sob ocupação germânica e do facto de todos detestarem os boches mas não expressarem essa animosidade por receio de irem parar à prisão. Quando o seu pai a levou ao Luna Parque, dois alemães decidiram andar numas cabines que se moviam no ar como moinhos de vento. O dono da atracção viu aí uma oportunidade para se divertir e duplicou a velocidade com que a cabine se movia no céu. Uma multidão de franceses olhou para o céu, morrendo a rir à medida que os alemães iam subindo cada vez mais alto. No meio da multidão, um jovem soldado alemão virou-se para uma menina que gritava de alegria. «São muito engraçados, não são?», perguntou-lhe. A menina ficou calada, parecendo aterrorizada, e fugiu dali.  

         Os judeus têm de usar estrelas amarelas na lapela, que dizem «Eu sou judeu». A rapariga viu uma das suas colegas de escola usar o distintivo no jardim e ficou tão incomodada que não se atreveu sequer a falar com ela. «Mas os judeus não estão em pânico?», «Não, estão bem, são eles que controlam o mercado negro». A minha pequena amiga contou-me também uma série de mexericos sobre amigos comuns, sobre as suas inclinações políticas, sobre os efeitos da Ocupação no comércio («Os negócios vão de vento em popa – os alemães pagam bem!»). «Que dizem os franceses dosraids da RAF sobre França?», «Oh, estão muito divertidos!», «Não estão em pânico?», «Não, nada disso, julgam que a RAF apenas irá atingir as fábricas. Ouvem as bombas explodir e só depois é que toca a sirene de alarme». Rimo-nos juntos com histórias antigermânicas e observámos com espanto uma festa de oito hunos selvagens que estavam a devorar um almoço de oito pratos na mesa ao lado da nossa.

 Cecil Beaton

(tradução de António Araújo)


Publicada por Malomil à(s) 23.10.16 
http://malomil.blogspot.pt/2016/10/lisboa-1942_23.html