quarta-feira, 21 de fevereiro de 2018

“Três capítulos de ‘Os Maias’ estiveram perdidos na tipografia

“Três capítulos de ‘Os Maias’ estiveram perdidos na tipografia. O livro podia nem sequer ter sido publicado”
21.02.2018 às 17h38
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 “Estilos precisos e dúcteis” não é o mesmo que “estilos preciosos e dúcteis” e é por sabê-lo que os investigadores Carlos Reis e Maria do Rosário Cunha regressaram à primeira edição de “Os Maias” e às notas e correspondência de Eça de Queirós para reconstituir o texto na versão mais aproximada da intenção do autor. E também para entender as voltas que a obra maior da ficção queirosiana deu, passando de mãos para mãos em diferentes tipografias. A edição crítica do romance é apresentada esta quarta-feira, em Lisboa
Sendo o romance “Os Maias” considerado a obra maior da ficção queirosiana, porque é que esta edição crítica e anotada só é publicada agora? Foi uma escolha editorial?
Isto é um trabalho que envolve muita gente, sobretudo professores universitários e investigadores que têm os seus ritmos de trabalho, as suas prioridades e os seus doutoramentos para fazer. Depende muito da disponibilidade dos colaboradores. Não há uma ordem pré-estabelecida, mas evidentemente que a extensão dos materiais tem aqui alguma influência e “Os Maias” são de facto uma obra muito extensa. A coleção das edições críticas das obras de Eça de Queirós - que integra livros que foram publicados em vida, como “Os Maias”, outros que foram publicados postumamente, como “A Capital”, volumes que reúnem textos que Eça publicou em jornais mas não reuniu em livro - está organizada por setores e essa organização tem uma lógica editorial.


Foi a partir da edição de 1888, a primeira e única publicada enquanto Eça era vivo, que trabalharam? 
Sim, trabalhámos a partir dessa edição que é aquilo a que chamamos edição autorizada, isto é, a única edição que Eça acompanhou e que teve muitos acidentes de percurso. O texto esteve na tipografia mais de oito anos. Eça vivia no estrangeiro e isso também complicava as coisas. Seja como for, essa edição ficou como o único texto de referência. Há alguns materiais de espólio, como um ou outro manuscrito abandonado, que também foram aqui usados, mas mais como apêndices e trabalho preparatório. Não trabalhámos a partir de manuscritos porque de facto não há manuscritos. Devem ter-se perdido quando Eça os enviou para a tipografia a partir da Inglaterra.


Em termos de texto, esta edição é então em tudo semelhante à primeira?
Não é exatamente igual, porque esta edição intervém nos lugares do texto em que é preciso intervir. Dou-lhe um exemplo. Eça usava muitos estrangeirismos, “champagne” por exemplo, mas às vezes esses estrangeirismos eram aportuguesados e outras vezes não. Também a forma como a palavra “turiste” aparece escrita na página 27 não é igual à forma como aparece escrita na página 627. Foi preciso andar num vai-vem constante no texto para tentar uniformizar este tipo de divergências. A obra levou muito tempo a ser escrita e passou de facto por muitas mãos em diferentes tipografias, o que fez com que os critérios fossem muito oscilantes. Na época, os escritores confiavam muito no trabalho das tipografias e isso gerava algumas discrepâncias e incongruências. A edição crítica procura, na medida do possível, normalizar o texto. E evidentemente resolver também alguns lapsos que o escritor cometeu e o tipógrafo não viu.


O que acrescenta esta edição crítica às leituras que normalmente fazemos de “Os Maias”?
A essas leituras que fazemos acrescenta as correções que incidem sobre erros que foram cometidos ao longo dos tempos. Dou-lhe um exemplo, tratando-se este de um erro que não está na primeira edição do romance, publicada enquanto Eça ainda era vivo, mas que foi aparecendo nas edições seguintes. Há um certo passo em que se fala em “estilos precisos e dúcteis”. No entanto, a certa altura, e em edições posteriores, introduziu-se aqui uma gralha, passando a ler-se “estilos preciosos e dúcteis”, o que evidentemente tem um significado diferente. Isto é só um exemplo, porque há de facto várias gralhas que se foram repetindo ao longo dos anos. Pergunta-me - para que serve então uma edição crítica? E eu respondo-lhe - serve como matriz para futuras edições. É um pouco como se quiséssemos reproduzir um quadro mas, percebendo que esse quadro está um pouco estragado, optássemos por restaurá-lo primeiro e só depois então reproduzir. Assim, as editoras que continuam a editar “Os Maias” têm de considerar o facto de já existirem edições críticas de muitos títulos. Porque de facto não faz sentido fazermos edições desta natureza se as edições correntes, que estão no mercado, não baseiam nessas edições críticas. É como se estivéssemos constantemente a repetir os mesmos erros e a reproduzir a versão estragada do quadro e não a restaurada.

DIVULGAÇÃO

As editoras não têm considerado essas edições?
Algumas sim, outras não, e basicamente por razões económicas. De facto, é mais barato reproduzir infinitamente e também dá menos trabalho. Há quem invoque a questão dos direitos de autor, mas isso é apenas uma má desculpa, porque os direitos de Eça de Queirós estão em domínio público. A editora pode usar edições críticas sem ter de pagar um tostão nem à Imprensa Nacional nem à família de Eça. Se não usa, é por preguiça - porque usar edições críticas obriga a recompor o texto e não apenas a fazer uma reprodução fotomecânica - ou por razões económicas. Isto merece uma reflexão. A nossa ideia de património baseia-se muito no património físico - nas capelas românicas, nos quadros do séc. XVI e por aí fora. Se alguém estragar um monumento, uma escultura, uma pintura, uma capela ou a fachada de uma catedral, essa pessoa é responsabilizada e a comunidade indigna-se. Mas parece que as obras dos escritores não cabem neste critério e que portanto podem ser estragadas ao longo dos anos, que não há problema nenhum e ninguém se preocupa.


De que modo é que a leitura de notas escritas por Eça e da correspondência que ele trocou com personalidades suas contemporâneas contribuiu para fixação do texto?
Nesses documentos e cartas percebemos as voltas que o texto deu e os acidentes que conheceu. Três capítulos de “Os Maias” estiveram perdidos na tipografia, ninguém sabia onde estavam. Ou seja, o livro podia nem sequer ter sido publicado. Todos esses acidentes e todas essas orientaçoes que o escritor dá, a ajuda que pede aos amigos, como a Ramalhão Ortigão, e os pedidos que faz à tipografia para rever a obra, têm um valor muito grande para nós, ajudam-nos a reconstruir a história do texto.


Além desses acidentes e incidentes, e das dificuldades variadas associadas à escrita desta obra, o que mais revelam essas cartas
Revelam que, a partir de certa altura, no princípio dos anos 80, Eça percebe que este tema é de facto extremamente importante. E claramente resolve escrever o romance da vida dele. A história de “Os Maias” é muito complexa, com cenários muito amplos e muitas personagens, como de resto acontecia com os escritores daquela época. E Eça não tinha toda a disponibilidade para se dedicar ao romance, à ficção; escrevia inclusive para jornais para ganhar dinheiro. No meio disto tudo, e enquanto escreve o livro, atravessam-se vários projetos pelo seu caminho, como o romance “A Relíquia”. Tudo isto atrasou o processo. Refira-se também que, paradoxalmente, “Os Maias” são provavelmente o romance relativamente ao qual Eça de Queirós vai revelando ter mais dúvidas.


Que tipo de dúvidas?
Dúvidas do género - será que é isto que eu quero? Será que as pessoas vão entender isto? E de facto, na época, muita gente não entendeu. A obra era realmente muito ambiciosa. Está para além da dimensão de Portugal.


O que é que as pessoas não entenderam ou entenderam erradamente?
Quando o livro foi publicado, houve um incidente que causou polémica. Muita gente pensou que a personagem Tomás de Alencar era uma sátira do poeta Bulhão Pato, que era um senhor muito conhecido e respeitado. Pinheiro Chagas, por exemplo, foi muito veemente nessa acusação e o próprio Bulhão Pato também reagiu muito mal. Tudo isto para dizer que um grande romance daqueles limitou-se, para muita gente, a este incidente. Dou-lhe outro exemplo. Fialho de Almeida, outra pessoa muito respeitada na época e crítico influente, a dada altura acusa as personagens de Eça de serem todas muito parecidas umas com as outras e muito afrancesadas, ao que escritor respondeu dizendo qualquer coisa como - “Meu caro amigo, conhece Portugal? Conhece Lisboa? É assim que as pessoas são”. De facto, foi um romance que, na época, não teve leituras à sua altura.


E entretanto já teve?
Com certeza que sim. Ao longo dos anos, foi sendo entendido como o maior romance da literatura portuguesa e uma obra extremamente conhecida, apreciada e traduzida em dezenas de línguas. Só não é considerado um grande romance da literatura universal porque foi escrito em português. Se fosse escrito em inglês ou francês, disputaria lugar com o “Madame Bovary”, por exemplo, e com as obras do Dickens.


Além de ter sido pouco entendido, o livro também foi pouco comprado. Considera que já nos redimimos das falhas dos nossos antepassados? A obra já é valorizada como merece?
Acho que sim. Quando se trata de apreciação literária, às vezes não há como dar tempo ao tempo para que as verdades críticas venham ao de cima. A sucessão de leituras, muitas delas até já distanciadas, acabam por fazer justiça à obra. Isto não aconteceu só com Eça.


No prefácio a esta edição, descreve-se “Os Maias” como uma “empresa extremamente ambiciosa, expressão culminante e genial de muito daquilo que Eça tinha para dizer aos seus contemporâneos e à posteridade”. Porque é tão importante que a posteridade continue a ouvir o que Eça tinha para lhe dizer?
Basta olhar à nossa volta, não é? A nossa vida pública e a nossa vida privada estão cheias de personagens queirosianas vestidas à moda do séc. XXI. Repare como Eça caricaturou a figura do escritor, com os seus tiques, as suas manias, as suas vaidades, e repare como caricaturou a figura do político. Eça inventou a palavra verborreia a propósito do discurso político no parlamento e a pergunta que fica é - será que hoje em dia ainda faz sentido usar a palavra verborreia? Olhando à minha volta, olhando para a vida política, social, económica e religiosa, eu acho que faz. As manias, os pequenos vícios e as pequenas virtudes, tudo isso atormentou este homem que conheceu Portugal como pouca gente conheceu. E tudo isso continua muito presente na nossa vida pública. Tal como continuam presentes no nossos imaginário e cultura os grandes temas - o medo da morte, os amores proibidos, a questão do incesto.


quinta-feira, 8 de fevereiro de 2018

«Colheita», de Jim Crace

segunda-feira, 31 de março de 2014

«Colheita», de Jim Crace



The luminaries, da escritora Eleanor Catton, foi o romance vencedor do prestigiado Man Booker Prize de 2013. Um outro candidato ao prémio, intitulado Harvest, figurou também na lista final e fora apontado como um dos favoritos pela crítica. Esse romance foi escrito por um dos maiores romancistas ingleses da atualidade: Jim Crace (n. 1946).

O cenário de Colheita desenvolve-se numa remota aldeia inglesa (situada num local e tempo não especificado pelo autor), com poucos habitantes, mas com muitos hectares de terra de cultivo. O pacato quotidiano dos agricultores, nessa terra onde «tudo estava destinado a manter a forma que tinha», rege-se em torno da labuta, de sol a sol, e mesmo com o excesso de trabalho a fartura na mesa não abrange os seus lares, nunca. Master Kent, o proprietário das terras, devido à mão-de-obra que, mesmo sendo vasta não é suficiente, em busca de melhor retorno financeiro, manda um primo seu vir visitá-lo, a fim de poder contar com o conselho e gestão das suas terras por uma pessoa de fora, mais habituada às novas técnicas agrícolas. Ele era apenas um gestor de pessoas, não de máquinas. Com a chegada de novos forasteiros, com visão oposta às da população, uma ameaça pairará na pequena aldeia. Incêndios, torturas, mortes, deserções e mistérios farão parte da narrativa após as primeiras duas dezenas de páginas, e terão uma voz que as narrará ao leitor: Walter Thirsk, um agricultor, um dos poucos que sobreviveu para contar a história.

Colheita é um romance intrincado, que questiona, mais do que dá respostas. A prosa é rica, metódica, linguisticamente criativa, e é dada a conhecer paulatinamente, via frases curtas. Jim Crace não necessitou de quatrocentas ou quinhentas páginas para revelar como o progresso varre o passado e distancia as pessoas do mundo natural, a que pertencem. O final do romance poderia ter sido melhor compreendido se o autor não tivesse tanta relutância em descortinar mais o enredo, os factos sobre os personagens centrais. Contudo, essa omissão premeditada (ou não) não conta demasiado para que este romance não seja classificado como um belo livro.

Além de Colheita, que chegou às livrarias portuguesas a 18 de Março, Jim Crace é autor de outros doze livros; desses, para português foram traduzidos os seguintes: pela Difel: Continente (1988), eQuarentena (1999), A Morte nas Dunas (2001) e Arcádia (2006) pela Gradiva.
Data de Publicação: 18/03/2014N.º de Páginas: 216

http://silenciosquefalam.blogspot.pt/2014/03/colheita-de-jim-crace.html

Este foi um livro finalista de vários prémios internacionais, no decurso do ano de 2013, sendo, até, apontado, na altura, como favorito ao prémio final. Apesar de não ter ultrapassado a “shortlist”, esta obra recebeu, no entanto, vários elogios em jornais prestigiados e várias estrelas de mérito em blogues de cariz literário.

Jim Crace, o seu autor, não é propriamente um desconhecido. Há mesmo quem o considere “um dos grandes escritores do nosso tempo”, ocupando “um espaço próprio entre os romancistas ingleses dos nossos dias”.

E é mesmo na Inglaterra do feudalismo de outros tempos, no despertar da revolução industrial, que se passa a história que ele nos conta em “Colheita”.

Sem nunca especificar o local, o narrador fala-nos de uma aldeia remota, segura, perdida dos centros urbanos mais próximos; e nomeia o final de um qualquer verão como o tempo histórico dos acontecimentos.

Pelos olhos e voz de Walter Thirks, é-nos descrito o quadro de um número reduzido de aldeãos que, por lá, vivem pobremente do amanho da terra; labutam arduamente, de sol a sol, segundo o ciclo da mãe natureza, e recolhem os produtos que ela lhes dá, ao ritmo das variações climatéricas das estações do ano.

O ambiente harmonioso entre eles e Mr Kent, o proprietário da casa senhorial que os tutela, é perturbado, a certa altura, por um grupo de viandantes desconhecidos, errantes, com hábitos diferentes dos daquela pequena sociedade agrícola e, também por isso, mal recebidos.

As tensões crescem, os problemas sucedem-se, mas a ameaça que sobre eles paira não fica por aí. E o que se segue, com novos rostos de perigo e devastação, é a ruína dos fundamentos do modo de vida daqueles que naquela comunidade rural entretinham relações sociais de uma forma pacífica e cooperante; até à sua própria destruição.

Razões tradicionais de sucessão de bens, assim como a vontade de melhorar a gestão das terras e a desejada apropriação dos terrenos comunitários e de cultivo para a introdução de novas técnicas agrícolas, vão atingir a confiança dos laços familiares e de vizinhança, o âmago da moralidade e dos costumes.

A violência instala-se e irá reduzir tudo a cinzas.

Num espaço de sete dias, Walter, o único que, na aldeia, sobrevive a este desmoronamento, dá-nos conta da desorganização de uma agradável ordem social, dos estragos e aflições na localidade e dos preparativos inesperados e rudes para a iniciação da produção industrial.

Ele tornou-se um trabalhador agrícola, mas as suas origens permitiram-lhe ser mais esclarecido que os demais e  observador do meio que o circunda e da sua própria rotina. Gosta de discorrer sobre temas que o preocupam, mas o seu relato não deixa de ser sombrio, dorido, inquietante, cheio de questões, dúvidas e perplexidades.

Embora não muito longa, esta não é uma narrativa de leitura fácil. A história é densa, complexa, contada na primeira pessoa, com muito pouco diálogo. Nela misturam-se relatos de factos acontecidos em diversos tempos do passado com acontecimentos presentes e até reflexões suscitadas por uns e outros.

É, não obstante, um livro muito interessante; algo instrutivo sobre tempos e sociedades que já não voltam, sem ser encomiástico da vida campesina.

É, de certo modo, uma viagem à História, viva e demonstrativa de que o progresso desagrega as comunidades nas suas relações intergrupais, nos seus usos, costumes e apego à terra-mãe.

A prosa de Crace é rica, criativa, lírica e detalhada, despertando no leitor emoções que o levam até ao final.

http://dosnossoslivros.blogspot.pt/2015/02/colheita-jim-crace.html

domingo, 4 de fevereiro de 2018

Carlos Drummond - Carta a Stalingrado


3 de fevereiro de 2018 - 17h59
Drummond: Carta a Stalingrado
A barbárie nazista foi derrotada em StalingradoA barbárie nazista foi derrotada em Stalingrado
No dia 2 de fevereiro de 1943 o Exército Vermelho infringiu em Stalingrado uma memorável derrota contra as forças nazistas que haviam invadido a URSS. Foi o começo do fim para Hitler e seus parceiros nazistas. 

Poema de Carlos Drummond de Andrade 

Em Stalingrado, o ridículo e sanguinário “Reich dos Mil Anos” foi ferido de morte e os soldados soviéticos começaram a marcha para o oeste que só terminariam em Berlim onde, em 8 de março de 1945, impuseram a rendição final à Alemanha nazista.

Stalingrado tornou-se sinônimo mundial do heroísmo e da luta pela pátria e pelo socialismo que, no Brasil, Carlos Drummond de Andrade cantou neste poema.

A banda Bassoti, formada por operários da periferia de Roma (Itália), ligados à esquerda italiana, notória pelos shows que promove contra o imperialismo e em apoio aos povos do mundo, especialmente os palestinos, gravou a música que acompanha o poema de Drummond (José Carlos Ruy). 

Stalingrado

Depois de Madri e de Londres, ainda há grandes cidades!
O mundo não acabou, pois que entre as ruínas 
outros homens surgem, a face negra de pó e de pólvora, 
e o hálito selvagem da liberdade 
dilata os seus peitos, Stalingrado,
seus peitos que estalam e caem, 
enquanto outros, vingadores, se elevam.

A poesia fugiu dos livros, agora está nos jornais.
Os telegramas de Moscou repetem Homero.
Mas Homero é velho. Os telegramas cantam um mundo novo
que nós, na escuridão, ignorávamos.
Fomos encontrá-lo em ti, cidade destruída, 
na paz de tuas ruas mortas mas não conformadas,
no teu arquejo de vida mais forte que o estouro das bombas, 
na tua fria vontade de resistir.

Saber que resistes.
Que enquanto dormimos, comemos e trabalhamos, resistes.
Que quando abrimos o jornal pela manhã teu nome (em ouro oculto) estará firme no alto da página.
Terá custado milhares de homens, tanques e aviões, mas valeu a pena.
Saber que vigias, Stalingrado,
sobre nossas cabeças, nossas prevenções e nossos confusos pensamentos distantes
dá um enorme alento à alma desesperada
e ao coração que duvida. 

Stalingrado, miserável monte de escombros, entretanto resplandecente!
As belas cidades do mundo contemplam-te em pasmo e silêncio.
Débeis em face do teu pavoroso poder, 
mesquinhas no seu esplendor de mármores salvos e rios não profanados,
as pobres e prudentes cidades, outrora gloriosas, entregues sem luta, 
aprendem contigo o gesto de fogo.
Também elas podem esperar.

Stalingrado, quantas esperanças!
Que flores, que cristais e músicas o teu nome nos derrama!
Que felicidade brota de tuas casas!
De umas apenas resta a escada cheia de corpos; 
de outras o cano de gás, a torneira, uma bacia de criança.
Não há mais livros para ler nem teatros funcionando nem trabalho nas fábricas, 
todos morreram, estropiaram-se, os últimos defendem pedaços negros de parede,
mas a vida em ti é prodigiosa e pulula como insetos ao sol,
ó minha louca Stalingrado!

A tamanha distância procuro, indago, cheiro destroços sangrentos,
apalpo as formas desmanteladas de teu corpo,
caminho solitariamente em tuas ruas onde há mãos soltas e relógios partidos,
sinto-te como uma criatura humana, e que és tu, Stalingrado, senão isto?
Uma criatura que não quer morrer e combate, 
contra o céu, a água, o metal, a criatura combate,
contra milhões de braços e engenhos mecânicos a criatura combate,
contra o frio, a fome, a noite, contra a morte a criatura combate, 
e vence.

As cidades podem vencer, Stalingrado!
Penso na vitória das cidades, que por enquanto é apenas uma fumaça subindo do Volga.
Penso no colar de cidades, que se amarão e se defenderão contra tudo.
Em teu chão calcinado onde apodrecem cadáveres, 
a grande Cidade de amanhã erguerá a sua Ordem.


Do livro Rosa do Povo (1945). In Carlos Drummond de Andrade. Poesia e Prosa. Rio de janeiro, Editora Nova Aguilar, 1983


Banda Bassotti - Stalingrado

Da redação do Vermelho
http://www.vermelho.org.br/noticia/204991-1

Fame e macerie sotto i mortai
Come l'acciaio resiste la citta'
Strade di Stalingrado, di sangue siete lastricate
ride una donna di granito su mille barricate
Sulla sua strada gelata la croce uncinata lo sa
D'ora in poi trovera' Stalingrado in ogni citta'

L'orchestra fa ballare gli ufficiali nei caffe'
l'inverno mette il gelo nelle ossa
ma dentro le prigioni l'aria brucia come se
cantasse il coro dell' Armata Rossa

La radio al buio e sette operai
sette bicchieri che brindano a Lenin
e Stalingrado arriva nella cascina e nel fienile
vola un berretto, un uomo ride e prepara il suo fucile
Sulla sua strada gelata la croce uncinata lo sa
D'ora in poi trovera' Stalingrado in ogni citta'


https://www.youtube.com/watch?v=CpTzWFNkbvg

Francisco Louçã - Leonor vai formosa e não segura

* Francisco Louçã

OPINIÃO

Leonor, cavaleira da mais insigne ordem de cavalaria, que não leu Camões nem se enfadará com a mitologia do Tosão de Ouro, sabe pelo menos que as monarquias são um conto de fadas para as revistas cor-de-rosa.

3 de Fevereiro de 2018, 7:57 

Leonor decerto não conhece Luís de Camões, nem nunca lhe sopraram carinhosamente aqueles versos, “Descalça vai para a fonte/Leonor, pela verdura;/vai formosa e não segura”. No Centro Privado de Enseñanza de Santa Maria de los Rosales, Leonor não cuida de trovas portuguesas. Também o que lhe interessaria esta homónima tão antiga, que “Leva na cabeça o pote,/o testo nas mãos de prata,/cinta de fina escarlata,/sainho de chamalote;/traz a vasquinha de cote”, e ainda por cima “vai formosa e não segura”? Leonor vai segura e mesmo certa, sem lho terem citando, ou porventura tendo ouvido demais, de que “chove nela graça tanta/que dá graça à formosura”. Mas Camões não entra naquele colégio, onde estuda a única pretendente a um trono europeu que frequenta o ensino privado.

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Leonor também não se lembrará do Duque de Borgonha, Filipe III, que levava o curioso cognome de O Bom, sabe-se lá por que artes. Já passou tempo demais, quase 600 anos, pois foi nos idos de 1429 que sua Alteza criou a Ordem do Tosão de Ouro, “uma das ordens de cavalaria mais prestigiosas e antigas da Europa”, apressa-se a explicar a Wikipedia, que sabe tudo.

Leonor talvez não tenha ouvido a história graciosa da Argo, essa nave que atravessa a mitologia, comandada por Jasão, acompanhado dos filhos dos melhores da Antiguidade, lá estava Hércules, filho de Zeus, Teseu, o maior herói grego, Orfeu e tantos outros, corajosos Argonautas navegando pelos mares em nome de uma vingança dinástica e para encontrarem o Tosão de Ouro, esse que deu nome à ordem de cavalaria. Newton, dado a cosmologias, calculou pela posição dos astros que a busca tivesse ocorrido no ano 939 antes da nossa era, portanto há 2957 anos. Como é que Leonor haveria de saber da aventura?

Leonor também não deve ter visto a lista dos cavaleiros da Ordem do Tosão de Ouro, apreciaria ela cruzar-se com Sarkozy, tacões altos no Salão Real, o rei da Arábia Saudita, a única família que dá nome ao seu país, o czar da Bulgária, o rei da Tailândia, o Grão-Duque do Luxemburgo, tudo boa gente, e, mais mundanamente, o chefe da NATO e um banqueiro, garbosos cavaleiros do Tosão? Mas Leonor saberá, e certamente apreciará, que desde o tempo da sua mãe até as mulheres passaram a poder receber a insígnia, e ela é uma das primeiras a pregá-la ao peito (um íman escondido garantia não haver riscos com o alfinete, esclarecem as revistas).

Saberá Leonor que a Ordem do Tosão de Ouro tem os seus dissidentes, que a Casa de Bourbon, que veio de terras francesas, e que em Espanha se ajustou a Bórbon, tem uma ramo austríaco, e quem sabe se algum mais por aí, que, sabedor da importância das insígnias, reclama um Tosão próprio, o mais verdadeiro, o que a deixa a ela como a pretendente de linhagem pura ou como uma usurpadora, vá-se lá saber?

Lembrar-se-á em todo o caso Leonor, princesa das Astúrias, de lhe ter sido concedida essa graça aos 10 anos. Mas teve de ter paciência. A insígnia, a condecoração mais distinta de Espanha, só lhe foi entregue agora aos 12, pelo pai, o rei, não podia ser cavaleira enquanto ainda fosse uma criança. A aplaudi-la, estavam na cerimónia vinte jovens da sua idade, dos 11 aos 14, todas vencedoras de um concurso de redacção em que tinham que desenvolver o tema fascinante, “O que é um Rei para ti?”. Diz uma revista que estas vencedoras da pena “trouxeram a sua frescura à solenidade da cerimónia”, ficam tão bem ao lado dos hussardos que ocupam os cantos do salão, de espada em riste.

Leonor, cavaleira da mais insigne ordem de cavalaria, que não leu Camões nem se enfadará com a mitologia do Tosão de Ouro, sabe pelo menos que as monarquias são um conto de fadas para as revistas cor-de-rosa.

https://www.publico.pt/2018/02/03/opiniao/opiniao/leonor-vai-formosa-e-nao-segura-1801812?

sexta-feira, 2 de fevereiro de 2018

Um texto de Charlot

* Charles Chaplin

Quando me amei de verdade, compreendi que em qualquer circunstância, eu estava no lugar certo, na hora certa, no momento exato.
E então, pude relaxar.
Hoje sei que isso tem nome... Auto-estima.
Quando me amei de verdade, pude perceber que minha angústia, meu sofrimento emocional, não passa de um sinal de que estou indo contra minhas verdades.
Hoje sei que isso é...Autenticidade.
Quando me amei de verdade, parei de desejar que a minha vida fosse diferente e comecei a ver que tudo o que acontece contribui para o meu crescimento.
Hoje chamo isso de... Amadurecimento.
Quando me amei de verdade, comecei a perceber como é ofensivo tentar forçar alguma situação ou alguém apenas para realizar aquilo que desejo, mesmo sabendo que não é o momento ou a pessoa não está preparada, inclusive eu mesmo.
Hoje sei que o nome disso é... Respeito.
Quando me amei de verdade comecei a me livrar de tudo que não fosse saudável... Pessoas, tarefas, tudo e qualquer coisa que me pusesse para baixo. De início minha razão chamou essa atitude de egoísmo.
Hoje sei que se chama... Amor-próprio.
Quando me amei de verdade, deixei de temer o meu tempo livre e desisti de fazer grandes planos, abandonei os projetos megalômanos de futuro.
Hoje faço o que acho certo, o que gosto, quando quero e no meu próprio ritmo.
Hoje sei que isso é... Simplicidade.
Quando me amei de verdade, desisti de querer sempre ter razão e, com isso, errei muitas menos vezes.
Hoje descobri a... Humildade.
Quando me amei de verdade, desisti de ficar revivendo o passado e de preocupar com o futuro. Agora, me mantenho no presente, que é onde a vida acontece.
Hoje vivo um dia de cada vez. Isso é... Plenitude.
Quando me amei de verdade, percebi que minha mente pode me atormentar e me decepcionar. Mas quando a coloco a serviço do meu coração, ela se torna uma grande e valiosa aliada.
Tudo isso é... Saber viver!!!


Charles Chaplin - Poema da Noite

* Charles Chaplin


Já chorei vendo fotos e ouvindo musica;
Já liguei só para ouvir uma voz;
Me apaixonei por um sorriso;
Já pensei que fosse morrer de saudade;
E tive medo de perder alguem especial... (e acabei perdendo)
Já pulei e gritei de tanta felicidade;
Já vivi de amor e fiz muitas juras eternas... "quebrei a cara muitas vezes!"
Já abracei para proteger;
Já dei risadas quando não podia;
Já fiz amigos eternos;
Amei e fui amado;
Mas tambem já fui rejeitado;
Fui amado e não amei...


Sebastião da Gama - Pelo sonho é que vamos

* Sebastião da Gama

Pelo sonho é que vamos,
comovidos e mudos.

Chegamos? Não chegamos?
Haja ou não haja frutos,
pelo sonho é que vamos.

Basta a fé no que temos.
Basta a esperança naquilo
que talvez não teremos.
Basta que a alma demos,
com a mesma alegria,
ao que desconhecemos
e ao que é do dia a dia.

Chegamos? Não chegamos?

Partimos. Vamos. Somos.