quinta-feira, 25 de junho de 2015

Álvaro Cunhal – A criação literária como modo de inventariação política e histórica

Domingos Lobo 
Quando se fizer a história, séria e objectiva, dos anos 1930/74, das lutas populares, da resistência e da militância antifascista em Portugal, essa tarefa terá, necessariamente, de se debruçar sobre o espólio literário dos autores ligados ao neo-realismo; penetrar esse profundo manancial antropológico, político e social que esses corpos textuais expressam e configuram, com rara acuidade, como nenhum outro movimento artístico/literário entre nós o fez. Só desse modo se poderá compreender a essência do que foi o fascismo luso e das profundas cicatrizes que ele inculcou no tecido social do país, a sua feroz, tentacular desumanização.

Contributo inestimável, em termos culturais e sociológicos, o que os autores neo-realistas nos legaram, na denúncia da opressão, na inquirição e transposição ficcional da realidade desses anos de cerco e ignomínia, na definição de atmosferas, vivências, interioridade de universos e acervo social, no rigor da reconstrução histórica, na descrição das relações entre opressores e oprimidos, na conceptualização da luta de classes – legado que essas obras, com raras excepções, amplamente incorporam.

A obra ficcional de Álvaro Cunhal/Manuel Tiago é hoje considerada pela crítica um dos vectores centrais do nosso neo-realismo; uma literatura fortemente influenciada pelo desejo, pela urgência de contar, de expressar a verdade e as recorrências de um tempo de lacraus e, no dizer de Urbano Tavares Rodrigues, uma peculiar, e profunda «experiência do humano»; ficção que se inscreve no vasto território de uma arte da clareza e da intervenção social.

O texto de Cunhal sobre o neo-realismo, as suas linhas programáticas e estéticas, publicado sob o pseudónimo António Vale, com o título Cinco Notas Sobre Forma e Conteúdo, saído na Vértice, em 1954, veio estabelecer em definitivo, corrigindo alguns desvios, as linhas fundamentais do movimento. Ao defender o uso funcional da obra de arte, a aproximação desta ao real, reflectindo a sua cosmocidade, Cunhal tenta transpor a criação literária para o domínio do social, integrando-o na análise dos quotidianos das massas proletárias. Ou seja, tratou-se de elaborar os princípios definidores de uma arte de inserção (no real, no social, no político) e não de exclusão desses fenómenos; uma arte que não reflectisse apenas a visão das elites e das classes dominantes, mas uma arte que servisse domínios mais vastos das lutas dos trabalhadores, emancipadora, democrática e de vanguarda. Assim, e segundo Cunhal, era necessário definir novos e mais poderosos recursos formais capazes de exprimir os riquíssimos ideais dos nossos dias.Objectivo, claro, actualíssimo.

O autor de Partido Com Paredes de Vidro defende, conceptualmente, uma arte que se situe no âmbito da luta contra o capitalismo neoliberal, globalizado e imperialista mas, simultaneamente, reflicta os problemas sociais do proletariado, correspondendo às relações dialécticas existentes entre as forças de produção.

A obra literária de Álvaro Cunhal parte da memória de uma vida vivida no gume da navalha, mas plena, para nos contar os medos, as angústias e a luta corajosa de um punhado de homens e mulheres que souberam, nas duras condições da luta clandestina e das prisões, resistir aos algozes e resgatar, em Abril de 1974, o nosso direito à voz, à cidadania e à Liberdade. À busca de um tempo «inteiro e justo».

Alheia aos bastidores das tricas literárias caseiras, a ficção de Cunhal revela-se logo após a Revolução, com Até Amanhã, Camaradas (romance que, ombreando comSubterrâneos da Liberdade na determinante da resistência ao fascismo, contém, na incursão narrativa, em relação ao texto de Jorge Amado, a autenticidade do factual e do vivido, no sentido expresso por Nathalie Sarraute) e determina-se, desde esse momento, território  pessoalíssimo e singular no panorama literário português dos anos 1970, colocando-se a par de algumas das vozes centrais de uma, provável, embora diversa nos seus propósitos estéticos e programáticos, 3ª. vaga neo-realista, que a denúncia da guerra colonial, através do texto literário, havia tornado visível e actuante: Álvaro Guerra, Modesto Navarro, Fernando Assis Pacheco, José Martins Garcia, José Manuel Mendes, João de Melo, António Lobo Antunes, Carlos Coutinho; mas próxima, na elaboração dos sintagmas romanescos, nos planos efabulatórios, na sintaxe, nos elementos discursivos, no modo como expressa e denuncia a opressão fascista, de algumas vozes tutelares da prosa e da poesia, vindas da resistência e seus companheiros de geração, dos anos 1930/40: Alves Redol, Soeiro Pereira Gomes, José Gomes Ferreira, Manuel do Nascimento, Papiniano Carlos, Manuel da Fonseca, Armindo Rodrigues, Luís Veiga Leitão, Joaquim Namorado, Daniel Filipe, entre outros.

Cunhal surge, neste contexto, como uma voz descomplexada, com uma escrita clara e despojada, de cariz vincadamente anti-burguês, política e partidariamente comprometida, afirmando-se, no desassombro da denúncia, livre e liberta dos constrangimentos que a censura havia imposto aos autores neo-realistas, embora em obras comoCinco Dias, Cinco Noites ainda permaneçam traços de umcódigo de alusões que tentava contornar os censores apelando, nos seus núcleos simbólicos, à cumplicidade do leitor. Temos, desse modo, um discurso que não escamoteia o real, que não esconde as suas origens doutrinárias e de classe, que se assume como contributo ideológico no combate ao fascismo.

Álvaro Cunhal escreveu ficção no pleno sentido do contador, aquele que nos alforges da memória traz a bagagem transmissível, primordial, que abre e amplia, pela revelação factual, horizontes críticos e analíticos sobre a história de 50 anos de fascismo; porque viveu experiências humanas, sociais e políticas raras e sobreviveu a um tempo de mordaça, de nojo e opressão e, desse tempo de pedras, nos disse da coragem, das quotidianas invenções do sol (como o fez Luís Veiga Leitão), acreditando na mudança possível, na esperança e no futuro. Um escritor que o foi pela urgência de contar, de narrar, através dos prodígios que a palavra opera, essa experiência, essa invulgar visão do mundo, e desse singular percurso nos quis deixar perene testemunho.

Dizem alguns...


Dizem
alguns que tu
foste uma lenda arrancada
das páginas da história. Que a tua
palavra ardia
como uma tocha. às vezes
como uma lança cravada
na carne da ignomínia.
Eu diria
apenas que foste
a encarnação de um sonho. o rosto
humano da utopia.

Albano Martins 1
 
1 (poema publicado na revista «As Artes Entre As Letras» nº.148, assinalando os 10 anos da publicação e, simultaneamente, da morte de Álvaro Cunhal)

http://www.avante.pt/pt/2169/argumentos/136091/

Sidónio Muralha - Para vós o meu canto...

*  Sidónio Muralha

Para vós o meu canto, companheiros da vida!
Vós, que tendes os olhos profundos e abertos,
vós, para quem não existe batalha perdida,
nem desmedida amargura,
nem aridez nos desertos;
vós, que modificais um leito dum rio;
- nos dias difíceis sem literatura,
penso em vós: e confio;
penso em mim e confio;
- para vós os meus versos, companheiros da vida!
Se canto os búzios, que falam dos clamores,
das pragas imensas lançadas ao mar
e da fome dos pescadores, 
- penso em vós, companheiros,
que trazeis outros búzios para cantar...
Acuso as falas e os gestos inúteis;
aponto as ruas tristes da cidade
a crivo de bocejos as meninas fúteis...
Mas penso em vós e creio em vós, irmãos,
que trazeis ruas com outra claridade
e outro calor no apertar das mãos.
E vou convosco. - Definido e preciso,
erguido ao alto como um grito de guerra,
à espera do Dia de Juízo...
Que o Dia do Juízo
não é no céu... é na Terra!

domingo, 21 de junho de 2015

Mario Benedetti ~Não fujas (no te salves)

* Mario Benedetti

Não fiques parado
à beira da estrada,
não congeles a alegria,
não queiras sem ganas
                     de querer,
não  fujas agora
        nem nunca,        
não fujas!

Não te enchas de resignação,
não guardes, do mundo todo,
apenas um cantinho tranquilo,
não baixes os olhos ao chão
        pesados como chumbo,
não fiques de boca seca
                   de palavras,
não durmas sem sonhos
não medites sem côr
             sem sangue,
não te julgues fora do tempo!

Mas se,
apesar de tudo,
não conseguires vencer-te
e, parado à beira da estrada,
congelas a alegria,
queres sem ganas de querer
e foges de agora, de hoje,

Se te enches de resignação
e, do mundo todo,
guardas para ti
só um cantinho tranquilo
e se amarras os olhos ao chão,
sem os levantares
para outros olhos,
e se mastigas as palavras
                    na boca seca
e se dormes sem sonhos
e se meditas sem côr
              sem sangue
e se te julgas fora do tempo

Se, por tudo isso,
ficas parado à beira da estradas
e foges,
então…
não fico contigo!


Tradução de Sérgio Ribeiro in http://anonimosecxxi.blogspot.pt/2015/06/para-este-domingo-com-benedettti.html

sábado, 20 de junho de 2015

Samuel Lima: E o poeta fez seu voo pássaro

19 de junho de 2015 - 14h33 

 

A travessia dos vendedores de sonhos começou há quase 50 anos, à sombra generosa dos tambores, sons e sabores de Minas Gerais. Sim, caro poeta Fernando Brant, essa era sua profissão por excelência: “Vendedor de sonhos/ tenho a profissão viajante/ de caixeiro que traz na bagagem/ repertório de vida e canções/ E de esperança/ mais teimoso que uma criança/ eu invado os quartos, as salas/ as janelas e os corações…”.

Por Samuel Lima*


Reprodução
"A notícia da sua partida, na noite veloz de 12 de junho de 2015, é um desses acontecimentos que deixam na gente aquela sensação estranha de orfandade"
"A notícia da sua partida, na noite veloz de 12 de junho de 2015, é um desses acontecimentos que deixam na gente aquela sensação estranha de orfandade"

Contudo, na noite veloz de 12 de junho você fez o seu voo pássaro em sua amada BH, deixando um repertório de vida e canções com mais de 300 composições. Penso, porém, que o seu legado maior é oClube da Esquina, obra coletiva daqueles meninos que nos anos 1960 ousaram sonhar e lutar em plena ditadura, usando como “arma” seus violões e canções: “sonho feito de brisa/ vento vem terminar”. E lá estavam juntos contigo parceiros como Milton “Bituca” Nascimento, Wagner Tiso, Nivaldo Ornelas, Márcio Borges, Paulo Braga, Beto Guedes, Toninho Horta, Tavinho Moura, Ronaldo Bastos, Lô Borges, dentre outros.

O jornalista Luis Nassif resgatou um texto de sua lavra intitulado “Golpe”, no qual expressas tua visão de menino, mineiro de Caldas, aos 17 anos transitando entre Diamantina e BH, ouvindo pelas ondas do rádio, naquele começo de março de 1964, o prenúncio das mais de duas décadas de trevas que se abateriam sobre o país. Você revela: “A Cultura me alimentou durante esse período de repressão e escuridão. O teatro, com espetáculos poéticos que nos inflamavam, vindos do Rio, São Paulo ou nascidos aqui mesmo, carregava nossas baterias para que suportássemos os tempos que se anunciavam. Música, cinema e literatura eram um saboroso combustível para o quase menino que eu ainda era”.

No pós-1968, quando a ditadura baixou o AI-5 e Decreto 477 (ato institucional contra a liberdade na educação) você recordava: “Senti isso de modo profundo quando voltei às aulas no início de 1969. Tudo era um vazio e um silêncio. Fomos levando nossas vidas na resistência pacífica, eu já escrevia canções nesta época, mas muitos daqueles jovens que beiravam os vinte anos acabaram empurrados para a luta clandestina, o que resultou em muita morte. Tempos de desespero aqueles, que devem ser lembrados para que não mais ocorram. Ditaduras e ditadores, sob qualquer pretexto ou ideologia, merecem desprezo, repulsa e nojo” (Fonte cit.).

Sua palavra, de poeta-cidadão, sempre esteve sentinela e atenta ao que acontecia no Brasil. Poesia “comprometida com a minha e a tua vida”, para lembrar um verso de outro poeta, amazônico, o grande Thiago de Mello. Não obstante você registrou cristalino, no poema 1965: “Quando eu pus o pé na estrada/ Não sabia de estrada nenhuma/ Nem via que caminhava/ O tempo em que caminhando eu ia”.

Sem embargo, poeta, no começo dos anos 1970 o clássico LP Clube da Esquina(1972) saía grávido de alegorias, canções de esperança (“Há sol e chuva na sua estrada/ mas não importa, não faz mal/ você ainda pensa e é melhor do nada…”). Nesse marco do Clube, sua palavra indicava o caminho da vida, e da luta, com rara beleza, em “Saídas e bandeiras”: “O que vocês diriam dessa coisa/ que não dá mais pé?/ o que vocês fariam pra sair dessa maré?/ o que era sonho vira terra/ quem vai ser o primeiro a me responder?”.

A obra se faz definitiva seis anos mais tarde, com o lançamento do Clube da Esquina 2 (1978), bolachão duplo, mais denso ainda que a primeira edição. Clássicos como Paixão e féO que foi feito deverá Maria, Maria davam o tom exato do seu verso, elevado à categoria de canção popular. No dueto com Elis Regina e Milton Nascimento, sua voz se elevaria sobre as montanhas Gerais: “O que foi feito amigo/ De tudo que a gente sonhou/ O que foi feito da vida/ O que foi feito do amor (…)/ Se muito vale o já feito/ Mais vale o que será/ E o que foi feito/ É preciso conhecer/ Para melhor prosseguir”.

No disco Sentinela (Milton Nascimento, 1980), você e seu parceiro maior abrem o novo ciclo, aprofundando os laços com Mercedes Sosa (em canção de Silvio Rodriguez). Mas, é neste trabalho que está sua canção mais bela sobre o amor, o afeto. Um hino à amizade, único, definitivo: “Amigo é coisa pra se guardar/ no lado esquerdo do peito/ mesmo que o tempo e a distância digam não/ mesmo esquecendo a canção/ o que importa é ouvir/ a voz que vem do coração”.

No front da resistência, sua voz na voz de Milton Nascimento se manteria altiva e bela, no ano seguinte, no disco Caçador de Mim (1981): “Quero a utopia, quero tudo e mais/ quero a felicidade dos olhos de um pai/ quero a alegria, muita gente feliz/ quero que a justiça reine em meu país”, berra a plenos pulmões seu “coração civil”, escrevendo com clareza de qual utopia falavas.

No ocaso formal da ditadura militar, nos corações das milhares de pessoas que foram às ruas do Brasil exigir “Diretas, Já” (1984/1985), rebrilhava a esperança. E você traduziu mais uma vez o sentimento com genial sintonia: “Quero a liberdade, quero o vinho e o pão/ quero ser amizade, quero amor, prazer/ quero nossa cidade sempre ensolarada/ os meninos e o povo no poder, eu quero ver”.

No texto “Golpe” você lembra essa passagem: “21 anos mais tarde dessa desgraça que se abateu sobre os brasileiros eu teria meu momento de desforra quando, diretor artístico da rádio pública de Minas, com alegria e muito trabalho, junto com os radialistas e jornalistas, colocamos no ar, durante todo o dia, a festa da vitória no Colégio Eleitoral, que trazia de volta a esperança e a democracia. Como nem tudo é perfeito e a vida nos prega peças indesejáveis, acabamos tendo de engolir o sapo Sarney” (Fonte cit.).

Sua coerente trajetória o levaria a escrever Carta à República, que integra o discoYauaretê (Milton Nascimento, 1987), já sob o signo da chamada “Nova República”, um eufemismo da velha-guarda udenista da política, liderada por um poeta fake do Maranhão. E denunciavas, pela voz e melodia do Bituca: “Eu briguei, apanhei, eu sofri, aprendi/ eu cantei, eu berrei, eu chorei, eu sorri/ eu saí pra sonhar meu País/ e foi tão bom, não estava sozinho/ a praça era alegria sadia/ o povo era senhor/ e só uma voz, numa só canção/ E foi por ter posto a mão no futuro/ que no presente preciso ser duro/ que eu não posso me acomodar/ quero um País melhor”.

No final dos anos 1990, você continua sua Conspiração de poetas (1997, ouça aqui), agora em parceria com Tavinho Moura, outro velho amigo do Clube da Esquina. E com trilha de Cruzada, de Tavinho, você reafirma todo o sentimento, esperança, sonho de mundo, de Brasil, de ser humano…


“Poesia é meu pão
E a vida meu juiz
Meu destino eu mesmo é quem fiz.
Meu coração, amar
Minha razão, brigar pelo País
A minha fé, sonhar
Minha paixão, viver solidário e contigo
É viver feliz. 
Minha canção cantará
Quem souber esse caminho
Quem souber de lua e mar
Poesia espaço de brincar
Quem não quer ficar sozinho
Que conjugue o verbo amar
Poesia espaço de criar
Meu coração vencerá
Vencerá…”


E assim te conheci, pessoalmente, aqui no Feitiço Mineiro, casa que abriga shows e culinária das Gerais, em Brasília, naquele 30 de outubro de 2013 – com Tavinho Moura e Mariana Brant (Conspiração de poetas). Guardo na memória do coração o abraço que pude lhe dar, ao final do espetáculo e você, com aquela humildade cativante me perguntou: “Você gostou? Ficou bom o trabalho?”.

A notícia da sua partida, na noite veloz de 12 de junho de 2015, é um desses acontecimentos que deixam na gente aquela sensação estranha de orfandade, de menino-caboclo tapajoara perdido num temporal amazônico… “Pois seja o que vier, venha o que vier/ qualquer dia, amigo, eu volto/ a te encontrar/ qualquer dia, amigo, a gente vai se encontrar”. E assim, “seguir apaixonado/ fazer a coisa bonita/ cair na vida e na música/ que abriram meu horizonte/ atrás eu vejo estrada/ caminho eu vejo à frente”.

À bênção, poeta e menestrel Fernando Rocha Brant!



*Samuel Lima é professor da UnB e pesquisador do Laboratório de Sociologia do Trabalho (Lastro/Ufsc) e objETHOS´
http://www.vermelho.org.br/noticia/265988-11

sexta-feira, 19 de junho de 2015

Nossa língua africana

19 de junho de 2015 - 14h57 A proximidade entre o português arcaico e as línguas do grupo banto resultou no português que falamos hoje”. Entrevista com a professora Yeda Pessoa de Castro.


Por Marcello Scarrone


Reprodução
Em Angola, ela é Yeda “Mun-tu” Castro. Na Nigéria, é Yeda Pessoa “Olobumim” Castro. Vem de longe a relação da etnolinguista e professora da Universidade do Estado da Bahia com a cultura africana
Em Angola, ela é Yeda “Mun-tu” Castro. Na Nigéria, é Yeda Pessoa “Olobumim” Castro. Vem de longe a relação da etnolinguista e professora da Universidade do Estado da Bahia com a cultura africana

Em Angola, ela é Yeda “Mun-tu” Castro. Na Nigéria, é Yeda Pessoa “Olobumim” Castro. Vem de longe a relação da etnolinguista e professora da Universidade do Estado da Bahia com a cultura africana. Ainda criança, em Feira de Santana, Yeda viu-se com o desejo de decifrar a incompreensível língua falada pelos negros. Desejo que a levou a desbravar um caminho em tudo pioneiro: mestrado na Nigéria, doutorado no Zaire e a descoberta de uma herança linguística fundamental para o português falado no Brasil.


Se nos orgulhamos de falar “cantano”, devemos agradecer ao gosto das línguas banto pelas vogais. Vem da mesma fonte africana o costume de abolir os plurais, como em “as criança” e “os menino”. 

Pergunta - Todo brasileiro é culturalmente negro, como disse Gilberto Freyre?

Yeda Pessoa de Castro - Não podemos generalizar. A cultura brasileira é em parte negra, mas depende do grau de presença africana pelas várias regiões. Mas a língua portuguesa que falamos, sim: esta é culturalmente negra. Ela é resultado de três grandes famílias linguísticas: a família indo-europeia, com a participação dos falantes portugueses, a família tupi, com a participação dos falantes indígenas, e a família níger-congo, com a participação dos falantes da região subsaariana da África. 

Por que a participação da família africana é tão importante? 

Durante três séculos, a maior parte dos habitantes do Brasil falava línguas africanas, sobretudo línguas angolanas, e as falas dessas regiões prevaleceram sobre o português. Antes se ignorava essa participação, se dizia que o português do Brasil ficou assim falado devido ao isolamento, à predominância cultural e literária do português de Portugal sobre os falantes negros africanos analfabetos. Eles realmente não sabiam ler ou escrever português, mas essas teorias eram baseadas em fatores extralinguísticos. Eu introduzi nessa discussão a prevalência e a participação dos falantes africanos, sobretudo das línguas níger-congo, que são cerca de 1.530 línguas. As mais faladas no Brasil foram as do Golfo do Benim e da região bantu, sobretudo do Congo e de Angola. 

São as chamadas de ioruba?

Ioruba são as línguas antes chamadas de sudanesas. Hoje as chamamos de línguas da África ocidental, ou línguas oeste-africanas. Destas, as mais faladas no Brasil foram o ioruba, que geralmente chamamos de nagô, e a língua fon, do grupo ewe-fon, que nós chamamos de jeje. 

Como se interessou pelas línguas africanas?

Desde pequena, na fazenda dos meus tios, em Feira de Santana, eu via aquelas rezas, havia muitos negros na região, via aqueles cantos, benzeduras, quando ficava doente tomava daquelas mezinhas que eles faziam com ervas. Em Salvador eu cresci num bairro popular, de famílias pobres como era a minha. A escola onde estudei, Nossa Senhora de Fátima, tinha uma diretora, professora Minervina, uma mulher negra, grande, que me impressionava, e no trajeto de minha casa para a escola havia muitos, muitos negros. Eu não conseguia entender o que eles diziam, aquelas palavras misteriosas. E prometi para mim mesma: “um dia vou saber o que eles estão dizendo”.

Então fui fazer Letras, para ter a possibilidade de matar essa curiosidade. No curso tinha um professor, Nelson Rossi, que influenciou muito as pesquisas sobre dialetologia, e me interessei em estudar a participação dos falantes africanos na formação do português do Brasil. O professor Rossi disse: “Ah, não se preocupe que isso tudo já foi estudado por Jacques Raimundo [autor de O elemento afro-negro na língua portuguesa (1933)], Renato Mendonça [autor de A influência africana no português do Brasil (1935)], nos anos 30”.

RH Começou sua pesquisa por onde?

Comecei em Salvador, levantando esse vocabulário, essa fala, mas tive a felicidade de poder sair do Brasil. Valia a pena sair do Brasil naquele momento, anos 60, muito conturbados, não é? Fui para a Nigéria, para a cidade de Ibadan, era uma zona de língua ioruba e na vizinhança se falava fon, jeje. Então fiz um trabalho sobre ioruba e fon. Até aquele momento era concepção vigente que a maior influência que havia no Brasil era a da presença ioruba/nagô. 

Não se conhecia a influência bantu?

Nina Rodrigues, quando estudou a influência africana no Brasil, fez um trabalho primoroso com os dados etnográficos que existiam. As pessoas o acusam de racista, mas eram as teorias vigentes na época. Quem garante que amanhã ou depois alguém não irá dizer que nós também somos racistas, e que essa teoria não vale nada? Nina começou a estudar a população negra africana em Salvador no momento em que havia uma grande concentração de falantes ioruba, ficou impressionado e afirmou que a mais importante influência africana no Brasil era ioruba. E ficou impressionado com outra coisa: naquela época ioruba era uma língua escrita, e o prestígio da escrita em comparação com as línguas europeias a fez prevalecer sobre outras línguas que não tinham escrita até aquele momento. Ele a achou uma língua literária, de uma cultura superior, fez tantos elogios à língua ioruba e aos falantes ioruba que o Brasil terminou dividido em duas grandes influências: ioruba na Bahia e o resto. Para Nina, o resto é o resto, não tem legitimidade, para Pierre Verger também. Nesse meio-tempo a influência iwe-fon ficou esquecida. Meu estudo sobre ioruba e iwe-fon foi a primeira dissertação de mestrado de um brasileiro numa universidade africana.

Só mais tarde, em 76, quando voltei a Salvador e fui ao Caribe também, comecei a perceber que havia muito mais coisas que não eram ioruba. Havia bantu. Esqueceram que a maioria, 75% dos cerca de 4 milhões de negros escravizados no Brasil, era de procedência bantu. Por que essa população foi silenciada? Então apareceu a oportunidade de ir para o Zaire, o antigo Congo belga, numa universidade maravilhosa. Mobutu, que era o ditador do país, ele próprio um ignorante, fazia questão de mostrar que havia cultura, que havia uma grande universidade, a Universidade Nacional do Zaire, Unaza. E lá escrevi meu doutoramento. 

O que descobriu? 

Nós não temos um falar crioulo do português, como no Caribe, na Guiana ou em outras regiões onde os portugueses foram os colonizadores. Mas percebi uma coisa: Angola e Moçambique também não têm falar crioulo. Por quê? Devia haver um link, não só uma coisa extralinguística, mas algo de tipo intrínseco, que impediu que emergisse um falar crioulo em Angola, em Moçambique e no Brasil. E eu vi que foram as mesmas línguas que entraram em contato: o português arcaico e as línguas do grupo bantu, especialmente as do Congo e de Angola, pois o tráfico com Moçambique foi muito menor e posterior. No Congo descobri o que aconteceu no Brasil: a proximidade que houve por acaso entre o português arcaico e as línguas do grupo bantu, que resultou no português que falamos hoje.

No que resultou a combinação dessas línguas? 

As línguas do grupo bantu não têm grupos consonantais, não têm uma sílaba fechada por consoante. O resultado é que nosso português é riquíssimo em vogais, afastado do português lusitano, muito baseado nas consoantes. O baiano fala cantando? Todo brasileiro fala cantando - aliás “cantano”, porque a gente sempre evita consoantes. A parte sonora da palavra é a vogal, e nós fazemos questão de cantar. No futebol nós dizemos “gou”, em Portugal dizem golo, para acentuar a consoante. Nossa língua é vocalizada, nós colocamos vogais até mesmo onde elas não existem. Pneu: nós usamos duas sílabas. Ritmo: nós dizemos três sílabas. Não sei por que as gramáticas insistem em dizer que “ritmo” tem duas sílabas, quando tem três. Fui ver a estrutura silábica do português arcaico e a formação silábica e o processo fonológico das línguas faladas em Angola e no Congo, e reparei numa extrema coincidência: é o mesmo tipo de estrutura silábica: consoante-vogal-consoante-vogal o tempo inteiro. Houve o mesmo tipo de encontro do português arcaico com essas línguas, que eram faladas majoritariamente no Brasil. Em vez de haver um choque, em vez da necessidade de emergir outro falar, um falar crioulo, não: houve simplesmente uma acomodação, devido às coincidências dessas estruturas linguísticas.

Que outras características nosso português herdou?

A eliminação dos plurais, por exemplo. Marcamos o plural pelo artigo que antecede o substantivo, mas o substantivo fica no singular: “os menino”, “as criança”, isso é normal no Brasil. Por quê? Porque nas línguas do grupo bantu o plural das palavras se faz por prefixo. A linguagem popular do Brasil, em qualquer região, tem as mesmas características: evitar grupos consonantais, substantivo sempre no singular, além da dupla negação, “eu não sei não”: isso é africano, o português de Portugal jamais diz isso. Também começar a frase com pronomes átonos: me diga, me fala, a gente começa a frase usando próclise. A mesóclise do português desapareceu na linguagem do Brasil: “dir-te-ei”, ninguém diz isso. 

Em que situações o português do Brasil é mais africano?

O nível mais próximo que tínhamos de vestígios de línguas africanas é o das linguagens religiosas: a dos vissungos em Minas Gerais, a do candomblé da Bahia, a da umbanda. A linguagem estava lá, não mais como competência linguística, mas como competência simbólica. Esta foi outra descoberta do meu trabalho: a competência simbólica. Quando as pessoas recebem uma entidade, vamos dizer, Oxum, rainha das águas (eu também sou filha de Oxum), há a saudação “Olele ô”. O que é “Olele ô”? Não interessa, a saudação é aquela. Isso é competência simbólica. No mês de Maria [maio] se reza a ladainha num suposto latim, que não é mais latim: “Regina Coeli, Aleluia, Regina bofetarum”, em vez de profetarum. As pessoas estão cantando para a rainha, então não tem importância: é a competência simbólica. Assisti a um caso muito curioso numa cerimônia no Pelourinho. Era uma trezena – porque na Bahia trezena são três dias, não treze, é um tríduo - uma trezena de Santo Antônio, e teve uma cena inteiramente amadiana [de Jorge Amado]. Lá tinha traficantes, prostitutas, tinha tudo. Primeiro, eles fizeram uma roda de santo para fazer uma feijoada de Ogum, e cantaram com sistema lexical africano. Quando terminou, fomos cantar para santo Antônio: ele estava num cantinho do altar, com aquelas flores azuis e brancas de papel crepom, e eles começaram a cantar a ladainha em latim acompanhada de tambor. O trecho “Agnus Dei qui tollis peccata mundi” foi cantado “Agnus dê clitóris peccata mundi”. Agnus passou a ser uma entidade que nos deu clitóris. Dizem que quem não sabe rezar xinga Deus, eu não concordo. Quem não sabe rezar que continue rezando dentro de sua competência simbólica, a competência linguística não tem nenhuma importância.

A língua se transforma segundo o estrato social?

O nível que vem depois da linguagem popular é o do falar mais cuidado, este que nós estamos usando aqui, e com tom regional. E enfim o português literário do Brasil, o português escrito, que obedece aos padrões da norma da língua portuguesa como um todo. À medida que você se aproxima desse nível, a influência africana diminui, devido à escolaridade. Quando somos menos alfabetizados, falamos mais africanizado. Quando somos mais alfabetizados, falamos mais aportuguesado. Mesmo assim não se consegue inibir esses traços, que estão na constituição do português do Brasil. 

É positiva a mobilização da sociedade e do Estado brasileiros por maior reconhecimento das nossas heranças africanas? 

Sim, inteiramente. Quando era diretora do Centro de Estudos Afro-Orientais da Bahia, em 82 ou 83, propus à Secretaria de Educação do Estado - e os movimentos negros me apoiaram nisso - a introdução de uma disciplina obrigatória nos currículos do Ensino Médio: Estudos Africanos (geografia, língua, literatura, história, antropologia, sociologia). A proposta foi aceita: em 84, 85, já tinha uma norma do então secretário de Educação da Bahia, professor Valdo Boaventura, determinando a introdução dessa disciplina nos currículos. Eu fui a predecessora da lei que seria aprovada bem mais tarde, em 2002, de Lula. E acho as cotas muito positivas, mas não se pode aprovar uma pessoa que se diz afrodescendente se for ignorante naquilo que pretende fazer. É muito importante que a população negra entre na universidade para abalar a estrutura, trazendo um novo discurso, uma nova visão, um novo colorido, que entre para abalar a concepção de que a universidade é uma instituição branca. Mas não se pode fazer isso indiscriminadamente. Há um tempo, fiz parte de uma banca examinadora que tinha duas candidatas, uma que não era negra e uma negra, e a segunda fez a opção de entrar pelas cotas. Só que o discurso dessa candidata foi pífio e o trabalho que ela escreveu era de uma pessoa quase analfabeta. Quem passou? Ela. Para que haja cotas é preciso que também haja o mérito. 

As universidades brasileiras ainda são muito elitistas? 

Extremamente elitistas. Veja a Universidade Federal da Bahia, por exemplo. Até hoje não existe um curso de línguas africanas. Até hoje não se estuda a questão das línguas africanas no Brasil numa cidade como Salvador, onde 85% da população são afrodescendentes. Quando assumi a direção do Centro de Estudos Afro-Orientais, abri a biblioteca para o público em geral e foi um escândalo: a biblioteca da universidade é para servir à universidade, diziam. Não, eu disse, aqui é um centro de estudo de extensão da universidade, então vou trabalhar com a comunidade. Fui acusada de estar vulgarizando a universidade. Por outro lado, como eram os anos 80, quando o movimento negro foi instalado na Bahia, falaram que eu era uma branca ocupando lugar de negro. Então fiquei entre a cruz e espada. Mas como sou baiana, e todo baiano gosta de capoeirar, fui capoeirando até o fim, sem nenhum conflito.

O que explica a persistência de intolerância contra religiões afro-brasileiras?

Primeiro: são religiões que não têm uma bíblia, são baseadas na oralidade. A pedagogia do mundo ocidental é toda baseada na escrita, só é legítimo o que é escrito. Como essas religiões não têm um livro sagrado, são folclore. E, como disse Edison Carneiro, cada candomblé, cada grupo desses, é uma igreja independente em si mesma. Não tem um papa que diga que tem que fazer isso ou aquilo. O segundo preconceito: eram religiões predominantemente praticadas por negros. E a comunidade negra é ligada à escravidão, ao analfabetismo, à falta de cultura, a uma série de preconceitos que nós sabemos que existem no Brasil. É uma religião sem proselitismo, ninguém faz sua cabeça para entrar no candomblé, você vai se quiser, e na hora que quiser sair, você sai.

Não oferecem céu, inferno e purgatório, isso não existe para elas. São religiões livres, que aceitam os indivíduos como eles são, homossexuais ou não, traficantes ou não, não interessa: não há nenhuma norma para você participar de um candomblé, da umbanda. Isto faz frente à Igreja Católica, que está perdendo fiéis. A Igreja Universal do Reino de Deus, com a força de seu muito dinheiro, quer reconquistar exatamente esse espaço, que o “povo de santo” conquistou e ocupa na sociedade brasileira.

Como vê a apropriação de manifestações afro-brasileiras pela indústria cultural? 

De certa maneira, essa indústria cultural divulga traços da presença negra africana no Brasil. A questão é a maneira como divulga isso. Por exemplo, escola de samba: houve essa questão da Beija-Flor [patrocinada em 2015 pela ditadura da Guiné Equatorial] e eu fiquei estarrecida com a entrevista de um dos membros da escola, dizendo “Nós não fazemos política, de onde veio o dinheiro não interessa”. Eu me pergunto por que as entidades que geralmente se preocupam com isso não dizem nada. Os carnavais do Rio são a exibição fantástica de comunidades com pessoas pobres que compram suas fantasias para dar dinheiro aos grandes cartolas das escolas de samba. Na Bahia a coisa é mais limitada: os blocos afro e afoxé, coitados, lutam para sair no carnaval, têm que competir com Ivete Sangalo, Margareth Menezes, Carlinhos Brown. São blocos que querem apresentar o carnaval com os traços da cultura que eles preservam. O bloco Olodum recebe muito dinheiro, mas eles trabalham para isso, não recebem de nenhum ditador africano.

Os países africanos e caribenhos se interessam pela cultura brasileira?

No Caribe, há um interesse muito grande pelos traços de origem africana na formação das religiões. Na Nigéria e no Benim, há muita gente da universidade interessada na troca de estudantes e de professores. Em Angola, claro: Bahia é Angola, Angola é Bahia, o interesse é enorme para estudar o que chamamos de africanias, todo o legado de matriz cultural africana nas Américas. Há dois anos a Universidade Estadual da Bahia assinou um acordo com a Universidade Agostinho Neto, a mais importante, a mais antiga de Angola, para ensinar duas línguas africanas no currículo, quicongo e quimbundu, como línguas estrangeiras. São as mais faladas, e muito próximas, como se fossem português e espanhol, antes eram uma só. Mas até hoje a Uneb não tomou nenhuma providência para introduzir esse curso, o que é uma pena. Seria a primeira universidade brasileira a oferecer um curso de línguas africanas como línguas, e não como dialetos.

Principais obras da autora

Falares Africanos na Bahia (um vocabulário Afro-Brasileiro). Vol. 1. Rio de Janeiro: Topbooks, 2005.

A língua mina-jeje no Brasil. Vol. 1. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, 2002. 

Contos Populares da Bahia: aspectos da obra de João Silva Campos. Vol. 1. Salvador:

Departamento de Assuntos Culturais da Prefeitura do Salvador, 1978.






Fonte: Revista de História da Biblioteca Nacional

http://www.vermelho.org.br/noticia/265993-11

Graciliano Ramos – um escritor comunista

José Carlos Ruy *

Poucos escritores brasileiros merecem, como Graciliano Ramos - cujo centenário foi comemorado em 27 de outubro de 1992 - a qualificação de clássico. Existem muitos, com obras de alto nível artístico que iluminam aspectos parciais dos sentimentos e modo de vida de nosso povo. 



Porém nem todos conseguiram criar situações, tramas e personagens capazes de sintetizar as contradições típicas do desenvolvimento histórico e social e o reflexo dessas condições objetivas na subjetividade e na vida mental dos brasileiros. 


Até que se tenha uma definição melhor, é a dialética do singular, do particular e do universal que torna uma obra clássica. Clássica porque extrapola os limites estreitos dessa particularidade e singularidade e se dirige a todos os homens, distantes no espaço e no tempo. É como se o escritor, ou o artista, descrevesse tipos humanos únicos, particulares, acrescentando-os ao imenso catálogo com representantes de todas as épocas e todos os povos, enriquecendo o registro da experiência histórica concreta da espécie humana em sua multifacética e rica variedade de manifestações sociais e existenciais.



Graciliano Ramos conseguiu registrar artisticamente os profundos conflitos humanos, a desorganização e reorganização da vida provocadas pelo impacto do desenvolvimento capitalista brasileiro partir da década de 1930, época em que a modernização da sociedade se acelerou sob a hegemonia conservadora. O modo de produção capitalista consolidou seu domínio sobre o conjunto da sociedade redefinindo as relações sociais e subordinando todas elas ao capitalismo, à lógica da acumulação e reprodução do capital.



Este é o quadro de transformações aceleradas e perturbadoras em que se movem personagens como Paulo Honório, Madalena, Luís da Silva, Julião Tavares, Fabiano, Sinhá Vitória e tantos outros. 



Em seu destino pessoal eles representam também o destino das classes sociais. No ensaio Graciliano Ramos (1965) Carlos Nelson Coutinho escreveu: “Nesta fusão de indivíduo e classe reside um dos pontos mais altos do realismo de Graciliano. Seus personagens são sempre tipos autênticos precisamente na medida em que expressam em suas ações o máximo de possibilidades contidas nas classes sociais a que pertencem”. Destino pessoal e destino de classe confundem-se na trajetória de seus personagens. 



Luís da Silva (Angústia, 1936) e Madalena (São Bernardo, 1934) são pequeno-burgueses inconformados com sua existência opressiva e alienada, desejosos de subir na vida, apavorados com a perspectiva de proletarização. Incapazes de compreender as forças que comandam seus destinos são também incapazes de lutar contra elas. Seus destinos melancólicos e trágicos são marcados pela impotência e pelo ressentimento.



Paulo Honório, o camponês que se tornou latifundiário (São Bernardo) e Fabiano (Vidas Secas, 1947) parecem encarnar dois destinos antagônicos para personagens de origem social semelhante. 



Astuto, Paulo Honório consegue dominar as possibilidades de ascensão abertas pelo capitalismo. Negocia, trapaceia, abre caminho sem medir esforços nem escrúpulos. Usa o poder do dinheiro para - como um Fausto sertanejo – se impor à decadente oligarquia rural. Dedica sua vida a se tornar ele próprio um latifundiário. Consegue colocar-se acima de sua classe, como conclui no final do romance. Conseguiu tornar-se “um explorador feroz”, brutal e egoísta, como amargamente reconheceu.



A saga de Fabiano começa no mesmo ponto de onde Paulo Honório partiu: a estreita, pobre, mesquinha vida do camponês do Nordeste, massacrado pelo latifúndio e maltratado pela natureza. 



Sua insatisfação - e dos seus - compara-se à animalidade da cachorra Baleia: querem apenas se manterem vivos e, depois, se possível, obter alguns modestos luxos, como a cama de couro que Sinhá Vitória queria.



Ao contrário de Paulo Honório, Fabiano busca seus meios de vida zanzando de fazenda em fazenda até que o destino - semelhante ao de multidões nordestinas - o coloca na estrada para a cidade e os centros industrializados do litoral e, depois, do Sul. 



O mais miserável e mais rústico dos personagens de Graciliano é, contraditoriamente, o portador do futuro: na cidade ficará completa e acabada sua condição de vendedor da força de trabalho no mercado capitalista. Ele será um operário; seus filhos serão operários, num mundo novo com contradições de outra natureza, que só poderão ser superadas pela luta da classe operária e dos demais trabalhadores pelo socialismo. 



Assim o destino de Fabiano indica o sentido do desenvolvimento da sociedade brasileira, dos trabalhadores brasileiros, colocando-os - juntamente com a sociedade - num novo patamar onde as contradições da vida rural e camponesa são superadas e substituídas pelas contradições próprias da sociedade capitalista.



Escritor comunista, o marxismo de Graciliano Ramos jamais lhe permitiu a subordinação às imposições normativas características do zdanovismo e seu realismo “socialista” na construção de suas obras. 



Artesão exigente e minucioso do idioma, escritor enxuto, da palavra exata, a forma artística se subordinava nas obras de Graciliano à resolução do conteúdo. 



O estilo memorialístico de São Bernardo, o obsessivo monólogo interior de Angústia, a aparente descontinuidade e fragmentação de Vidas Secas, subordinam-se rigorosamente às necessidades da trama, da exposição da psicologia do personagem, da criação do ambiente social e cultural onde eles se movem e da forma como esse ambiente externo, objetivo, se reflete em seu espírito condicionando-o e moldando suas ações.



Nas obras de Graciliano o socialismo emerge dessas contradições, como saída para os conflitos sociais e humanos retratados. Emerge de forma implícita, necessária, inscrita no desenvolvimento das situações e contradições descritas. Graciliano não caiu na tentação do populismo fácil e pseudo democrático praticado por tantos escritores de sua época, que reproduziram de forma maniqueísta a consciência popular. Eles não hierarquizaram as formas de manifestação dessa consciência., mas as abordaram de maneira acrítica e valorizando-as todas igualmente. Ora, a consciência dos homens reflete de forma muitas vezes alienada e distorcida as contradições da época em que vivem, enfrentadas no dia a dia. Se todos os homens tivessem espontaneamente uma consciência clara e precisa das condições de dominação, as sociedades divididas em classe nunca poderiam ter existido!



Na obra daqueles escritores populistas o socialismo aparece como um objetivo artificial, que não decorre da resolução da trama mas da mera vontade do escritor de colocar essa bandeira na boca dos personagens.



Estas são algumas das características que fazem de Graciliano Ramos um clássico, no sentido universal. Um escritor que não temia imposições e enfrentou as contradições colocadas pela vida. Que não buscou soluções literárias fáceis e artificiais para essas contradições. Que não tentou, de forma também artificial, resolver essas contradições em suas obras mas que escreveu pela necessidade de registrar, de forma artística, as dificuldades, mazelas e esperanças da vida de seu povo. E que, dessa forma, contribuiu como poucos para uma consciência mais profunda dos problemas da sociedade brasileira e das possibilidades que seu desenvolvimento promete. E ajudou a ampliar aquele catálogo de tipos humanos referido acima, de personagens característicos da vida nesta parte do mundo e num período da história: o contraditório período em que o modo de produção capitalista se tornou hegemônico na formação social brasileira. 



Publicado originalmente em A Classe Operária, 26/10/1992


domingo, 14 de junho de 2015

Poemas de Nydia Bonetti

10 de abril de 2015 - 12h32 
A poeta paulista Nydia Bonetti circula entre a concretude da engenharia civil e a sutileza da palavra. Publicou em 2013 a obra Sumi-ê e em 2012 Minimus Cantu, este último integrou a Coleção Instante Estante, um projeto de incentivo à leitura do Rio Grande do Sul.


Além das obras, Nydia tem seus poemas publicados em sites, antologias e revistas de literatura diversas, entre elas Zunái, Mallarmargens, Eutomia e Acrobata. 

Esta semana a poeta contribui com a sessão Letras Vermelhas do Prosa, Poesia e Arte, veja a seguir uma série de poemas. 




Então se pôs a viajar
e vieram as febres.


*

Este deserto em tudo oculto
no céu que não desaba / embora pedra.
Este rasgar de folhas 
que se ouve / mas não se vê.
E as taturanas luminosas 
de fogo
que nada temem / a não ser 
o sal.
[e nunca mais chorou perto da árvore
pra não ferir lagartas]


*

Segue cantando nada. 
Embaralhando signos contemporâneos.
A tradição sagrada
já dizia da imagem imperfeita 
no espelho embaçado. 
Do homem velho, que se desfaz das cascas 
inúteis.
E gravemente enfermo 
das febres do seu tempo, delira
em versos insanos 
de encantar os cães.


*

Talvez leve um buquê de cactos. E uma canção
de Leonard Cohen.
Quem sabe uma rosa 
do povo 
de Hiroshima 
de Gertrud 
de ninguém.
As flores do mal 
as flores do bem. As flores
afinal, carregam — todas — a náusea de existir.


*

O dia escorrega das mãos feito um peixe
que mergulha na terra trincada 
sem se saber
sobrevivente único 
desse rio temporário 
que acabou de secar.
Que todo dia seca sob o sol do tempo.
Que a vida é 
esse deserto em expansão.
Que a noite se aproxima e é fria. 
E com que olhos nos espreitam os chacais.


*

As esquadrias metálicas, com suas peles de vidro
já não me comovem.
_A rosa sim
refletida em seus espelhos
de sol.
A flor pequena, colada na vidraça
depois do temporal.
A_temporalidade 
refletida nos olhos do rio que passa ao fundo.
E as impurezas que carrega.


*

Algas marinhas flutuam nas águas 
de um mar vermelho 
— é tarde
um céu de cobre arde 
e o sol 
mergulha.
Tudo é marinho agora — é noite
quase definitiva
neste ciclo finito da vida humana
sobre a terra.


*

Num céu paralelo / não muito longe daqui 
vigiam
as almas dos bichos que já morreram
das águas dos rios que já secaram 
da árvore em chamas 
da decepada 
flor
das palavras que agonizaram
entrelábioscerrados e baús esquecidos
[nós na garganta]
A alma do mundo mora nesse lugar 
e grita 
na escuridão.
Na madrugada
o canto do galo é anunciação 
do verbo 
que se liberta vindo de lá. E reverbera sol.


*

Posso fechar os olhos, se quiser
submergir
na compreensão do instante
da não simplicidade 
da flor.
E ir-me ao vento
folha viva recém-caída
que sangra seiva e tempo 
— esse cão 
que nos circunda
no vasto e verde campo do sentir
além 
das cercanias inúteis da razão.


*

Três mulheres que passam
com olhos de noite.

Duas são sombras
do que um dia puderam ser.

A outra é sol do que não foi.

*

Seguir na noite/rua de pedra fria
em busca do cão
(que sempre volta)
Vale a festa do encontro 
sem testemunhas.

*

Abutres vigiam.
Há em tudo um estado de quasemorte
num estágio 
de sub-humana indiferença.
Mortesvidas são 
apenas feridas
que não cicatrizam.
Cães sarnentos que perderam as asas
se arrastam.
E as escamas dos olhos caem. 
Lágrimaspérolas que o tempo petrifica.
Depois tritura. E sopra.


*

Agora sabe que aquele que ama e busca
habita seu corpo.
Por isso 
mergulha
fundo
dentro
de si.
Fora é tão longe 
_vertiginosamente se afasta.
[E a casa envelhece iluminada]

*

Na minha rua é noite. 
A casa perdida _entre.sombras.
O corpo cansado 
e os olhos secos _embora.chuvas.
Árvore quase.rizomáticos pés
_ embora.nãoflores.
*

Um pássaro pousa no santuário do fim do dia.
Um ar de vidro, que não se pode respirar
[sólido frio] paralisa.
Tudo parece saído 
de um tempo longe. Outro lugar/outra vida.
A procissão de tochas leva o morto 
e não deixa pegadas. 
Chama que não se apaga 
dos olhos 
do menino. 
É noite — há de lembrá-la escura e fria 
até o fim 
dos seus dias [seriam tantos]. 
De alguma forma estive lá — Atávicos olhos 
meus.



*

Ambidestros tigres
circunscrevem na selva ilícita
seus territórios.
Sitiados bichos procuram 
_linha de fuga 
utópica 
antes que o fogo adentre
e o círculo se expanda
e o não 
lugar para onde se ir 
se instale no olhos e paralise.



*

Um dia, cantaremos o espinho na carne 
do homem.
E todas as gangrenas 
do ser.
Cantaremos o sangue nos olhos das mães
e o revés do rebento
da flor. A canção do intercepto. 
A inominável dor.


*

Viver é esse navio, carregado de especiarias
que cruza oceanos.
Se chega ou se naufraga, já não importa. Tudo 
se perde no caminho. 
Um rastro breve de perfume de rosas 
e sândalo. Cheiro de terra
armazenado em frascos pequenos. Potes
de cascas e sementes — que não germinarão.
Tudo será tragado pelo grande abismo. 
Ninguém
fará o inventário da tua viagem.
As noites sem estrelas. Dias de sal. E o sol 
sobre a pele branca. A pele fina. A pele
que se desprende. A carne viva. 
As águas-vivas. As águas mortas. Os ossos.
E esse poema já não sabe o fim
a que se destina. 
— Por que esse navio carregado de especiarias 
atravessou meus olhos?


*

Então uma palavra engolirá outra 
palavra 
que engolirá outra 
palavra 
até que reste apenas 
uma 
palavra 
que será devorada 
pelo silêncio
[metálico fio de costurar bocas] 
Para que os olhos cantem.

Do Portal Vermelho

http://www.vermelho.org.br/noticia/262011-11