quinta-feira, 22 de outubro de 2020

Manuel Augusto Araújo - Um caminho de trevas


Gravura «Um amante zeloso», de Bartolomeu Cid dos Santos, ponta seca/água tinta, 1975. Créditos/ Bartolomeu Cid dos Santos

OPINIÃO|DIREITOS E LIBERDADES -  Um caminho de trevas
 - POR MANUEL AUGUSTO ARAÚJO - QUINTA, 22 DE OUTUBRO DE 2020

O bastonário da Ordem dos Médicos aproveita os graves problemas que o SNS enfrenta com a epidemia não para defender o seu robustecimento, mas o negócio dos privados na saúde.

Gravura «Um amante zeloso», de Bartolomeu Cid dos Santos, ponta seca/água tinta, 1975. Créditos/ Bartolomeu Cid dos Santos
Ocoronavírus é uma espécie invasora da vida. Uma ameaça que, pela densidade e velocidade da sua propagação, introduziu uma perturbação universal que promoveu alterações substanciais nas movimentações na superfície da terra, com uma travagem desmedida na actividade económica e brutais restrições nos direitos e liberdades, que exploram o natural instinto de sobrevivência de todos para que as aceitem sem resistências significativas.

A actividade económica, com desiguais solavancos, vai sendo retomada. Uma retoma que tem tornado evidente a falência do receituário neoliberal e a importância do Estado definir políticas públicas de investimento e de defesa dos trabalhadores, se realmente quer menorizar os inevitáveis impactos que uma crise com esta extensão provoca no tecido económico de qualquer país, maior ainda quando esse tecido tem sido puído por dezenas de anos de governos de centro-direita e de direita, como é o caso de Portugal. Uma evidência que alarma os neoliberais de vários matizes que, controlando os meios de comunicação social e estando bem ancorados no chamado serviço público dos media, tentam por todos os meios desvalorizar as evidências quando as não podem negar.

O real perigo é que algumas das medidas de emergência para conter a propagação do contágio, que têm sido adoptadas e aceites, passem a fazer parte do quotidiano. Instalou-se um clima de medo potenciado pela comunicação social corporativa com os relatórios diários e atemorizantes sobre as vagas de Covid-19, em que as estatísticas das vítimas são apresentadas de forma abstracta, em que as taxas e os picos de mortalidade não são sujeitas a nenhum crivo elucidativo das razões dos óbitos atribuindo-os por atacado ao vírus, mesmo quando os óbitos dos grupos etários mais elevados, ainda que influenciados pela presença do vírus, não podem ser exclusivamente explicados pela sua presença. O que está em curso é um processo de instauração de medo generalizado, em que mesmo o negacionismo científico imbecil dos bolsonaros ou os ziguezagues trumpistas, que se atropelam na sua irracionalidade, contribui para a sua persistência.

O mundo é varrido pelos turbilhões do medo. Medo de se ser contagiado, medo de morrer, medo de perder o emprego, medo de não se sobreviver por perca de capacidade económica e social que impossibilite o dia seguinte que não se sabe como e quando acontecerá.

«A actividade económica, com desiguais solavancos, vai sendo retomada. Uma retoma que tem tornado evidente a falência do receituário neoliberal e a importância do Estado definir políticas públicas de investimento e de defesa dos trabalhadores, se realmente quer menorizar os inevitáveis impactos que uma crise com esta extensão provoca no tecido económico de qualquer país, maior ainda quando esse tecido tem sido puído por dezenas de anos de governos de centro-direita e de direita, como é o caso de Portugal»

Não é um acaso a tipologia das notícias dos media, em que a liberdade, as liberdades no seu relativismo e desde sempre ameaçadas, são colocadas em causa, com a exploração de toda a panóplia conducente ao isolamento social, ao confinamento, ao teletrabalho, aos espectáculos on-line, à educação digital, às vendas on-line, à quebra do isolamento pelo recurso às redes sociais, que são apresentados como instrumentos de combate à pandemia sem uma réstia de preocupação com o aprofundamento das desigualdades existentes e com o impacto da crise sobre os que já tinham os seus direitos fragilizados, muitos deles sem direito ao isolamento social, e que são a parte dos grupos sociais mais afectados pela crise.

O medo sempre foi um poderoso instrumento de governação e a comunicação social estipendiada tem, ao longo dos anos, construído uma insidiosa narrativa instalando o pavor com relatos da violência, nos mais diversos formatos e com periodicidades variáveis. Delinquência, assassinatos, violações, acidentes, incêndios de vários calibres fazem parte dessa paisagem a que se agregam ameaças mais persistentes como o aquecimento global, o buraco de ozono, a contaminação ambiental, os desastres naturais e os que podem advir da queda de detritos cósmicos ou da aproximação de um meteorito, atraídos pela força da gravidade, mais os relatos direccionados dos terrorismos e das guerras que justificam outras guerras, etc. Notícias intercaladas com frivolidades mas sempre sem perder o norte de discriminar as forças políticas e sociais que se opõem frontalmente ao estado de sítio imposto pelo neoliberalismo, sempre dando destaque aos seus porta-vozes, que o maior interesse que têm pela pandemia, por cá e nos quatro cantos do mundo, é explorá-la enquanto negócio. Bill Gates e a sua máfia estão na linha da frente desse paradigma, criando alianças globais que impõem prescrições para os problemas da saúde que procuram impor a todo o mundo. É o filantrocapitalismo, em que se injecta dinheiro num sistema em que a democracia, a biodiversidade e a cultura são erodidas num processo em que ele e os seus pares ficam mais ricos.

Por cá, à nossa escala, o caso mais exemplar é o do bastonário da Ordem dos Médicos, que aproveita a situação dos graves problemas que o Serviço Nacional de Saúde (SNS) terá para enfrentar uma previsível expansão da epidemia – «que não está a disparar, mas a crescer», como afirma a ministra da Saúde – não para defender o seu robustecimento, depois de anos de desinvestimento feitos pelos governos de centro-direita e direita, mas o negócio dos privados na saúde – um dos negócios mais lucrativos, depois das armas e da droga (Isabel Vaz, administradora da Luz Saúde, SA dixit) – opinando que o Estado deve contratar os privados, isto depois de os privados, no início da crise, se terem demitido de acorrer ao pico da pandemia por não dar dinheiro. Diz isto com a inefável, insuportável e hipócrita máscara de cruzado recacho pelo bem da saúde pública com que aparece nos inúmeros tempos de antena que lhe são concedidos para inocular o medo. É bem acolitado pela comunicação social mercenária, que nunca refere que os privados muito têm lucrado através do Estado e dos impostos cobrados aos cidadãos: 41% da sua facturação é assegurada pela captura de 47% do que o Estado gasta na saúde, à pala das ineficiências artificialmente criadas em décadas ao SNS. Esse alcoviteiro da saúde faz parte da camarilha dos abutres que assaltam a saúde pública para com ela fartamente lucrarem. Estão sempre muito atentos a estas janelas de oportunidade de negócio.


Gravura «Este nunca está satisfeito», de Bartolomeu Cid dos Santos, ponta seca/água tinta, 1975 Créditos Bartolomeu Cid dos Santos /

Os nossos dias, desde que foi declarada a pandemia, são bombardeados com notícias e propaganda em formato noticioso que engrossam as pesadas nuvens que chovem pavores sem detença. O planeta está envolvido por uma espessa camada atmosférica carregada de medos sem que se entreveja um anticiclone que a limpe. O medo empurra para o silêncio da aceitação de medidas restritivas à normalidade, por mais anormal que seja, da circulação da vida. Medidas que são aceites praticamente sem oposição e que as forças reaccionárias pretendem, em primeiro lugar, impor às liberdades constitucionais, às lutas dos trabalhadores, às lutas sociais e políticas, o que explica a sua fúria contra o 1.º de Maio, a Festa do Avante!, os lances que foram usados, os meios que foram mobilizados. O medo, como Maquiavel teorizou, foi desde sempre uma das mais poderosas armas das forças dominantes. É uma ferramenta multiusos que percorre todo o arco, da mais feroz repressão à mais ligeira persuasão.

Adquire novas valências quando aos medos que se têm instalado enquanto conta-corrente dos poderes dominantes se associa o medo universal catapultado pela pandemia. O seu combate é uma necessidade e urgência real que não pode ser adiada, o que facilita a aceitação de medidas restritivas na luta contra as tipologias de contágio que facilitam a sua propagação, paralisando e silenciando vozes críticas mesmo as mais sensatas, serenas e competentes.

O grande alerta que tem que ser feito neste estado de emergência é para o perigo que muitas das medidas hoje adoptadas se perpetuem depois de o termos ultrapassado. Há que no imediato pensar nesse perigo. Nos usos e abusos das tecnologias de controlo, para que o que hoje é urgente e necessário não ultrapasse essas fronteiras e configure políticas futuras, para que a legalidade agora justificada não se torne numa ilegalidade instituída, sabendo-se que o desarmamento político foi desde sempre um dos grandes objectivos da burguesia dominante que, ao longo dos tempos, foi apurando as suas formas de actuação, enriquecendo o seu arsenal com ferramentas que visam atingir sempre o mesmo alvo: reduzir a influência ou mesmo anular os instrumentos organizados de luta das massas populares, partidos e sindicatos. Um alerta plenamente justificado, se se atentar no que tem sido preparado nos últimos decénios pela comunicação corporativa que, como tem alertado Noam Chomsky, tem funcionado num sistema em que «os media de referência estabeleceram um padrão dentro do qual opera o resto», em que os media dos países periféricos, desenvolvidos, em vias de desenvolvimento ou do terceiro mundo replicam o que é emitido por esses media ditos de referência e pelas grandes agências informativas dominadas e controladas pela plutocracia altamente beneficiária com as políticas neoliberais.

«O que está em curso é um processo de instauração de medo generalizado, em que mesmo o negacionismo científico imbecil dos bolsonaros ou os ziguezagues trumpistas, que se atropelam na sua irracionalidade, contribui para a sua persistência.

O mundo é varrido pelos turbilhões do medo. Medo de se ser contagiado, medo de morrer, medo de perder o emprego, medo de não se sobreviver por perca de capacidade económica e social que impossibilite o dia seguinte que não se sabe como e quando acontecerá»

A essa forma, que agora se pode classificar como mais tradicional, surgiram outras mais sofisticadas através das redes sociais que promovem a fusão da vida profissional com a pessoal num gigantesco e global reality show em que cada um tem a ilusão de liberdade total que na realidade está apertadamente controlada pelos algoritmos alinhados com o totalitarismo democrático, com o pensamento único dominante orientado pelo lucro. Os milhões de pessoas que por todo o mundo viajam pelas redes sociais deixam voluntariamente o seu rasto, que está a ser vigiado pelo olhar panóptico dos guardiões do neoliberalismo. Rasto que já existia com o uso dos cartões multibanco, das localizações nos smartphones, com as pesquisas nos motores de busca, em que as grandes agências secretas em paralelo com as de marketing lêem e traçam os perfis do nosso estado de espírito a partir do que se partilha online. Tornamo-nos em utilizadores e consumidores sem escolhas nem diferenciações no universo digital. Somos voluntariamente colonizados por esses novos colonizadores, amantes zelosos do império digital.

Hoje vive-se num gigantesco campo de concentração virtual em que o neoliberalismo comanda a história reaccionária em curso, conseguindo mesmo o grande feito de provocar a desorientação ideológica de muitas esquerdas, promovendo movimentos activistas que acabam por fazer parte da sua narrativa.

O totalitarismo democrático, que tem a sua expressão mais acabada na democracia espectacular dos Estados Unidos da América, em que dois partidos se alternam para prosseguir políticas similares, persegue sem pausas a implantação de uma sociedade uniforme, inerte, portadora de um mesmo conjunto de opiniões, comandada pelo domínio integral das formas de comunicação tradicionais e das novas formas proporcionadas pela comunicação e interacção digital. O estado de excepção que agora se vive dá-lhe um novo impulso. Muitas das restrições têm um efeito negativo na vida dos cidadãos, com a consequência, que nunca pode ser subestimada, de tornar os pobres mais pobres e os ricos mais ricos, uma realidade que as crises tem vindo a acentuar como se pode ler aqui e aqui.

Para a esquerda consequente os desafios são ainda maiores porque, participando natural e conscientemente nos combates contra a crise instalada pela pandemia, tem que continuar a batalhar seriamente contra as opressões daí derivadas sem nunca perder a mão das lutas por uma possível transformação social.


segunda-feira, 19 de outubro de 2020

Ivan Lins - Aos nossos filhos

 * Ivan Lins


Perdoem a cara amarrada,
Perdoem a falta de abraço,
Perdoem a falta de espaço,
Os dias eram assim...

Perdoem por tantos perigos,
Perdoem a falta de abrigo,
Perdoem a falta de amigos,
Os dias eram assim...

Perdoem a falta de folhas,
Perdoem a falta de ar
Perdoem a falta de escolha,
Os dias eram assim...

E quando passarem a limpo,
E quando cortarem os laços,
E quando soltarem os cintos,
Façam a festa por mim...

E quando lavarem a mágoa,
E quando lavarem a alma
E quando lavarem a água,
Lavem os olhos por mim...

Quando brotarem as flores,
Quando crescerem as matas,
Quando colherem os frutos,
Digam o gosto pra mim...

Digam o gosto pra mim...

sábado, 10 de outubro de 2020

Quino e a Mafalda

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sexta-feira, 9 de outubro de 2020

Faludy György - Heart This Poem of Mine

* Faludy György 

Learn by heart this poem of mine;
books only last a little time
and this one will be borrowed, scarred,
burned by Hungarian border guards,
lost by the library, broken-backed,
its paper dried up, crisped and cracked,
worm-eaten, crumbling into dust,
or slowly brown and self-combust
when climbing Fahrenheit has got
to 451, for that's how hot
your town will be when it burns down.
Learn by heart this poem of mine.

Learn by heart this poem of mine.
Soon books will vanish and you'll find
there won't be any poets or verse
or gas for car or bus - or hearse -
no beer to cheer you till you're crocked,
the liquor stores torn down or locked,
cash only fit to throw away,
as you come closer to that day
when TV steadily transmits
death-rays instead of movie hits
and not a soul to lend a hand
and everything is at an end
but what you hold within your mind,
so find a space there for these lines
and learn by heart this poem of mine.

Learn by heart this poem of mine;
recite it when the putrid tides
that stink of lye break from their beds,
when industry's rank vomit spreads
and covers every patch of ground,
when they've killed every lake and pond,
Destruction humped upon its crutch,
black rotting leaves on every branch;
when gargling plague chokes Springtime's throat
and twilight's breeze is poison, put
your rubber gasmask on and line
by line declaim this poem of mine.

Learn by heart this poem of mine 
I can stay with you so. You might
this millennium perhaps survive,
some short years will be fine in view,
for bacilli with their raging
revenge attack still won’t come through,
and greedy divisions of hoped
technology will set power more
in motion than the entire globe -
from your memory do recall
and hum with me just one more time
these lines: for what has become of
all that beauty and love sublime?
Learn by heart this poem of mine.
 
Learn by heart this poem of mine
so, dead, I still will share the time
when you cannot endure a house
deprived of water, light, or gas,
and, stumbling out to find a cave,
roots, berries, nuts to stay alive,
get you a cudgel, find a well,
a bit of land, and, if it's held,
kill the owner, eat the corpse.
I'll trudge beside your faltering steps
between the ruins' broken stones,
whispering "You are dead; you're done!
Where would you go? That soul you own
froze solid when you left your town."
Learn by heart this poem of mine.

Maybe above you, on the earth,
there's nothing left and you, beneath,
deep in your bunker, ask how soon
before the poisoned air leaks down
through layers of lead and concrete. Can
there have been any point to Man
if this is how the thing must end?
What words of comfort can I send?
Shall I admit you've filled my mind
for countless years, through the blind
oppressive dark, the bitter light,
and, though long dead and gone, my hurt
and ancient eyes observe you still?
What else is there for me to tell
to you, who, facing time's design,
will find no use for life or time?

You must forget this poem of mine. 

Toronto, 1980

(Since György/George Faludy wrote this poem both in English and Hungarian the English version is his, too. In the quoted source (https://www.opendemocracy.net) the English poem has only five verses while the Hungarian poem has six. That is why the fourth – in the English poem missing – verse is in italics, it was translated by the uploader/translator.)

Faludy György; N. Ullrich Katalin

https://www.babelmatrix.org/works/hu/Faludy_Gy%C3%B6rgy-1910/Tanuld_meg_ezt_a_versemet/en/65510-Learn_by_Heart_This_Poem_of_Mine

quinta-feira, 8 de outubro de 2020

Manuel Augusto Araújo - Quino, o outro lado do espelho da Mafalda

* Manuel Augusto Araújo

Mafalda torna-se rapidamente na mais famosa comentadora política sobre o mundo.


Há que lembrar que a caricatura, dado os anglicismos correntes agora conhecida por cartoon, é um importante sector das artes plásticas – que ocupou desde sempre um espaço expressivo na actividade jornalística – praticado por grandes artistas como Honoré Daumier, Jean-Louis Forain, Willheim Bush, George Grosz, John Heartfield, Robert Osborn, Feliks Topolski, James Thuber, Saul Steinberg, André François, David Levine, por cá Bordalo Pinheiro, Stuart Carvalhais, João Abel Manta.

Uma lista mais que resumida, escassa perante a grande quantidade e qualidade dos muitos que com os cartoons marcaram e marcam presença em todo o mundo. Se os percursos artísticos e as opções estéticas os distinguem há um traço firme comum a todos, os referidos e os muito mais que se poderiam referir, que é o darem testemunho do seu tempo tirando a temperatura ao seu estado social e político, aos seus desastres, ao seu grotesco, aos seus vícios, com elaborado humor, vastas ironias, mesmo vitriólica veia satírica.

Cada cartoon, com golpes mais certeiros e devastadores que os golpes cinematográficos de kung-fu de Bruce Lee, contribui para traçar um cadastro irreverente e implacável da mediocridade e das hipocrisias deste nosso mundo. O cartoon, na sua aparente efemeridade, sempre ligado a um sucesso temporalmente datado, na sua linguagem, por vezes simplista para adquirir maior legibilidade, arrisca-se àquela classificação de ser uma arte menor, uma tremenda injustiça até porque isto de artes maiores e menores tem muito que se lhe diga no seu tempero elitista. O cartoon é uma reportagem do quotidiano que se liberta dos calendários para transmitir, de um ou outro modo, uma mensagem politicamente universal e intemporal.

Olhar crítico sobre o mundo

Quino inscreve-se por direito próprio nessa longa lista de caricaturistas, especialistas do raio-X que aplicam à sociedade radiografando-a implacavelmente. Adquire celebridade quando, em 1964, faz Mafalda sair da banda desenhada de uma casa típica de uma família burguesa de classe média que iria comprar uns eletrodomésticos, para a tornar na célebre contestatária que, com o seu humor corrosivo e negro, não deixa pedra sobre pedra do edifício da realidade social e política desta sociedade sem dignidade fundada na exploração humana.

Contestatária com um lado muito terreno de detestar sopa, adorar os Beatles, expor perplexidades filosóficas a olhar para o globo terrestre, torna-se rapidamente na mais famosa comentadora política sobre o mundo, a luta de classes, as tiranias, o capitalismo. Reconhecida em qualquer canto do mundo, Mafalda quase oculta o trabalho do seu criador Quino que, em paralelo à rapariga contestatária, continuava a fazer outras bandas desenhadas, excelentes mas com menos visibilidade, como se pode ver em Portugal no ano de 2014, no Festival Amadora BD.

Mafalda não envelhece, espalha o nome e o trabalho de Quino pelo mundo, até o seu criador a calar continuando o seu trabalho de cartonista, óptimas tiras de banda desenhada embora longe do estrelato da Mafalda. Quino deixou de desenhar Mafalda em 1973. Comenta o a tê-la silenciado por estar extenuado com essa sua criação, mais conhecida que o seu criador, não deixando de dar uma pista para não mais a encontrarmos: «provavelmente estaria morta, seria um dos desaparecidos da ditadura militar argentina»(1). Mafalda até ao fim da sua vida teve sempre a luminosa lucidez crítica política de Quino, para quem o mundo actual «é um desastre, uma vergonha» que dissecoucom o bisturi do seu lápis.

___________________________

(1) A ditadura argentina imposta por um golpe de estado em 1976, chefiado pelo general Videla, almirante Massera e brigadeiro Agosti, foi preparada com colaboração activa dos EUA. Brutal, durou até 1983 período durante o qual «desapareceram» 30 000 argentinos. Kissinger apoiou-a e defendeu-a em vários areópagos internacionais para não deixar dúvidas sobre o que representam os direitos humanos para os EUA.

http://www.avante.pt/pt/2445//160848/

quarta-feira, 7 de outubro de 2020

Art Spiegelman desconstroi o livro "Maus" em "Metamaus"




Para não voltar a explicar porque desenhou ratos e gatos para falar da família e do Holocausto, o autor Art Spiegelman editará em outubro "Metamaus", um livro que recupera a novela gráfica "Maus".


Lusa - 20 Setembro 2011 — 10:28

"Metamaus: A look inside a modern classic, Maus" é já considerado pela revista Wired um dos livros da temporada, a editar em outubro pela Random House, no qual Art Spiegelman explica o que o levou a escrever aquela banda desenhada, as influências, as pesquisas, revela os esboços e os estudos, conta as histórias pessoais em torno do livro.

"Maus", livro biográfico sobre a família de Art Spiegelman, editado em dois volumes e que tem como pano de fundo o Holocausto, foi distinguido em 1992 com o Prémio Pulitzer, e é considerado uma das obras de referência da nona arte do século XX.

Vinte anos depois da sua publicação, o livro é revisitado e desconstruído pelo próprio autor e a edição integrará um DVD com entrevistas áudio de arquivo, incluindo declarações do pai, Vladek Spiegelman, protagonista do livro.

Em "Maus", editado em Portugal, Art Spiegelman recorre a animais para falar de judeus, nazis, polacos (ratos, gatos, porcos respetivamente) e sobre a família que sobreviveu ao campo de concentração de Auschwitz.

Agora em "Metamaus", recorrendo novamente à banda desenhada, explica que "Maus" "teve um impacto no mundo muito maior do que esperava" e que ao longo destes anos todos os jornalistas continuavam a fazer-lhe sempre as mesmas perguntas: "Porquê [recorrer à] banda desenhada? Porquê ratos? Porquê o Holocausto?", lê-se na introdução no site da editora Random House.

"Maus" "é um livro sobre a relação de um filho e de um pai, que tentam compreender-se", diz o próprio autor num vídeo divulgado no Youtube, a propósito de "Metamaus".

https://www.dn.pt/artes/livros/art-spiegelman-desconstroi-o-livro-maus-em-metamaus--2006430.html

terça-feira, 6 de outubro de 2020

Eduardo Fabregat - Quino foi um criador com um olhar muito aguçado e uma antena sempre bem orientada

 CULTURA

Quino, aquele que desenhou todos nós

Dentro e fora da “Mafalda”, Joaquín Salvador Lavado representou, representa, continuará a representar o estado das coisas no mundo: por vezes de forma dolorosa, mas sempre com uma humanidade profunda.

por Eduardo Fabregat

Publicado 02/10/2020 20:40 | Editado 03/10/2020 07:34


Quino foi um criador com um olhar muito aguçado e uma antena sempre bem orientada. I Foto: Adrián Pérez

Não há como verificar se isso realmente aconteceu, mas a anedota é muito contundente: dizem que quando os nazistas invadiram a casa de Pablo Picasso em Paris, um oficial perguntou se ele era o autor daquela bagunça chamada Guernica. “Não, isso foi feito por você”, disse o pintor.

Diante da visão daquelas vinhetas que cruzam o tempo, que continuam a nos representar, que continuam a apontar males eternos da Humanidade, Quino poderia ter dito algo semelhante. Não parece por acaso que uma de suas “piadas” mais famosas é aquela em que um empregado da limpeza arruma um quarto inteiro … inclusive Guernica. Dizem que era um dos favoritos, também é difícil de verificar.

Joaquín Salvador Lavado era cartunista e humorista, é claro. Mas acima de tudo ele foi um criador com um olhar muito aguçado e uma antena sempre bem orientada para registrar o mundo em que viveu, e sua distância brutal do mundo que desejava. O que ele colocava diante dos olhos de quem queria ousar ver era o que ele fazia e era o que os vários componentes da sociedade faziam. E então, como muitos males neste planeta tendem a sobreviver ao invés de curar, seu trabalho é eterno. O que foi feito há 40, 50, 20 anos ressoa com o mesmo poder hoje. O único anacronismo é a tecnologia ou os trajes que retrata. No resto, tudo continua igual.

É por isso que é tão difícil dizer a notícia e começar a falar no pretérito. Quino morreu e, quase ao meio-dia do último dia de setembro, ouviu-se o som de milhões de corações se apertando de tristeza. Só por tolice podemos negar o que Quino e as suas criaturas – que não são apenas Mafalda e os seus amigos e pais – significam para os habitantes deste país. Muitas vezes o “artista popular” se identifica mais com a figura do intérprete, desde a música, performance, seja o que for. Mas Quino, um homem curvado sobre uma placa para retratar o mundo, foi, é, um artista extremamente popular.

Essa popularidade, aquela sintonia imediata com o leitor, começou em um campo curioso, o da mesma publicidade para a qual dirigiu mais de um dardo em sua obra. Há provas abundantes de que para Quino Mafalda foi apenas uma etapa da sua vida, a tal ponto que decidiu acabar com ela quando mais de um continuaria a extrair o sumo. Já estava tudo dito, ele raciocinou. Para Quino, a vinheta única ou em algumas pinturas muitas vezes mudas era um universo muito mais rico, cheio de possibilidades, em que podia retratar diretamente coisas que também estavam em Mafalda , mas com o verniz de modos daquele universo infantil.

Claro, eles não eram crianças quaisquer, e também havia uma pintura da Humanidade. As preocupações de Mafalda encontraram paredes de repercussão perfeitas no estabelecimento – adorável, mas estabelecimento ainda assim – representado por Manolito e Susanita, que expressaram o capitalismo de uma forma adocicada, mas às vezes brutal. Libertad e Guille eram a anarquia feliz, o chamado para quebrar o sistema, um da selvageria de uma criança pequena e nada complacente e o outro de uma formação onde uma mãe solteira e militante era vislumbrada. Felipe era um pouco de todos nós, ou aquela faceta de nós que às vezes homenageia Bartleby, o garoto indolente que chutava as coisas com uma culpa moderada. Miguelito, aquele com as alfaces na cabeça, talvez o mais filho de todos, inocência e devaneio permanente. Mafalda, fã dos Beatles e inimiga da cruzada da sopa, um pequeno demônio versado em política nacional (“O pau para dentar ideologias?”) E as convulsões internacionais, coalharam o panorama interagindo com eles e com a própria descrença. No quarteirão, na praça, na escola, nas modestas salas de classe média de seus personagens, Quino já representava o mundo . 

Mas embora o mundo cruel e às vezes inexplicável aparecesse em seus filhos, o homem de Mendoza nunca foi um niilista. A profunda humanidade de Quino fez de Mafalda uma tira tão popular, pois o cartunista também observava com carinho e compreensão as únicas pessoas mais velhas que apareciam regularmente – os sofredores pais de Mafalda . Se Susanita só estava interessada em se casar e ser uma dona de casa com lindos bebês, Raquel, A mãe de Mafalda, era uma lembrança da prisão em casa e dos sonhos frustrados, e a mãe invisível de Libertad um sinal de que havia um caminho feminista. O pai era uma concentração do porteño médio, vinculado a um trabalho de escritório que lhe permitia aqueles modestos quinze dias de praia, com o humilde sonho de chegar ao Citroen 3CV. Em todas essas criaturas, na doçura com que retratava seus desejos, suas misérias e obsessões, fica claro o quanto o homem com o bico as amava.

E porque os amava tanto, um dia decidiu despedir-se deles.



Fonte: Pagina12

 

 

segunda-feira, 5 de outubro de 2020

Akemi Nitahara - Estudantes produzem dicionário biográfico Excluídos da História

CULTURA

O dicionário biográfico Excluídos da História foi feito pelos estudantes que participaram da quinta fase da Olimpíada Nacional em História do Brasil (ONHB), iniciativa criada em 2009 pela Unicamp

por Akemi Nitahara

Publicado 04/10/2020 18:40

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Do cacique Tibiriçá, nascido antes de 1500 e batizado pelos jesuas como Martim Afonso de Sousa, que teve papel importante na fundação da cidade de São Paulo a Jackson Viana de Paula dos Santos, jovem escritor nascido em Rio Branco (AC) no ano 2000, fundador da Academia Juvenil de Letras e representante da região norte na Brazil Conference, em Harvard.

Essas são as duas pontas de uma linha do tempo que busca contar a história de importantes personagens brasileiros que estão fora dos livros oficiais, num total de 2.251 verbetes, publicados agora como dicionário biográfico Excluídos da História.

O trabalho foi feito pelos 6.753 estudantes que participaram da quinta fase da Olimpíada Nacional em História do Brasil (ONHB) do ano passado, entre os dias 3 e 8 de junho de 2019, divididos em equipes de três participantes cada.

A olimpíada foi criada em 2009 pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e reúne atualmente mais de 70 mil estudantes dos ensinos fundamental e médio em uma maratona de busca pelo conhecimento em história do Brasil. A competição tem cinco fases online, com duração de uma semana cada, e uma prova para os finalistas das equipes mais bem pontuadas para definir os medalhistas.

Começou com samba

A coordenadora da Olimpíada Nacional em História do Brasil, Cristina Meneguello, explica que a história do dicionário começou a partir do samba enredo da Estação Primeira de Mangueira, escola campeã do carnaval carioca no ano passado, que levou para a Sapucaí o enredo História para Ninar Gente Grande.

Os versos abriram alas para os “heróis de barracões” com “versos que o livro apagou” para contar “a história que a história não conta” e mostrar “um país que não está no retrato” e o “avesso do mesmo lugar”. Versos que caíram no gosto popular antes mesmo do desfile oficial, sendo tocado em blocos de rua e rodas de samba pela cidade.

Segundo Cristina, a discussão sobre os excluídos da história foi intensa entre os historiadores depois do carnaval no ano passado e o tema permeou toda a competição, que começou no dia 6 de maio.

“Logo na primeira fase da prova a gente fez uma pergunta usando o próprio samba enredo da Mangueira. A gente usa documentos variados, letra de música, propaganda, documentos históricos mais clássicos, imagens, etc. A gente já tinha definido que esse seria o tema da tarefa deles para a quinta fase e fomos colocando as perguntas para eles irem entendendo o tema desde a primeira fase”, lembra.

Cristina Meneguello é professora da Unicamp e coordenadora da Olimpíada Nacional em História do Brasil

De acordo com a professora, originalmente não havia a intenção de se publicar o material produzido pelos estudantes. Porém, diante da riqueza e diversidade das pesquisas apresentadas, a coordenação decidiu compartilhar o material com professores, estudantes e todos os interessados, disponibilizando o conteúdo online.

“A gente já sabia que ia ficar uma tarefa muito boa, porque esse conhecimento que eles produzem a partir da escola é sempre muito surpreendente. Mas teve uma série de fatores. O primeiro foi que realmente ficou muito bom o trabalho realizado pelos participantes. Depois, o template que foi criado, com essas quatro páginas como se fosse de um livro didático, ficou um design muito bom e ganhou a medalha de prata no Brasil Design Award no ano passado, como design de sistema educativo”.

Personagens desconhecidos

A escolha do personagem era livre para os estudantes, dentro do critério de ser importante para a história do Brasil e não ser lembrado nos livros didáticos. Cristina diz que o resultado surpreendeu a organização, com verbetes sobre pessoas com importância local e regional, inclusive muitos ainda vivos, mostrando que os participantes entenderam que a história é construída continuamente por personagens diversos, inclusive os que não são apontados pelos historiadores.

“Superou nossa expectativa. Nós observamos que esses personagens desconhecidos são personagens negros, são mulheres importantes para a história do Brasil, são mulheres negras, são líderes locais. Muitos fizeram o verbete de pessoas que estão vivas. São líderes indígenas, pessoas perseguidas na ditadura militar, professores que foram censurados na ditadura militar. Temos de personagens do Brasil colônia até pessoas que estão vivas nesses verbetes”.

Alguns personagens foram lembrados por mais de um grupo, portanto, há verbetes repetidos no dicionário, mas que trazem abordagens diferentes sobre a mesma pessoa.

Mercedes Baptista

O grupo da estudante Juliana Kreitlon Pereira foi um dos dois que escreveram sobre Mercedes Baptista, a primeira bailarina negra do Theatro Municipal do Rio de Janeiro.

A sugestão da personagem foi feita por Juliana, que estava no último ano da Escola Estadual de Dança Maria Olenewa e conheceu a história de Mercedes Baptista pelo professor de História da Dança Paulo Melgaço, semanas antes do desafio da olimpíada.

“A Mercedes sempre fez questão de trazer a dança brasileira para os palcos. Foi uma das coisas que mais me chamou atenção. Ela trabalhou com a Katherine Dunham, uma pesquisadora de movimento e coreógrafa dos Estados Unidos. A Mercedes viu o quanto a gente precisava desse tipo de estudo no Brasil também. Ela recorreu a vários movimentos culturais, coisas que já ocorriam no Brasil mas não tinham holofote. E ela sempre quis trazer bastante atenção para isso”.

Falecida em 2014, Mercedes teve sua estátua inaugurada em 2016 no Largo da Prainha, no circuito Pequena África da zona portuária do Rio de Janeiro.

Juliana se diz muito feliz com a publicação do dicionário online. “Eu não sabia que seria publicado. A gente se esforçou tanto, eu li o livro dela inteiro, até porque era muito interessante. Pensei, poxa, não vai acontecer nada. Quando foi publicado eu fiquei muito feliz porque mais pessoas poderiam conhecer essa bailarina”.

Já a equipe do estudante Lucas do Herval Costa Teles de Menezes decidiu escrever sobre um personagem que representasse o Rio de Janeiro e estivesse presente no cotidiano, mas que as pessoas não percebessem. Um personagem que não tivesse sido completamente apagado da história. O escolhido tem um feriado municipal em sua homenagem em Niterói e dá nome à estação das barcas que chegam do Rio de Janeiro e à praça em frente a ela, onde tem uma estátua: o indígena temiminó Araribóia.

Estátua homenageia o índio Araribóia em Niteroi

“Eu achei interessante a dinâmica que o personagem teve com os povos estrangeiros, no caso, os portugueses e os franceses. Porque, geralmente, quando a gente aprende sobre a relação dos povos indígenas e os povos europeus invasores, a gente não pensa muito em identificar esses povos indígenas, nunca aprende sobre a história individual de uma figura indígena. Eu achei que ele teve uma história individual muito interessante, foi uma figura de liderança, teve muito envolvimento em mais de uma narrativa política daquela época, e isso me chamou atenção.”

O grupo de Lucas foi o único a lembrar de Araribóia, conhecido como fundador de Niterói e figura fundamental na disputa entre portugueses e franceses que levou à expulsão destes.

Olímpiada

A Olimpíada Nacional em História do Brasil permite a participação de equipes de três estudantes de 8º e 9º anos do ensino fundamental e todos os anos do ensino médio, com a orientação de um professor ou uma professora, de escolas públicas e particulares.

Diferentemente da maioria das olimpíadas científicas, a ONHB estimula a busca pelo conhecimento em história, e não avaliar o que o estudante já sabe por meio de uma prova.

“É um sistema de aprendizagem participar de olimpíadas. Ela é muito exigente e não quer aferir se os estudantes já sabem, ela dá tempo para eles estudarem, perguntam para o professor, perguntam uns para os outros. Tem uma pergunta de uma coisa que ele nunca ouviu falar, não viu na escola. Mas do lado tem um texto, ele lê, se informa, pesquisa na internet e volta para responder. Nesse processo ele aprendeu história. Eu não estou muito interessada se ele já sabia, mas se ele aprendeu naquele momento, o nosso objetivo pedagógico é esse”, afirma Cristina Meneguello.

A primeira edição da ONHB, em 2009, contou com 15 mil participantes. No ano passado, o número chegou a 73 mil. Por causa da pandemia de covid-19, a competição deste ano será online, não havendo a prova presencial para os finalistas que normalmente é aplicada na Unicamp.

 

https://vermelho.org.br/2020/10/04/estudantes-produzem-dicionario-biografico-excluidos-da-historia/


domingo, 4 de outubro de 2020

Yvette Centeno - O amor, o anjo e o cão

* Yvette Centeno

Havia amor por ali,
uma entrega tão subtil
que não podia ser dita
cortava a respiração
só podia ser vivida
em segredo
e só de dia
quando o Anjo os protegia…

Ainda assim havia a noite,
a floresta e o jardim,
um cão amigo a brincar
um céu com novas estrelas
acesas para o amor
que seria amor sem fim

 

(dedicado à Ana Maria Pereirinha, 2020)

sábado, 3 de outubro de 2020

Cem anos de Hercule Poirot: a história e o legado do genial detetive



*  Carlos Maria Bobone
 
Picuinhas, guloso, sensível e vaidoso até ao limite. Ao mesmo tempo, anormalmente inteligente e perspicaz, Poirot, criação perfeita de Agatha Christie, é referência obrigatória da literatura policial.

04 out 2020, 18:06

A 6 de Agosto de 1975 o New York Times abria com um estranho obituário. Agatha Christie tinha acabado de publicar Curtain: Poirot’s last case e o famoso detetive, que se deixara morrer no desenlace do mistério, tem direito a um elogio fúnebre nas páginas do jornal.

Esta despedida dá ideia do lugar que o pequeno detetive ocupou no imaginário contemporâneo: nunca personagem alguma tivera direito a um obituário no New York Times e mais nenhuma voltou a ter. Poirot, o grande detetive, conquistou o seu lugar entre as pessoas de carne e osso graças a umas brilhantes células cinzentas e à resolução dos mais intrincados mistérios.

Poirot teve direito a uma biografia escrita por Anne Hart e a uma imensa quantidade de adaptações televisivas. Tudo porque se há detetive que encarna na perfeição as delícias da literatura policial, esse detetive é Hercule Poirot.

Agatha Christie, na sua Autobiografia, conta que Poirot — que apareceu pela primeira vez no livro The Mysterious Affair at Styles, publicado em outubro de 1920 .. é escrito na esteira da literatura policial mais clássica: um detetive excêntrico, apressado na resolução dos casos pela competição com um inspetor da polícia menos capaz mas com mais meios ao seu dispor, e ajudado por um ingénuo seguidor que, como um provedor do leitor, obriga constantemente o herói a explicar os seus raciocínios.




[alguns dos melhores momentos de David Suchet como “Poirot”, na série televisiva feita a partir das histórias de Agatha Christie:]


Nisto, não é Poirot muito diferente do mais clássico dos clássicos, o detetive Sherlock Holmes; Agatha Christie, no entanto, dota o seu próprio detetive de uma subtileza que o torna, em certa medida, o oposto de Sherlock Holmes. Holmes é, nas obras de Conan Doyle, um positivista; Chesterton, num dos seus ensaios sobre literatura policial, já denuncia os limites de Sherlock Holmes: na verdade, não precisamos que o cérebro com as capacidades dedutivas mais exercitadas de que há memória seja ainda um apóstolo da ciência e da pura lógica sensível; não só a personagem se torna, mais do que coerente, redundante, como o próprio método diminui os mistérios. Não há nada de lógico em relevar pormenores desconsiderados; a notícia do mais vulgar, daquilo que escapa aos outros, é na verdade mais próprio de um cérebro imaginativo do que de um cérebro dedutivo. Agatha Christie percebeu isto ao fazer do seu detetive um homem ao mesmo tempo picuinhas e guloso, hiper-sensível e vaidoso até ao limite.


O que está em questão na vaidade é precisamente o exacerbar daquilo que aparentemente tem pouca importância. O orgulho de Poirot no seu cérebro torna-se ao mesmo tempo ridículo e interessante porque é uma variação pouco óbvia da personalidade interessada pelo pormenor. Da mesma maneira que Miss Marple é até um pouco aborrecida e tacanha, como se concentrasse a atenção naquilo que já não interessa, Poirot é um esteta dedicado aos pequenos prazeres – com uma óbvia ligação com a ideia de importância dada aos pormenores – e um vaidoso, isto é, alguém que remói os seus feitos (como os indícios) por mais tempo do que à partida seria necessário.

A vida de Poirot tem uma coerência surpreendente para uma personagem de ficção a quem a autora nunca dedicou uma biografia de facto. Embora Christie diga que já nos primeiros livros o imaginava velho, característica que as longas décadas de mistérios obrigaram a matizar, a verdade é que é possível traçar uma biografia coerente de Poirot sem grandes contradições entre os livros. Um antigo inspetor da polícia belga, refugiado em Inglaterra depois da invasão alemã na primeira guerra mundial, Poirot instala-se primeiro em Styles, lugar do seu primeiro mistério, e vai ganhando fama e dinheiro com a resolução de novos crimes. Começa por trabalhar para o governo, mas é como detetive privado que ganha a folga financeira que lhe permite viver com o requinte que deseja.

Poirot disserta várias vezes sobre os tipos de crimes e sobre a psicologia dos criminosos, sobre os tipos de arma usados nos crimes premeditados e nos crimes passionais, sobre os meios tipicamente femininos ou masculinos, mas pouco tem a dizer sobre a moral.

Com o passar dos anos, a galeria de personagens vai-se tornando mais complexa: Hastings, Miss Lemon, todos vão cumprindo os seus papéis no mundo de Poirot; o processo, no entanto, é sempre parecido e é esse que torna os livros de Poirot uns dos mais interessantes no que toca ao enredo policial propriamente dito. Pode haver detetives mais complexos, como Perry Mason ou o espião George Smiley; mas não histórias policiais com um enredo tão bem montado quanto as de Poirot.

A grande força dos enredos de Christie-Poirot está na montagem de uma galeria de personagens cheia de segredos, muitas delas dispostas a sacrificar reputações para proteger aqueles que amam, muitas outras a viver segundas vidas incógnitas, de tal maneira que os segredos se intrometem no crime e dificultam a sua resolução. O processo passa, assim, pela resolução de um encadeado de mal-entendidos e mistérios paralelos que tornam a História mais do que a resolução de um momento. Aquele que é o grande defeito da literatura policial – o facto de ser uma literatura concentrada num momento, de tal modo que toda a história funciona apenas como uma ferramenta para alcançar uma resolução – é nas histórias de Poirot ultrapassado pelo complexo de tramas paralelas que obscurecem a visão do detetive.

Agatha Christie tem sempre a preocupação de, não apenas encontrar um criminoso plausível, mas de encontrar o único criminoso possível. Ora, esta preocupação retira alguma arbitrariedade ao jogo de enganos e compromete o leitor com a história. A necessidade de termos aquele criminoso e não outro faz com que a resolução não se torne uma escolha da autora, a que o leitor assiste passivo, mas sim uma espécie de consequência necessária da história, que o leitor pode por isso descobrir.


▲ Os mistérios de Poirot são prova da capacidade de Agatha Christie resistir à cristalização do seu modo de raciocinar e implicam uma montagem que é, só por si, um tratado de engenharia

À medida que a mestria de Agatha Christie se foi aprimorando os casos foram, do ponto de vista técnico, ganhando cada vez mais complexidade. Dos casos em que um jogador de Bridge é assassinado numa sala fechada, tornando suspeitos apenas os 3 jogadores vivos, ao caso em que a culpa do narrador é escondida até ao fim, Agatha Christie vai explorando a sua capacidade inventiva num jogo de possibilidades cada vez menores, em que as possibilidades de resolução se vão tornando cada vez mais apertadas.

Dos grandes detetives que a ficção nos trouxe, Poirot é provavelmente aquele em que o magnetismo do crime produz menos efeito ao longo da vida. É certo que Poirot admira a “inteligência” de alguns crimes; no entanto, a ideia de impunidade para aqueles capazes de perceber as estruturas dos grandes crimes, a tentação do outro lado, tudo isso parece em Poirot – pelo menos até à sua morte – algo distante. A estrutura moral de Poirot, um refugiado, a quem o despeito de se encontrar sem emprego antes de abrir a sua agência podia levar para lados mais negros, é por isso bastante curiosa. Poirot disserta várias vezes sobre os tipos de crimes e sobre a psicologia dos criminosos, sobre os tipos de arma usados nos crimes premeditados e nos crimes passionais, sobre os meios tipicamente femininos ou masculinos, mas pouco tem a dizer sobre a moral.

Mais do que os mistérios, porém, fica a personagem. Poirot é ainda hoje o protótipo do detetive, a suprema demonstração do poder da inteligência, capaz de ver ao mesmo tempo com o máximo pormenor e a maior largueza.

A ideia de justiça em Poirot é bastante sui generis. Poirot não é propriamente um detective amoral, no sentido em que, ao contrário de Holmes, por exemplo, sofre com os crimes, mas é sobretudo um detective à maneira iluminista, isto é, alguém que acredita que o bem está no esclarecimento. Mais do que o bem, Poirot quer a verdade, e é dessa verdade que virá o bem. Juntam-se os pares amorosos tornados suspeitos pelos segredos, reconciliam-se pais e filhos, numa ideia de que o segredo e a ocultação acabam por provocar o mal, de um modo que a clareza impede.

Há casos de Poirot verdadeiramente ontológicos, prodígios de inventividade da parte da criadora e provas excecionais de inteligência da parte do detetive. Os crimes do ABC, Roger Ackroyd, o Crime do Expresso do Oriente, Cartas na Mesa, todos estes mistérios são prova da capacidade de Agatha Christie resistir à cristalização do seu modo de raciocinar e implicam uma montagem que é, só por si, um tratado de engenharia.

Mais do que os mistérios, porém, fica a personagem. Poirot é ainda hoje o protótipo do detetive, a suprema demonstração do poder da inteligência, capaz de fazer de uma figura de palmo e meio, de bigode levantado e sotaque carregado, um grande Homem, capaz de ver ao mesmo tempo com o máximo pormenor e a maior largueza.

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