sábado, 31 de março de 2018

3 poemas de Gilka Machado

1.

Comigo mesma 

"Numa nuvem de renda,
musa, tal como a Salomé da lenda,
na forma nua
que se estenta e estua,
— sacerdotiza audaz —
para o Amor de que és presa,
rasgando véus de sonho dançarás
nesse templo pagão da Natureza!
Dançarás por amor das coisas e dos seres,
e por amor do Amor...
tua dança dirá renúncias e quereres!
faze com que desfira
tua lira
gargalhadas de gozo e lamentos de dor,
e possas em teu ritmo recompor
tudo que viste estática, surpresa,
e a imprevista beleza,
a beleza incorpórea
dos perfumes e sons indefinidos
de tudo que te andou pelos sentidos,
de tudo que conservas na memória.
Dize da Natureza em que à luz vieste,
dize dos seus painéis encantadores,
dize da pompa, do esplendor celeste
das suas noites, dos seus dias,
e animiza com teus espasmos e agonias
as expressões com que a expressando fores.
Alma de pomba, corpo de serpente,
enche de adejos
e rastejos
teu ambiente,
caiam em torno a ti pedras ou flores
de uma contemplativa multidão:
de lisonjeiros.e de malfeitores
cheias as sendas da existência estão.
Toda de risos tua boca enfeita
quando te surja um ser sincero, irmão,
e sejas sempre pura, espelhante, perfeita,
na verdade da tua imperfeição.
Musa satânica e divina
ó minha Musa sobrenatural,
em cujas emoções, igualmente, culmina
a sedução do Bem, a tentação do Mal!
em teus meneios lânguidos ou lestos
expõe ao Mundo que te espia
que assim como há na Dança a poesia dos gestos,
há nos versos a dança da Poesia.
Dança para esse gozo,
o grande gozo maternal
da Terra,
que te fez sem igual,
e, envaidecida,
em seu amor te encerra,
amando em ti a sua própria vida,
sua vida carnal
e espiritual.
Torce e destorce o ser flexuoso
ó Musa emocional!
maneja os versos
de maneira tal
que eles se fiquem pelos séculos dispersos,
com os ritmos da existência universal.
E a dançar,
a dançar,
num delicioso sacrifício,
patenteia a nudez desse teu ser puníceo
ante o sereno altar
do Deus que te domina.
Que importa a injúria hostil de quem te não compreenda?
Dança, porém, não como a Salomé da lenda,
a lírica assassina:
dança de um modo vivificador;
dança de todo nua,
mas que seja a nudez da dança tua
a imortalização do teu Amor!"

Comigo Mesma, Gilka Machado. Publicado em "Mulher Nua", 1922. Retirado do livro "Poesias Completas", 1978.

2.

Aspiração A Pereira da Silva Eu quisera viver como os passarinhos: cantando à beira dos caminhos, cantando ao sol, cantando aos luares, cantando de tristeza e de prazer, sem que ninguém ouvidos desse aos meus cantares. Eu quisera viver em plenos ares, numa elevada trajetória, numa existência quase incorpórea. viver sem rumo, procurar guarida à noite para, em sono, o corpo descansar, viver em vôos, de corrida roçar apenas pela vida! Eu quisera viver sem leis e sem senhor, tão somente sujeita às leis da natureza, tão somente sujeita aos caprichos do amor... viver na selva acesa pelo fulgor solar, o convívio feliz das mais aves gozando, viver em bando, a voar, a voar. Eu quisera viver cantando como as aves em vez de fazer versos, sem poderem assim os humanos perversos interpretar perfidamente meu cantar. Eu quisera viver dentro da natureza, sufoca-me a estreiteza desta vida social a que me sinto presa. Diante de uma paisagem verdejante, diante do céu, diante do mar, esta minha tristeza por momentos se finda e desejo sofrer a vida ainda e fico a meditar: como os homens são maus e como a terra é linda! Certo não fora assim tão triste a vida se, das aves seguindo o exemplo encantador, a humanidade livremente unida, gozasse a natureza, a liberdade e o amor. Eu quisera viver sem a forma possuir de humano ser, viver como os passarinhos, uma existência toda de carinhos de delícias sem par... morte, que és hoje todo meu prazer, foras então meu único pesar! Eu quisera viver a voar, a voar até sentir as asas molentadas, voar ao cair do sol e ao vir das alvoradas, voar mais, ainda mais, pairar bem longe das criaturas nas sereníssimas alturas celestiais. Voar mais, ainda mais (o vôo me seduz) voar até, finalmente, num dia muito azul e muito ardente, ) — alma — pairar do espaço à flux, — matéria — despenhar-me de repente, sobre a terra absorvente, morta, morta de luz!

Do livro ' Estados de Alma ' de 1917


3.

Conjecturando A Osório Duque Estrada Lutar... mas para que? para, em fim, cedo ou tarde, ser vencida? lutar... mas para que? se a vida é o que se vê e se sabe: uma luta indefinida, onde qualquer ser que lute há de perder. Exausta, na existência eu as armas deponho, e, ao invés de lutar, distraio-me a sonhar, faço do próprio mal um motivo de sonho. É bem melhor sofrer a dor definitiva, dor que ora se amortece, ora se aviva, e é sempre a mesma dor, do que lutando, num constante abalo, e alimentando da Esperança o anelo, caminhar para o Ideal, consegui-lo, alcançá-lo, e, logo após, perdê-lo. Convenci-me, agora, de que o gozo é um crime, pelo qual nos cabe tétrica expiação. Feliz de mim que ignoro do prazer, tristes dos que muito venturosos são, pois não sabem inda o que a sofrer virão. Ai dos felizes! Ai dos felizes! Bendito sejas, meu pesar interno, embora sempre me martirizes! Bendita a dor que no meu ser atua. porque, apesar de tudo, a dor é boa para quem a ela se habitua. A dor antiga é uma dor amiga, dói pouco a pouco, não magoa quase. Ai dos que fruem da ventura a fase, loucos, a espera de um prazer superno! Ai dos que vivem nos enganadores gozos desta existência! — A dor inesperada é a maior dentre as dores, vem com toda a violência das vinganças... Alma de onde somente o riso escapa, alma que da alegria não te cansas, olha que a Dor prepara o seu bote, a socapa!... se atingiste do gozo a plenitude é que ela bem te ilude, e se prepara e apura — traiçoeira — te engendrando uma horrível tortura! Viver... mas para que? Ai dos que amam a vida por lhe haverem provado até então do prazer! torturas sofrerão quando a virem perdida, por amarem a vida hão de cedo morrer! Ai do ser que acumula o ouro das ilusões! — um tesouro prepara para satsifazer a Morte avara... quantas riquezas vão para os caixões! Ai daquele que tem o corpo forte, pois conservar a carne pura e sã é o mesmo que engordar a ovelha para o corte! ai daquele que, amanhã, saboreado será pela gula da Morte! Ai dos que se supõem vencedores desta luta e, embriagados de ventura, passam alheios à Desgraça!... Ai dos que gozam faustos e esplendores! que tortura sem par, por uma cova regelada e escura um palácio trocar! Veloz a vida dos felizes passa... Ai dos ricos, que vivem sempre cheios de vaidade e de bens roubados, bens alheios! de que vale fazerem tanto mal, se tudo hão de deixar pela Morte, afinal?! Felizes dos que vivem na miséria, de corpo seco, de alma esgotada, pois nada levam para a funérea orgia dessa velha deletéria. Felizes desses que não têm morada, que não têm conforto, não tiveram passado e não terão porvir, que, quando a Morte, enfim, lhes for chegada (há sempre abrigo para um corpo morto!) pouso conseguirão, em calma, hão de dormir. Para os felizes tem a Morte horrores, é o inferno com todas as torturas, mas tem mistérios promissores para as criaturas que só souberam do travor das dores. Cada dia que passa me persuade que bem melhor que a felicidade é a insensibilidade; as delícias da vida são fictícias, e a morte é o meio singular de não sofrer, de não gozar. Feliz de quem se fez sofredora submissa e desistiu da liça, vencedora será quando a Morte chegar porque lhe há de burlar a insaciável cobiça. Feliz de mim que, de ilusões vazia, vou me acabando, dia a dia, do declive da vida na jornada. Feliz de mim que não terei mais nada para a Morte levar... Feliz de mim que, a esfalecer, diviso um gozo doce, delicioso, manso, pois se a morte não me for o paraíso há de ao menos me ser da tortura o descanso.

Do livro ' Estados de Alma ' de 1917

Seleção de Jamile Hassan Rkain

José Falcão - Cartilha do Povo



IV - José Falcão e a "Cartilha do Povo"

José Falcão, para além de ter sido das raras vozes que se ergueram a favor dos revoltosos da Comuna de Paris, foi também um dos mais obstinados divulgadores da ideia republicana. Este propósito de tornar acessível ao povo a nova mensagem política sofria o obstáculo da elevadíssima taxa de analfabetismo. No início do último quartel do século XIX mais de quatro quintos da população portuguesa não sabia ler, escrever e contar. Os livros, brochuras e jornais eram apenas lidos por uma minoria da burguesia culta, concentrada sobretudo em Lisboa, no Porto e em Coimbra. O problema da instrução pública esteve sempre presente nas preocupações dos evangelizadores republicanos. Era necessário encontrar uma fórmula susceptível de levar às massas populares os valores do republicanismo, apesar da calamitosa ignorância que grassava em todo o país. Urgia proceder à elaboração de textos de doutrinação política que fossem redigidos em linguagem muito simples e que pudessem ser escutados por aqueles a quem a monarquia não tinha infundido os benefícios do conhecimento.


Foi esse o objectivo de José Falcão, quando elaborou e fez imprimir a sua memorável Cartilha do Povo. Foi uma obra que surgiu em 1884, uma vez mais anónima, ilustrada com desenhos saídos da mão artística de António Augusto Gonçalves. Impressa em papel modesto, para que os custos pudessem ser facilmente suportados, esta Cartilha obedeceu também à directriz de ser facilmente entendida por gente humilde, caldeada em trabalhos de invulgar dureza e, até então, desprezada pelas regiões da governação. Para isso, o autor praticará nela o método do diálogo. Os assuntos de interesse colectivo, aí versados, são debatidos entre duas figuras, as quais encetam, com amena bonomia, uma participada conversação. À figura mais douta, mais ciente dos reais problemas da Grei, deu José Falcão o nome de João Portugal; à outra, disposta a quebrar a escuridão da sua falta de informação e de cultura e que, por isso, coloca questões e pede esclarecimentos, foi dado o nome de José Povinho. Esta designação traz-nos imediatamente ao espírito o Zé Povinho das famosas caricaturas de Rafael Bordalo Pinheiro, tais como elas haviam aparecido em jornais de boa tiragem, como O António Maria, Pontos nos ii e A Paródia. Essas abordagens eram, ao tempo, a mais perfeita síntese, em registo satírico, da tipologia do português aldeão, bom mas boçal, submetido pacientemente às cargas e derrotas com que os poderosos o albardavam. Pelo contrário, o José Povinho da Cartilha do Povo, de José Falcão, é o ser humano humilde mas atento, que deseja promover-se, que quer aprender e que aspira à construção de um Portugal melhor e mais justo.



A Cartilha do Povo teve uma consagração clamorosa junto dos estratos mais humildes da população. Dela se fizeram várias edições e teriam sido muitos os republicanos que a quiseram divulgar junto dos menos esclarecidos. Aliás, o modelo aqui adoptado teve similitudes com o Catecismo Republicano para uso do Povo, redigido por Carrilho Videira e por Teixeira Bastos. Tanto José Falcão como os responsáveis pelo Catecismo sabiam que os destinatários das suas mensagens careciam da explicação circunstanciada de um conjunto de noções muito elementares, similares à que os sacerdotes transmitiam aos seus pequenos catecúmenos. Também os elementos do povo português eram encarados, com inteiro realismo – mas também com evidente carinho – como crianças a quem tivessem de ser ensinados os rudimentos de uma cidadania interiorizada e consciente. É isto que explica as designações destes livrinhos: cartilha e catecismo, meio de sublinhar, a partir do próprio título, a missão iniciática e patriótica a que se davam estes propagandistas da “nova ideia”. Foi também por este caminho de simplicidade expositiva que enveredou um outro republicano distinto, Consiglieri Pedroso, quando organizou e deu aos prelos a sua Biblioteca Democrática.



É quase comovente a dádiva destes homens às camadas sociais mais desvalidas do seu país. E é também isto que explica que o Partido Republicano tenha sido referido como “o Partido do Povo”, enquanto principal factor da dignificação e de evolução mental dos que lhe escutaram as directrizes doutrinais.


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 http://lagosdarepublica.wikidot.com/iv-jose-falcao-e-a-cartilha-do-povo



















































FONTE:
http://triplov.com/Venda_das_Raparigas/Cartilha/index.htm

CARTILHA DO POVO: JOSÉ FALCÃO 
Edição popular promovida pelos estudantes republicanos de Coimbra
Tipografia Minerva, Vila Nova de Famalicão, 1896 
www.triplov.org . 12-10-2006
Agradecemos a Luis M. Mateus, presidente da associação República & Laicidade (http://www.laicidade.org/), a simpatia com que nos ofereceu as imagens. 

O papa Francisco revisa a teologia do inferno


COLUNA

Somente no século VI, com Santo Agostinho, nasce na Igreja a ideia de uma pena para sempre, sem retorno

A Igreja oficial defende desde o século XV que o castigo do inferno destinado aos pecadores é “eterno”, ideia iniciada no século VI com Santo Agostinho. O papa Francisco acaba de revisar tal doutrina católica ao afirmar que a Igreja “não condena para sempre”.

Sem necessidade de grandes encíclicas, com suas falas habituais, Francisco está realizando uma revisão da Igreja para aproximá-la de suas raízes históricas.

Deu o último golpe de graça em um momento um pouco mais solene do que suas conversas habituais com os jornalistas. Dessa vez aproveitou, dias atrás, seu discurso aos novos cardeais para recordar-lhes que o castigo do inferno com o qual a Igreja atormenta os fiéis não é “eterno”.

Segundo Francisco, no DNA da Igreja de Cristo, não existe um castigo para sempre, sem retorno, inapelável.

O Papa jesuíta é formado em teologia, ainda que não tenha feito o doutorado. Dele, talvez hoje o papa renunciante e doutor em teologia, Bento XVI, possa dizer o que afirmava sobre seu antecessor, o papa polonês João Paulo II: que sabe pouca teologia.

Durante um jantar informal em Roma, na casa de um jornalista alemão seu amigo, Ratzinger confessou, efetivamente, aos poucos comensais presentes, que o papa Wojtyla “era mais poeta que teólogo” e que ele, como Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, cargo que ocupava na época, precisava revisar seus discursos e documentos papais para que não escapasse “alguma imprecisão teológica”.

Francisco é, entretanto, um fiel seguidor da teologia inspirada no cristianismo original, que era, afirma ele, não o da “exclusão”, mas o da “acolhida” de todos, até mesmo dos maiores pecadores. É inspirado por aquele cristianismo antes que a teologia liberal do profeta Jesus de Nazaré fosse contaminada pela severa teologia aristotélica e racional.

Não foi um lapso a afirmação de Francisco aos cardeais de que a Igreja “não condena ninguém para sempre”, o que equivale a dizer que o castigo de Deus não é “eterno”, já que as portas da Igreja da misericórdia e do perdão estão sempre abertas ao pecador.

O Papa que está exigindo aos seus, começando pelos cardeais, a ir ao encontro daqueles que o mundo esquece e marginaliza, ao invés de perder seu tempo nos palácios do poder, sabe que essa doutrina teológica sobre a eternidade e irreversibilidade das penas do inferno, foi sofrendo mudanças ao longo da História da Igreja.

Até o século III a Igreja nunca defendeu a doutrina da eternidade do inferno. Pelo contrário, o exegeta das Escrituras, Orígenes (250) defendeu a doutrina da apocatástase, segundo a qual o Deus dos Evangelho perdoa sempre. Orígenes baseava-se na parábola do Filho pródigo que volta aos braços do pai e é recebido com tanta festa que causa a inveja do irmão bom e fiel.

Somente no século VI começa a aparecer o conceito de “condenação eterna”, sobretudo com Santo Agostinho, o mesmo que defendia que as crianças mortas sem batismo deveriam ir para o inferno. Diante dos protestos das mães dessas crianças, a Igreja criou a doutrina do Limbo, um lugar onde essas crianças “não gozam nem sofrem”, algo completamente estranho aos Evangelhos

Em nossos dias, o falecido papa polaco, João Paulo II, no Catecismo da Igreja Universal nascido das discussões do Concílio Vaticano II, aboliu o Limbo. De acordo com comentários de amigos pessoais do papa, Wojtyla nunca aceitou que uma irmã sua nascida morta e que não pôde ser batizada, pudesse não estar no céu por ter morrido antes de ser libertada do pecado original com o batismo.

A família do futuro Papa era muito católica e, fiel àquela doutrina, nem sequer enterraram o corpo da pequena por não ter podido receber o batismo. Ele mesmo confirmou quando ao falar do túmulo no qual gostaria de juntar os restos de toda sua família, frisou que faltava somente sua irmãzinha, “pois havia nascido morta”. Foi jogada no lixo.

Foi o Concílio de Florença no século XV que rubricou definitivamente a doutrina de Santo Agostinho de um castigo e um inferno eterno. Já no século V, entretanto, São Jerônimo estava convencido de que a doutrina do inferno com a misericórdia de Deus não era conciliável. De todo modo, pedia-se aos sacerdotes e bispos que continuassem defendendo a doutrina tradicional “para que os fiéis, por temor ao castigo do inferno eterno, não pecassem”.

Hoje, o papa Francisco deu um salto de séculos, colocou-se ao lado das primeiras comunidades cristãs ainda embebidas da doutrina do misericordioso profeta de Nazaré, que veio “para salva e não para condenar”.

Os primeiros cristãos sabiam que Jesus havia sido duro e severo com a hipocrisia e com o poder tirano, enquanto abraçava os marginalizados pela sociedade bem como os que a Igreja oficial de seu tempo tachava de pecadores.
Podem parecer minúcias teológicas para os não religiosos, mas são muito importantes para milhões de cristãos que durante séculos sofreram oprimidos pela doutrina de um Deus tirano, sedento de castigo e de castigo eterno.

Lembro que no final dos anos 60, após escrever no jornal espanhol Pueblo um artigo intitulado “O Deus no qual não acredito”, em que defendia que os cristãos precisavam escolher entre Deus e o inferno eterno, já que ambos eram conceitos inconciliáveis, sofri um duro interrogatório do então arcebispo de Madri, Monsenhor Casimiro Morcillo, que me acusou de “ter escandalizado os fiéis”.

Aqui no Brasil, o teólogo da libertação, Leonardo Boff, me contou que há 16 anos o grande escritor e poeta de Pernambuco João Cabral de Mello Neto estava para morrer e, apesar de não ser religioso, estava angustiado naquele momento pela doutrina sobre o medo do inferno, que lhe haviam inculcado na infância. Foi chamado para o tranquilizar. Boff, que foi condenado ao silêncio pelo papa Bento XVI quando este era Prefeito da Congregação da Fé, usou com o escritor as mesmas palavras que agora o papa Francisco usa para assegurar que Deus não condena ninguém para sempre.

Boff disse com humor ao poeta que alguém capaz de escrever a joia literária, social e humana Morte e Vida Severina, merecia indulgência plena na hora de se despedir da vida.

A mudança é copernicana. Hoje é um papa como Francisco que afirma com total naturalidade que o Deus cristão “não condena ninguém para sempre”, que é como dizer que não existem infernos eternos, uma afirmação que há pouco tempo atrás poderia ter servido para abrir um processo contra um teólogo e condená-lo ao ostracismo.


quinta-feira, 22 de março de 2018

António Gedeão - Dez réis de esperança

* António Gedeão


Se não fosse esta certeza
que nem sei de onde me vem,
não comia, nem bebia,
nem falava com ninguém.
Acocorava-me a um canto,
no mais escuro que houvesse,
punha os joelhos á boca
e viesse o que viesse.
Não fossem os olhos grandes
do ingénuo adolescente,
a chuva das penas brancas
a cair impertinente,
aquele incógnito rosto,
pintado em tons de aguarela,
que sonha no frio encosto
da vidraça da janela,
não fosse a imensa piedade
dos homens que não cresceram,
que ouviram, viram, ouviram,
viram, e não perceberam,
essas máscaras selectas,
antologia do espanto,
flores sem caule, flutuando
no pranto do desencanto,
se não fosse a fome e a sede
dessa humanidade exangue,
roía as unhas e os dedos
até os fazer em sangue.


quarta-feira, 21 de março de 2018

manuel da fonseca - canção

* Manuel da Fonseca

num ano de grande fome,
minha família acabou-se.

eu tinha uma boa enxada
donde tirava o sustento.
ia-me de monte a monte
chegava à porta e dizia:
-lavrador,
eu cavo-lhe a sua herdade!
e no meio das courelas,
a minha enxada luzia.
viesse o sol que viesse
e a chuva que caísse
e o vento, que vem do norte
e corta como uma foice,
que assobiasse e cortasse:
- a minha enxada luzia!
e a minha filha crescia
estava uma moça vistosa.

tanto que os homens saíam
para as portas das tabernas
dizendo ao vê-la passar:
lá vai a rosa charneca.
e a minha mulher cantava
estendendo a roupa, a corar,
sobre esteveiras ao sol.

quando veio a grande fome
tudo isto se acabou.

minha mulher foi para a monda,
lá para o alto alentejo.
e a minha filha abalou
com uma mulher que ri
e anda de feira em feira
armando aquela barraca
onde se bebe e se ama.
e numa manhã de inverno,
não pude mais e parti
-pelas estradas do acaso
com a manta de maltês!...


Georges Simenon: a banalidade do bem



São duas narrativas de formação de Georges Simenon. Uma é autobiográfica. A outra é magnífica.
Os Três Crimes dos Meus Amigos

    4 estrelas
MÁRIO SANTOS 
20 de Março de 2018, 18:03
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Simenon nunca terá conseguido inteiramente (nem com a ajuda de André Gide) que o resgatassem ao nicho do subgénero policial KEYSTONE/GETTY IMAGES
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Georges Simenon (1903-1989) foi um dos mais prolíficos escritores do século XX. Só é comparável, sob esse aspecto, a Isaac Asimov, igualmente popular, embora em outro subgénero narrativo. Contabilizados romances, novelas, contos e outros escritos (mais ou menos autobiográficos ou jornalísticos), o belga escreveu e fez publicar mais de meio milhar de textos. Diante de tão grande produtividade, o recenseador — por mais imprudente e mais educado que seja no gosto moderno pelos rankings — hesita, sentindo-se desencorajado de emitir um daqueles juízos (por assim dizer) que tão úteis são em badanas e contracapas: “o melhor romance…”, “a mais bela novela…”, etc. Eis, portanto, a primeira virtude do escritor de Liège: desaconselha venais (e banais) entusiasmos.
Autoria:Georges Simenon
(Trad. Ângelo Ferreira de Sousa)
RelógioD’Água
Autoria:Georges Simenon
(Trad. Catarina Ferreira de Almeida)
Relógio D’Água
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Simenon foi também um dos escritores mais populares do século. Melhor: Simenon foi também um dos escritores policiais mais populares do século, neste particular sendo só comparável a Agatha Christie (que, aliás, terá lucrado bastante mais escrevendo bastante menos). Embora os romances ou novelas e os contos protagonizados por Maigret representem “apenas” cerca de um quinto da produção escrita pelo autor, Simenon popularizou-se enquanto criador do comissário. A glória poderá ter sido comercialmente proveitosa, mas acabou por sobrepor-se equivocamente a toda a restante e imensa produção narrativa do escritor, que nunca terá conseguido inteiramente (nem com a ajuda de André Gide) que o resgatassem ao nicho do subgénero policial e o colocassem na estante dos escritores tout court. E dos bons. Por alturas do centenário do seu nascimento, houve quem, apontando dois ou três romances, o emparelhasse retrospectivamente a Camus, dando-o, aliás, como mais merecedor do Nobel do que o autor de O Estrangeiro. Mas é sabido que os centenários são ocasiões propícias a reavaliações maximalistas. Como quer que seja, Georges Simenon foi entretanto canonizado pela Pléiade, sendo oportuno assinalar que, da trintena de romances e novelas reunidos nos três volumes até agora publicados, apenas cinco têm Maigret como protagonista.

A editora Relógio D’Água tem vindo a publicar algumas obras de Simenon. As mais recentes — e que estavam até agora inéditas em português, creio — são Os Três Crimes dos Meus Amigos (1938) e O Santinho (1965). Nenhuma delas é integrável no qualificativo ‘policial’, sendo que a primeira é, no mínimo, de discutível filiação genológica. Embora originalmente tenha sido publicado como se de uma obra de ficção romanesca se tratasse, o livro Os Três Crimes dos Meus Amigos é, substancialmente, uma memória descritiva dos anos de formação do autor em Liège, até à sua ida para Paris em 1922, e da década subsequente na capital francesa, até à condenação dos amigos criminosos. Trata-se de uma crónica declaradamente autobiográfica, narrada por Simenon-ele-mesmo. É claro que sempre poderemos questionar a exacta veracidade deste episódio ou daquela circunstância, pois as fantasias da memória costumam atraiçoar as mais bem intencionadas autobiografias, mas, no geral, personagens e acontecimentos serão historicamente comprováveis. Assim, e por exemplo, a marginal fauna romântico-decadente (prometidos artistas e poetas, “poseurs”, jornalistas e outros arrivistas) que na segunda década do século XX fez a glória do “Caque”, um antro boémio da provinciana Liège. Foi aí que o então ainda adolescente Simenon conviveu com o jovem pintor suicida que nesta narrativa identifica pudicamente como “o pequeno K…”, e foi aí que conheceu, aliás, uma jovem artista que viria a ser a sua primeira mulher. Não se julgue, porém, que o tom maior deste memorial é melancólico, ou trágico ou, sequer, dramático. Pelo contrário, e não obstante o suicídio, o aburguesamento e a confirmação posterior dos crimes anunciados no título, a digressão chega a ser alegre, em boa medida por causa de dois trota-jornais aventureiros (um deles também amante de livros e de impudicícias), retratados em tamanho e acções tão consubstanciais ao meio jornalístico que, se não tivessem existido de verdade, Simenon bem poderia tê-los inventado. Outros tempos, enfim. Felizmente, nos jornais de hoje só entram pessoas sérias.

O Santinho é a biografia de um pintor imaginário, cuja existência decorre inteiramente em Paris desde o final do século XIX até ao início dos anos 60 do século seguinte. O livro está dividido em duas partes, intituladas O Rapazinho da Rue Mouffetard e O Rapazinho da Rue de l’Abbé-de-l’Épée. A primeira, na reconhecível moldura do “romance de formação”, conta a infância do protagonista no seio de uma feliz família disfuncional e pobre, capitaneada por uma mãe-coragem algo promíscua que vende legumes e frutas na rua Mouffetard, cujo entorno pertencia então às classes obreiras e populares de Paris e a alguns pequeno-burgueses (hoje pertence, como se sabe, ao turismo de massas). Na segunda parte, concluída a escola primária, o rapazinho vai trabalhar para o então grande mercado abastecedor de Paris (Les Halles) e tornar-se-á um (famoso) pintor autodidacta. A repetição, no título de ambas as partes (tratando a segunda, em boa medida, da vida adulta do artista, até à sua velhice), da palavra “rapazinho” é uma boa chave para a leitura do romance. O pessimismo existencial de Simenon cede, aqui, sem grandiloquência, à banalidade do bem. A educação sentimental do nosso herói foi violenta — viu a irmã ser estuprada por um irmão mais velho, foi vítima de bullying na escola, etc. — mas, à violência íntima e pessoal do mundo, ele opôs sempre uma espécie de alteridade indiferente. Alheio a si mesmo, nem a posterior felicidade da pintura o corrompeu. Estrangeiro ao bem e ao mal, o rapaz a quem na infância chamavam “santinho” parece ter vivido toda a sua existência na graça de uma espécie de ímpia santidade: “’Qual é ao certo o seu objectivo?’/‘Não sei.’ / Era a frase que ele pronunciara mais vezes ao longo da sua vida e que continuava a repetir.”

Em ambos os livros, a acção é contada linearmente, sem enredos. Mas se, no primeiro livro, a narração na primeira pessoa e o assunto autorizam o autor a produzir uma ou outra inflexão retórica, no caso do segundo livro tudo é narrado com objectividade e frieza. Sem contrabando de emoções. Um romance puro e duro. Ou o inverso.